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FACES DA ESCRAVIDÃO
A escravidão no Brasil, na América Latina e na África
MARCUS JOAQUIM M. DE CARVALHO
"Ensaios sobre a Escravidão" contém
trabalhos que lidam com múltiplas faces
de realidades escravistas no Brasil, na
América Latina e na África. São 12 textos,
além de uma breve apresentação, tratando de uma miríade de problemas históricos. Os organizadores da coletânea deixam claro, na abertura, que fica a cargo
do leitor tecer os liames possíveis entre
os diferentes textos.
A primeira parte, com três ensaios independentes, abre uma janela para a
imensa diversidade da escravidão. No
primeiro deles, David Eltis discute a história do tráfico transatlântico de escravos no contexto mais geral dos movimentos migratórios globais, condensando as idéias de um livro que recentemente publicou. A tradução cuidadosa não
perde o ritmo do texto, no qual é discutido o impacto diferenciado nas sociedades fornecedoras e receptoras.
O trabalho seguinte é uma reedição para o público brasileiro de um estudo de
Paul Lovejoy, originalmente publicado
em 1981, sobre a escravidão no califado
de Socoto, tema recorrente na historiografia sobre a África Ocidental. Por fim,
Daniela Calainho discorre sobre a perseguição e paulatina demonização das formas de religiosidade de origem africana
no reino ultramarino português.
A segunda parte do livro enfoca as atitudes da classe senhorial diante da escravidão. Começa com Didier Lahon, que
toma a violência como um "constructo"
social, porém inescapável, no mundo escravista afro-luso-brasileiro. Abordando
principalmente Portugal, Lahon explora
as várias dimensões da violência, inclusive a verbal, contribuindo para o debate
sobre as origens do racismo e a elaboração de uma ideologia justificadora da escravidão racializada. A inferioridade do
negro, e mesmo sua animalização, já
eram claramente ressaltadas no século
18.
Em seguida, Rafael Marquese compara
manuais de gerenciamento de plantéis
de cativos escritos no Brasil por Taunay,
em Cuba por Landa e nos EUA por Bass
e Collins. Conclui que nos EUA o paternalismo implantou-se mais vigorosamente, ficando o Brasil numa posição intermediária, e Cuba no outro extremo, já
que o manual de Landa recomendava
apenas disciplina e rigor, não se preocupando em fomentar nos escravos a crença de que dependiam do senhor.
Para fechar a segunda parte, João Fragoso e Maria Fernanda Martins abordam as alternativas abertas, e as efetivamente tomadas, pelos grandes negociantes do Rio de Janeiro à medida que se
aproximava a abolição. Por meio de
complexas redes sociais, muitos foram
capazes de migrar para outros negócios,
além do café, mormente para o reino das
finanças.
FAMÍLIAS ESCRAVAS
A terceira
parte enfoca questões demográficas. Cacilda Machado, Carlos Engemann e Manolo Florentino analisam a configuração
demográfica de fazendas no Rio de Janeiro, na Venezuela, em São Paulo e estâncias jesuíticas na Argentina. Comparando principalmente estruturas sexo-etárias, o texto segue a historiografia internacional recente, demonstrando que
as famílias escravas não eram meramente residuais nem necessariamente instáveis, mesmo que não seguissem os mesmos arranjos de convivência adotados
nos estratos superiores. Quanto mais
afastadas as fazendas do mercado de escravos, maiores as possibilidades de reprodução natural do plantel.
A seguir, por meio de dados sobre óbitos e enterros de escravos, Carlos Engemann, Marcelo de Assis e Manolo Florentino abordam a estrutura de posse e
as hierarquias internas da comunidade
escrava no sertão do Rio de Janeiro no
séculos 18 e 19. José Roberto Góes avança
no estudo das desigualdades e conflitos
entre escravos, mostrando que a violência também era inevitável nas relações
entre os cativos, libertos e outros agentes
das camadas subalternas.
Na última parte, o tema comum é a resistência escrava. Alberto da Costa e Silva
analisa a Revolta dos Malês, concluindo
ter sido mais uma "jihad" do outro lado
do Atlântico do que uma revolta de escravos, um pequeno desvio, portanto,
dos argumentos clássicos de João José
Reis. Márcia Amantino escolhe alguns
quilombos do Sudeste mais bem documentados para sugerir uma tipologia,
cujo marco mais significativo é a maior
ou menor dependência para com o mundo exterior à comunidade escrava. Além
da discussão, reedita mapas de quilombos anteriormente publicados pela Biblioteca Nacional. Por último, Durval de
Souza Filho apresenta um belo conjunto
de fotos de cativos tirados na Casa de
Correção da Corte.
A segunda e a terceira partes do livro
são mais bem integradas entre si, já que
abordam temas recorrentes da escola de
demografia da escravidão com sede na
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
que, sob a liderança de Manolo Florentino e João Fragoso, tem contribuído para
a compreensão desse tema, principalmente no Rio de Janeiro. A obra, como
um todo, não segue um trajeto temático
rigoroso, mas apresenta trabalhos relevantes, alguns dos quais tiveram versões
anteriores publicadas.
Embora apresente mais detalhes sobre
vários aspectos da escravidão, seu maior
mérito não é a inovação, mas permitir ao
leitor, em um único e bem acabado volume, visualizar uma parte da diversidade
de caminhos tomados pela historiografia
recente. Vale salientar que, se a falta de
um mais rigoroso encadeamento teórico, cronológico, geográfico ou mesmo
temático pode ser um problema, não
deixa também de ser um ponto positivo
do livro, na medida em que os trabalhos
reunidos trazem enfoques, senão opostos, ao menos dissonantes.
MARCUS JOAQUIM MACIEL DE CARVALHO é Ph.D.
pela University of Illinois (EUA) e professor de história na
Universidade Federal de Pernambuco
Ensaios sobre a Escravidão Manolo Florentino e Cacilda Machado
(orgs.) UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4642)
278 págs. R$ 75,00
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