São Paulo, sábado, 13 de março de 2004

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DRAMA POLÍTICO ARGENTINO

Ensaio de Beatriz Sarlo discute a construção da figura de Evita Perón

SERGIO MICELI

Eis um ensaio empolgante que se lê como ficção, na cola da autora-detetive, buscando deslindar o emaranhado de versões montadas no calor da hora. Beatriz Sarlo armou uma interpretação astuciosa do drama político argentino, cujo enredo se resolve no enlace de figuras, histórias e eventos extraordinários: a construção física de Eva Perón, a rainha peronista, a excepcionalidade da beleza; o justiçamento de Aramburu, o cérebro dos gorilas, a da vingança; a ficção desconcertante de Borges, a do saber.
Em 29 de maio de 1970, uma brigada montonera seqüestrou Pedro Eugenio Aramburu, tenente-general, ex-presidente da República e líder da Revolução Libertadora, que havia derrubado Perón 15 anos antes. Dois guerrilheiros de cabeça raspada chegaram ao seu apartamento, disfarçados com fardas de oficiais militares, protegidos por capotes que escondiam as metralhadoras, enquanto outros três, vestidos de policial, padre e "piranha", lhes davam cobertura nos três carros utilizados na operação. Levado para uma casa nos arredores de Buenos Aires e submetido a prolongado interrogatório, no dia seguinte Aramburu revelou o lugar onde estava o cadáver de Eva Perón.
Em 1º de junho, com o preso amarrado na cama para impedir que se suicidasse, mas dando-lhe o tratamento de "general", que o mesmo havia negado a Perón em 1955, o "tribunal revolucionário" continuou deliberando e, naquela madrugada, comunicou-lhe a sentença de morte. O relato dos montoneros não esclarece se atenderam os últimos pedidos do condenado: barbear-se, amarrar os cordões dos sapatos e se confessar.
Fora condenado por crimes em penca: pela matança de 27 civis, sem processo nem causa, e de oito militares, atropelando a decisão do Conselho de Guerra que os havia inocentado; pela repressão do movimento peronista; pela profanação do túmulo e pelo desaparecimento dos restos da companheira Evita; pela difamação pública dos dirigentes populares, visando ao "nosso" líder Juan Domingo Perón; pela anulação das conquistas sociais da Revolução Justicialista; pela entrega do patrimônio nacional a grupos estrangeiros.
Foi levado ao sótão com as mãos nas costas, sem venda nos olhos, com um pano na boca posto pelos seqüestradores. Enquanto um deles fazia barulho no andar de cima para encobrir o fuzilamento, a execução foi perpetrada pelo chefe montonero, o qual, após pronunciar as palavras rituais, proferiu o teor da sentença: um tiro de pistola de nove milímetros e três disparos de graça. "Que Deus Nosso Senhor tenha piedade de sua alma", o fecho do comunicado enviado à imprensa dá a senha da formação cristã daqueles militantes que se haviam tornado o braço armado do movimento peronista.
Afora poucos quadros procedentes do Partido Comunista, os montoneros eram, na maioria, jovens graduados do Colégio Nacional de Buenos Aires, católicos fervorosos, seguidores radicais das encíclicas sociais de João 23 e das diretrizes da Teologia da Libertação, simpatizantes da Revolução Cubana e de Che Guevara, freqüentadores de círculos nacionalistas, obcecados pela missão de cobrar todos os crimes pendentes da nação irredenta: o resgate do cadáver roubado de Evita, a restauração da idade de ouro peronista e o retorno do profeta Perón à terra que lhe pertencia. Decepcionados com as instituições, eles encontraram um jeito de fundir a opção pelos pobres ao compromisso apaixonado com o peronismo. O assassinato de Aramburu fora um acerto de contas, um ato de justiça, um meio de livrar o país dos interesses antipopulares, uma virada decisiva no balanço de forças. "Esse momento incandescente de paixão política" revigorou a simbologia peronista e, a despeito da vontade de Perón, então exilado em Madri, obrigou-o a um relacionamento com essa milícia de mártires cristãos. Esse estouro passional de vingança fizera o mundo recobrar sua ordem, ao mirar a figura singular de um general e ex-Presidente, de patente hierárquica e poderio equivalente a Perón, no limite a única personalidade que teria propiciado a consecução de uma vingança olho por olho. No curto prazo, a morte de Aramburu tivera o efeito de desarticular a fração cívico-militar empenhada em derrubar Onganía e instalar um governo de conciliação com um peronismo domesticado. Beatriz Sarlo reconstruiu o justiçamento de Aramburu a partir dos depoimentos da época, veiculados na grande imprensa ou em publicações montoneras, com ênfase na versão vivenciada dos acontecimentos por parte dos seqüestradores, espremendo do relato factual um registro impensado para além do que se passou. Atenta às mutações de voz, às modulações de ênfase, ao palavreado de época, ao fraseado ideológico, como quando assinala a passagem da terceira à primeira pessoa, ou então ao salientar a dicção fabular de um narrador que se põe na pele dos militantes já mortos, transmitindo uma evocação compartilhada entre companheiros, ao identificar os motes da ladainha em textos militantes, ou ainda ao frisar o pacto de sangue atando os vingadores às suas vítimas.

DOIS CORPOS DE EVA
Em resposta à visada antiperonista de tantas versões ficcionais e biográficas, de vezo psicológico ou moral, a apreensão da autora privilegiou a construção física e material da figura de Evita, ao captar mudanças sensíveis em sua trajetória, primeiro como atriz obscura, depois ascendendo ao estrelato na rádio portenha, até se metamorfosear na belíssima primeira-dama do regime peronista. O acento nesses tempos de trabalho duro na mídia apura as razões pelas quais Eva Duarte não conseguia sobressair no naipe de estrelas da época. Os mesmos predicados que pareciam insuficientes ao êxito artístico lhe conferiram o diferencial de distinção como liderança política feminina. Eva não tinha um corpo estupendo, não possuía grandes olhos sedutores, não fazia sorriso de anúncio nem poses estudadas de inocência e parecia menos jovem do que era. A análise começa por um exame minucioso da morfologia corporal, num confronto entre feições vantajosas, que se tornariam emblemas de sua imagem pública -a transparência e a luminosidade da pele, as pernas e braços longilíneos, a linha suave entre a testa e o nariz reto e fino, a nitidez no desenho do crânio- e os arranjos desse cabedal de beleza nos momentos de sua reconversão de atriz em estrela, daí em jovem esposa aburguesada, papel logo reciclado para dar alento à construção da Evita dos descamisados, um camafeu no qual a força era tão importante como a delicadeza. Vestidos, roupas, jóias, penteados, adereços, poses, trejeitos são esquadrinhados em razão dos sinais de distinção que infundem aos suportes de imagem -fotos, reportagens, entrevistas, retratos-, qualificados pela memória de profissionais que lhe prestavam serviços (costureiros, fotógrafos etc.). Recuperam-se os indícios visuais do sutilíssimo transformismo, cuja fatura se completa pela bem-sucedida figura simbólica de um aristocrata leiga, mas ombreada, por propagandistas e detratores, à realeza. Evita Duarte tinha 16 anos quando chegou a Buenos Aires em 1935. Ao longo dos próximos oito anos, a despeito de ligações amorosas com relapsos incentivadores de sua carreira -um dono de revista, um galã apagado e um general-, ela continuou relegada a papéis secundários em novelas radiofônicas e de coadjuvante no teatro.

A REVIRAVOLTA
Não se encaixava no molde das grandes estrelas, como Libertad Lamarque, nem no perfil da starlet "ingênua"; não tinha o talento da primeira para cantar e atuar, não possuía a prontidão cultural para simular a adolescente "recatada", nem dispunha da desenvoltura exigida no teatro de revista. Tampouco teve êxito nos concursos então promovidos pela mídia, o que contribuiu para a escassa projeção nas revistas especializadas. A reviravolta ocorreu após o levante de 1943, quando consegue se impor como âncora na Rádio Belgrano, patrocinada pelos militares, que passaram a enxergar nesse veículo um instrumento crucial de sua promoção política.
A partir daí até 1945, já vivendo com o então coronel Perón, ministro do Trabalho, Eva consumou o ajuste de sua aparência, num esforço de ser e parecer burguesa, jovem senhora caseira, feliz, serena, dedicada à leitura, ao piano e às obras de arte. Nessa virada, era preciso dar coerência e sentido a uma biografia repleta de contratempos humilhantes. Passara assim da quase total invisibilidade ao estrelato, prestes a se casar com o militar mais poderoso do país. Sua figura sobressaía pelos trajes de festa chamativos, com plissados e drapeados que não lhe caíam bem, pelos penteados estrambóticos e pelos dentes de um branco dentifrício. Eva Duarte fora guindada ao posto de protagonista no rádio-teatro em Belgrano, no horário nobre, além de duas ou três aparições diárias, sem contar entrevistas e matérias exclusivas nas revistas. Entre o ano do casamento e a morte pelo câncer em 1952, Eva Duarte de Perón se converteu em peça central na montagem e consolidação do regime peronista. A excepcionalidade de sua contribuição começava pela sombra do arrivismo, ou melhor, pelo itinerário improvável em vista de suas origens populares. A presença elegante, a fotogenia, a silhueta esguia, a proximidade com figurões, tais trunfos foram singularizando um extasiante "look" Greta Garbo de primeira dama, Ninotchka em ação, no dizer expressivo de Sarlo, longe do modelo convencional das matronas casadas com políticos e militares. Era a matéria maleável ideal ao plasma iconográfico, o perfil adequado para os selos postais do casal presidencial. O treinamento prévio como atriz lhe permitiu se esmerar na confecção de uma nova estampa, buscando adequar os trajes às exigências da performance pública. A visualidade passara a ter peso decisivo no dispositivo de propaganda até então desconhecido na Argentina. A profusão de jóias, o tingimento dourado dos cabelos, o esmalte vermelho nas unhas e os dois trajes responsáveis pelo timbre de seu estilo inconfundível: os vestidos de baile, com grife Dior ou Fath, figurinos para o teatro do poder peronista, em noitadas no Colón, em viagens à Europa, e os "tailleurs" Príncipe de Gales, com gola de pele escura, quase um uniforme oficial de trabalho. Com o corpo real como forma visível do corpo político, Eva desempenhava os papéis fora da alçada do consorte, os de intercessora, intérprete e escudo, uma figura milenar, quase a da Virgem, pilar desse Estado do bem-estar "a la criolla". Essa mistura de freira, fada e estrela de cinema viabilizou a ritualização política do peronismo, cabendo-lhe o trabalho nobre de repartição de bens e serviços aos pobres. A mulher humilde e ignorante que se tornara companheira do presidente assumira também as funções de representante do líder e, como tal, podia se permitir extravagâncias de indumentária e postura fora dos marcos do "bom gosto", pela exigência de exibir o superávit de felicidade que o regime dizia assegurar ao povo.

"PATHOS" TRÁGICO
Eva morreria aos 33 anos, em julho de 1952, sem que a doença tivesse deteriorado sua beleza. A metástase fora acentuando os traços pouco convencionais e lhe instilando um "pathos" trágico e sublime: o rosto cada vez mais anguloso, a nitidez gráfica de feições, os ombros salientes, as mãos etéreas, como indícios de um corpo que se desmaterializava. Um dos pontos altos do livro é a esplêndida análise das fotos de Eva doente, tiradas por ocasião do encontro justicialista de 1951, quando lhe foi oferecido o posto de vice-presidente, o qual ela recusaria dias depois. Esses instantâneos realçavam a juventude vibrante e a energia da vontade política, ao arrepio do desfecho iminente. O fato de terem sido bastante utilizados pelo "evitismo" revolucionário dos montoneros, no clamor pelo seu cadáver, é sintomático da sobrevivência de seu corpo político. A exemplo de Lênin, o corpo embalsamado de Evita ficou exposto num mausoléu até o golpe militar de 1955, de onde foi seqüestrado e escondido pelos gorilas. Era a prova de que tanto os derrotados como os vencedores do momento queriam possuí-lo, por enxergar nesse ícone do peronismo uma condensação simbólica de beleza e vigor. Em agosto de 1970, dois meses após o justiçamento de Aramburu, a revista de esquerda "Los Libros" publicou o conto mais sangrento de Borges, "El Otro Duelo", como matéria de capa, em homenagem ao autor, fanático antiperonista, que então completava 71 anos, no auge da fama. Embora nunca tivesse esquecido o velório de Evita, quando era criança, para o qual não obtivera a permissão paterna, Beatriz acompanhou o noticiário do seqüestro pela televisão e, estarrecida, leu o texto de Borges. Os trabalhos ficcionais de Borges pontuam as raízes profundas de uma cultura secular da vingança na Argentina. O miolo quase mítico dessa experiência se revela nas histórias de "gauchos" e compadritos, sequiosos de um acerto de contas, no campo e no subúrbio, pautados por uma tábua arcaica de valores de honra e coragem pessoal, cujos litígios eram saldados pelos impulsos da paixão, num marco de enfrentamento anterior à jurisdição de instituições legais e abstratas. A despeito da procedência dessa interpretação, ao demonstrar que "a literatura pode fazer saber inclusive aquilo que não sabe de todo", o encaixe do material literário se ressente da força analítica alcançada nos demais episódios, mostrando-se, pois, menos persuasivo em seu papel de cifra estrutural. Embora não se possa discordar de que os "argumentos" de Borges permitam pensar fatos de outra natureza, como a história, por exemplo, nesse caso o trânsito inverso deu mostras vibrantes de descoberta. Tal ressalva não afeta em absoluto a altíssima voltagem de invenção intelectual deste livro da ensaísta e crítica literária Beatriz Sarlo. Será difícil lograr uma análise tão envolvente e bem articulada de fatos bastante controversos, tratados por vezes com as chaves perscrutadoras de decifração ficcional ou, ao contrário, examinados à luz dos teores recorrentes do acervo literário, como pistas de inteligibilidade das paixões políticas. Por conta dessa oscilação analítica proposital, desse vaivém entre história, política, mitologia e literatura, até as evidências cruas parecem secretar rebarbas propensas ao contra-senso, à incerteza, à ambivalência, aos sentidos mutantes, um tecido impregnado o tempo todo de um teor paraficcional. Um livraço.


SERGIO MICELI é professor de sociologia na USP e autor, entre outros, de "Nacional Estrangeiro -História Social e Cultural do Modernismo Artístico em São Paulo" (Cia. das Letras).

La Pasión y la Excepción Beatriz Sarlo Siglo 21 Editores Argentina 272 págs. 23 pesos O livro pode ser encomendado, em SP, na livraria Letraviva (tel. 0/ xx/11/ 3088-7992).



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