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DRAMA POLÍTICO ARGENTINO
Ensaio de Beatriz Sarlo discute a construção da figura de Evita Perón
SERGIO MICELI
Eis um ensaio empolgante que se lê como ficção, na
cola da autora-detetive, buscando deslindar o emaranhado de versões montadas no calor da hora. Beatriz
Sarlo armou uma interpretação astuciosa do drama político argentino, cujo enredo se resolve no enlace de figuras, histórias e eventos extraordinários: a construção
física de Eva Perón, a rainha peronista, a excepcionalidade da beleza; o justiçamento de Aramburu, o cérebro
dos gorilas, a da vingança; a ficção desconcertante de
Borges, a do saber.
Em 29 de maio de 1970, uma brigada montonera seqüestrou Pedro Eugenio Aramburu, tenente-general,
ex-presidente da República e líder da Revolução Libertadora, que havia derrubado Perón 15 anos antes. Dois
guerrilheiros de cabeça raspada chegaram ao seu apartamento, disfarçados com fardas de oficiais militares,
protegidos por capotes que escondiam as metralhadoras, enquanto outros três, vestidos de policial, padre e
"piranha", lhes davam cobertura nos três carros utilizados na operação. Levado para uma casa nos arredores
de Buenos Aires e submetido a prolongado interrogatório, no dia seguinte Aramburu revelou o lugar onde estava o cadáver de Eva Perón.
Em 1º de junho, com o preso amarrado na cama para
impedir que se suicidasse, mas dando-lhe o tratamento
de "general", que o mesmo havia negado a Perón em
1955, o "tribunal revolucionário" continuou deliberando e, naquela madrugada, comunicou-lhe a sentença de
morte. O relato dos montoneros não esclarece se atenderam os últimos pedidos do condenado: barbear-se,
amarrar os cordões dos sapatos e se confessar.
Fora condenado por crimes em penca: pela matança
de 27 civis, sem processo nem causa, e de oito militares,
atropelando a decisão do Conselho de Guerra que os
havia inocentado; pela repressão do movimento peronista; pela profanação do túmulo e pelo desaparecimento dos restos da companheira Evita; pela difamação
pública dos dirigentes populares, visando ao "nosso" líder Juan Domingo Perón; pela anulação das conquistas
sociais da Revolução Justicialista; pela entrega do patrimônio nacional a grupos estrangeiros.
Foi levado ao sótão com as mãos nas costas, sem venda nos olhos, com um pano na boca posto pelos seqüestradores. Enquanto um deles fazia barulho no andar de
cima para encobrir o fuzilamento, a execução foi perpetrada pelo chefe montonero, o qual, após pronunciar as
palavras rituais, proferiu o teor da sentença: um tiro de
pistola de nove milímetros e três disparos de graça.
"Que Deus Nosso Senhor tenha piedade de sua alma", o
fecho do comunicado enviado à imprensa dá a senha da
formação cristã daqueles militantes que se haviam tornado o braço armado do movimento peronista.
Afora poucos quadros procedentes do
Partido Comunista, os montoneros
eram, na maioria, jovens graduados do
Colégio Nacional de Buenos Aires, católicos fervorosos, seguidores radicais das
encíclicas sociais de João 23 e das diretrizes da Teologia da Libertação, simpatizantes da Revolução Cubana e de Che
Guevara, freqüentadores de círculos nacionalistas, obcecados pela missão de cobrar todos os crimes pendentes da nação
irredenta: o resgate do cadáver roubado
de Evita, a restauração da idade de ouro
peronista e o retorno do profeta Perón à
terra que lhe pertencia. Decepcionados
com as instituições, eles encontraram
um jeito de fundir a opção pelos pobres
ao compromisso apaixonado com o peronismo.
O assassinato de Aramburu fora um
acerto de contas, um ato de justiça, um
meio de livrar o país dos interesses antipopulares, uma virada decisiva no balanço de forças. "Esse momento incandescente de paixão política" revigorou a
simbologia peronista e, a despeito da
vontade de Perón, então exilado em Madri, obrigou-o a um relacionamento com
essa milícia de mártires cristãos.
Esse estouro passional de vingança fizera o mundo recobrar sua ordem, ao
mirar a figura singular de um general e
ex-Presidente, de patente hierárquica e
poderio equivalente a Perón, no limite a
única personalidade que teria propiciado a consecução de uma vingança olho
por olho. No curto prazo, a morte de
Aramburu tivera o efeito de desarticular
a fração cívico-militar empenhada em
derrubar Onganía e instalar um governo
de conciliação com um peronismo domesticado.
Beatriz Sarlo reconstruiu o justiçamento de Aramburu a partir dos depoimentos da época, veiculados na grande imprensa ou em publicações montoneras,
com ênfase na versão vivenciada dos
acontecimentos por parte dos seqüestradores, espremendo do relato factual um
registro impensado para além do que se
passou. Atenta às mutações de voz, às
modulações de ênfase, ao palavreado de
época, ao fraseado ideológico, como
quando assinala a passagem da terceira à
primeira pessoa, ou então ao salientar a
dicção fabular de um narrador que se
põe na pele dos militantes já mortos,
transmitindo uma evocação compartilhada entre companheiros, ao identificar
os motes da ladainha em textos militantes, ou ainda ao frisar o pacto de sangue
atando os vingadores às suas vítimas.
DOIS CORPOS DE EVA
Em resposta
à visada antiperonista de tantas versões
ficcionais e biográficas, de vezo psicológico ou moral, a apreensão da autora privilegiou a construção física e material da
figura de Evita, ao captar mudanças sensíveis em sua trajetória, primeiro como
atriz obscura, depois ascendendo ao estrelato na rádio portenha, até se metamorfosear na belíssima primeira-dama
do regime peronista.
O acento nesses tempos de trabalho
duro na mídia apura as razões pelas
quais Eva Duarte não conseguia sobressair no naipe de estrelas da época. Os
mesmos predicados que pareciam insuficientes ao êxito artístico lhe conferiram
o diferencial de distinção como liderança
política feminina. Eva não tinha um corpo estupendo, não possuía grandes
olhos sedutores, não fazia sorriso de
anúncio nem poses estudadas de inocência e parecia menos jovem do que era.
A análise começa por um exame minucioso da morfologia corporal, num confronto entre feições vantajosas, que se
tornariam emblemas de sua imagem pública -a transparência e a luminosidade
da pele, as pernas e braços longilíneos, a
linha suave entre a testa e o nariz reto e fino, a nitidez no desenho do crânio- e os
arranjos desse cabedal de beleza nos momentos de sua reconversão de atriz em
estrela, daí em jovem esposa aburguesada, papel logo reciclado para dar alento à
construção da Evita dos descamisados,
um camafeu no qual a força era tão importante como a delicadeza.
Vestidos, roupas, jóias, penteados,
adereços, poses, trejeitos são esquadrinhados em razão dos sinais de distinção
que infundem aos suportes de imagem
-fotos, reportagens, entrevistas, retratos-, qualificados pela memória de
profissionais que lhe prestavam serviços
(costureiros, fotógrafos etc.). Recuperam-se os indícios visuais do sutilíssimo
transformismo, cuja fatura se completa
pela bem-sucedida figura simbólica de
um aristocrata leiga, mas ombreada, por
propagandistas e detratores, à realeza.
Evita Duarte tinha 16 anos quando chegou a Buenos Aires em 1935. Ao longo
dos próximos oito anos, a despeito de ligações amorosas com relapsos incentivadores de sua carreira -um dono de
revista, um galã apagado e um general-, ela continuou relegada a papéis secundários em novelas radiofônicas e de
coadjuvante no teatro.
A REVIRAVOLTA
Não se encaixava
no molde das grandes estrelas, como Libertad Lamarque, nem no perfil da starlet "ingênua"; não tinha o talento da primeira para cantar e atuar, não possuía a
prontidão cultural para simular a adolescente "recatada", nem dispunha da desenvoltura exigida no teatro de revista.
Tampouco teve êxito nos concursos então promovidos pela mídia, o que contribuiu para a escassa projeção nas revistas
especializadas. A reviravolta ocorreu
após o levante de 1943, quando consegue
se impor como âncora na Rádio Belgrano, patrocinada pelos militares, que passaram a enxergar nesse veículo um instrumento crucial de sua promoção política.
A partir daí até 1945, já vivendo com o
então coronel Perón, ministro do Trabalho, Eva consumou o ajuste de sua aparência, num esforço de ser e parecer burguesa, jovem senhora caseira, feliz, serena, dedicada à leitura, ao piano e às obras
de arte. Nessa virada, era preciso dar coerência e sentido a uma biografia repleta
de contratempos humilhantes. Passara
assim da quase total invisibilidade ao estrelato, prestes a se casar com o militar
mais poderoso do país. Sua figura sobressaía pelos trajes de festa chamativos,
com plissados e drapeados que não lhe
caíam bem, pelos penteados estrambóticos e pelos dentes de um branco dentifrício. Eva Duarte fora guindada ao posto de protagonista no rádio-teatro em Belgrano, no horário nobre, além de duas
ou três aparições diárias, sem contar entrevistas e matérias exclusivas nas revistas. Entre o ano do casamento e a morte
pelo câncer em 1952, Eva Duarte de Perón se converteu em peça central na
montagem e consolidação do regime peronista. A excepcionalidade de sua contribuição começava pela sombra do arrivismo, ou melhor, pelo itinerário improvável em vista de suas origens populares.
A presença elegante, a fotogenia, a silhueta esguia, a proximidade com figurões, tais trunfos foram singularizando
um extasiante "look" Greta Garbo de
primeira dama, Ninotchka em ação, no
dizer expressivo de Sarlo, longe do modelo convencional das matronas casadas
com políticos e militares. Era a matéria
maleável ideal ao plasma iconográfico, o
perfil adequado para os selos postais do
casal presidencial.
O treinamento prévio como atriz lhe
permitiu se esmerar na confecção de
uma nova estampa, buscando adequar
os trajes às exigências da performance
pública. A visualidade passara a ter peso
decisivo no dispositivo de propaganda
até então desconhecido na Argentina. A
profusão de jóias, o tingimento dourado
dos cabelos, o esmalte vermelho nas
unhas e os dois trajes responsáveis pelo
timbre de seu estilo inconfundível: os
vestidos de baile, com grife Dior ou Fath,
figurinos para o teatro do poder peronista, em noitadas no Colón, em viagens à
Europa, e os "tailleurs" Príncipe de Gales, com gola de pele escura, quase um
uniforme oficial de trabalho.
Com o corpo real como forma visível
do corpo político, Eva desempenhava os
papéis fora da alçada do consorte, os de
intercessora, intérprete e escudo, uma figura milenar, quase a da Virgem, pilar
desse Estado do bem-estar "a la criolla".
Essa mistura de freira, fada e estrela de
cinema viabilizou a ritualização política
do peronismo, cabendo-lhe o trabalho
nobre de repartição de bens e serviços
aos pobres. A mulher humilde e ignorante que se tornara companheira do presidente assumira também as funções de
representante do líder e, como tal, podia
se permitir extravagâncias de indumentária e postura fora dos marcos do "bom
gosto", pela exigência de exibir o superávit de felicidade que o regime dizia assegurar ao povo.
"PATHOS" TRÁGICO
Eva morreria
aos 33 anos, em julho de 1952, sem que a
doença tivesse deteriorado sua beleza. A
metástase fora acentuando os traços
pouco convencionais e lhe instilando um
"pathos" trágico e sublime: o rosto cada
vez mais anguloso, a nitidez gráfica de
feições, os ombros salientes, as mãos etéreas, como indícios de um corpo que se
desmaterializava.
Um dos pontos altos do livro é a esplêndida análise das fotos de Eva doente,
tiradas por ocasião do encontro justicialista de 1951, quando lhe foi oferecido o
posto de vice-presidente, o qual ela recusaria dias depois. Esses instantâneos
realçavam a juventude vibrante e a energia da vontade política, ao arrepio do
desfecho iminente. O fato de terem sido
bastante utilizados pelo "evitismo" revolucionário dos montoneros, no clamor
pelo seu cadáver, é sintomático da sobrevivência de seu corpo político.
A exemplo de Lênin, o corpo embalsamado de Evita ficou exposto num mausoléu até o golpe militar de 1955, de onde
foi seqüestrado e escondido pelos gorilas. Era a prova de que tanto os derrotados como os vencedores do momento
queriam possuí-lo, por enxergar nesse
ícone do peronismo uma condensação
simbólica de beleza e vigor.
Em agosto de 1970, dois meses após o
justiçamento de Aramburu, a revista de
esquerda "Los Libros" publicou o conto
mais sangrento de Borges, "El Otro Duelo", como matéria de capa, em homenagem ao autor, fanático antiperonista, que
então completava 71 anos, no auge da fama. Embora nunca tivesse esquecido o
velório de Evita, quando era criança, para o qual não obtivera a permissão paterna, Beatriz acompanhou o noticiário do
seqüestro pela televisão e, estarrecida,
leu o texto de Borges.
Os trabalhos ficcionais de Borges pontuam as raízes profundas de uma cultura
secular da vingança na Argentina. O
miolo quase mítico dessa experiência se
revela nas histórias de "gauchos" e compadritos, sequiosos de um acerto de contas, no campo e no subúrbio, pautados
por uma tábua arcaica de valores de honra e coragem pessoal, cujos litígios eram
saldados pelos impulsos da paixão, num
marco de enfrentamento anterior à jurisdição de instituições legais e abstratas.
A despeito da procedência dessa interpretação, ao demonstrar que "a literatura pode fazer saber inclusive aquilo que
não sabe de todo", o encaixe do material
literário se ressente da força analítica alcançada nos demais episódios, mostrando-se, pois, menos persuasivo em seu
papel de cifra estrutural. Embora não se
possa discordar de que os "argumentos"
de Borges permitam pensar fatos de outra natureza, como a história, por exemplo, nesse caso o trânsito inverso deu
mostras vibrantes de descoberta.
Tal ressalva não afeta em absoluto a altíssima voltagem de invenção intelectual
deste livro da ensaísta e crítica literária
Beatriz Sarlo. Será difícil lograr uma análise tão envolvente e bem articulada de
fatos bastante controversos, tratados por
vezes com as chaves perscrutadoras de
decifração ficcional ou, ao contrário,
examinados à luz dos teores recorrentes
do acervo literário, como pistas de inteligibilidade das paixões políticas. Por conta dessa oscilação analítica proposital,
desse vaivém entre história, política, mitologia e literatura, até as evidências
cruas parecem secretar rebarbas propensas ao contra-senso, à incerteza, à ambivalência, aos sentidos mutantes, um tecido impregnado o tempo todo de um teor
paraficcional. Um livraço.
SERGIO MICELI é professor de sociologia na USP e autor,
entre outros, de "Nacional Estrangeiro -História Social e Cultural
do Modernismo Artístico em São Paulo" (Cia. das Letras).
La Pasión y la Excepción Beatriz Sarlo
Siglo 21 Editores Argentina
272 págs. 23 pesos
O livro pode ser encomendado, em SP, na livraria Letraviva (tel. 0/
xx/11/ 3088-7992).
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