São Paulo, sábado, 13 de março de 2004

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FACES DA ESCRAVIDÃO

A escravidão no Brasil, na América Latina e na África

MARCUS JOAQUIM M. DE CARVALHO

"Ensaios sobre a Escravidão" contém trabalhos que lidam com múltiplas faces de realidades escravistas no Brasil, na América Latina e na África. São 12 textos, além de uma breve apresentação, tratando de uma miríade de problemas históricos. Os organizadores da coletânea deixam claro, na abertura, que fica a cargo do leitor tecer os liames possíveis entre os diferentes textos. A primeira parte, com três ensaios independentes, abre uma janela para a imensa diversidade da escravidão. No primeiro deles, David Eltis discute a história do tráfico transatlântico de escravos no contexto mais geral dos movimentos migratórios globais, condensando as idéias de um livro que recentemente publicou. A tradução cuidadosa não perde o ritmo do texto, no qual é discutido o impacto diferenciado nas sociedades fornecedoras e receptoras. O trabalho seguinte é uma reedição para o público brasileiro de um estudo de Paul Lovejoy, originalmente publicado em 1981, sobre a escravidão no califado de Socoto, tema recorrente na historiografia sobre a África Ocidental. Por fim, Daniela Calainho discorre sobre a perseguição e paulatina demonização das formas de religiosidade de origem africana no reino ultramarino português. A segunda parte do livro enfoca as atitudes da classe senhorial diante da escravidão. Começa com Didier Lahon, que toma a violência como um "constructo" social, porém inescapável, no mundo escravista afro-luso-brasileiro. Abordando principalmente Portugal, Lahon explora as várias dimensões da violência, inclusive a verbal, contribuindo para o debate sobre as origens do racismo e a elaboração de uma ideologia justificadora da escravidão racializada. A inferioridade do negro, e mesmo sua animalização, já eram claramente ressaltadas no século 18. Em seguida, Rafael Marquese compara manuais de gerenciamento de plantéis de cativos escritos no Brasil por Taunay, em Cuba por Landa e nos EUA por Bass e Collins. Conclui que nos EUA o paternalismo implantou-se mais vigorosamente, ficando o Brasil numa posição intermediária, e Cuba no outro extremo, já que o manual de Landa recomendava apenas disciplina e rigor, não se preocupando em fomentar nos escravos a crença de que dependiam do senhor. Para fechar a segunda parte, João Fragoso e Maria Fernanda Martins abordam as alternativas abertas, e as efetivamente tomadas, pelos grandes negociantes do Rio de Janeiro à medida que se aproximava a abolição. Por meio de complexas redes sociais, muitos foram capazes de migrar para outros negócios, além do café, mormente para o reino das finanças.

FAMÍLIAS ESCRAVAS
A terceira parte enfoca questões demográficas. Cacilda Machado, Carlos Engemann e Manolo Florentino analisam a configuração demográfica de fazendas no Rio de Janeiro, na Venezuela, em São Paulo e estâncias jesuíticas na Argentina. Comparando principalmente estruturas sexo-etárias, o texto segue a historiografia internacional recente, demonstrando que as famílias escravas não eram meramente residuais nem necessariamente instáveis, mesmo que não seguissem os mesmos arranjos de convivência adotados nos estratos superiores. Quanto mais afastadas as fazendas do mercado de escravos, maiores as possibilidades de reprodução natural do plantel. A seguir, por meio de dados sobre óbitos e enterros de escravos, Carlos Engemann, Marcelo de Assis e Manolo Florentino abordam a estrutura de posse e as hierarquias internas da comunidade escrava no sertão do Rio de Janeiro no séculos 18 e 19. José Roberto Góes avança no estudo das desigualdades e conflitos entre escravos, mostrando que a violência também era inevitável nas relações entre os cativos, libertos e outros agentes das camadas subalternas. Na última parte, o tema comum é a resistência escrava. Alberto da Costa e Silva analisa a Revolta dos Malês, concluindo ter sido mais uma "jihad" do outro lado do Atlântico do que uma revolta de escravos, um pequeno desvio, portanto, dos argumentos clássicos de João José Reis. Márcia Amantino escolhe alguns quilombos do Sudeste mais bem documentados para sugerir uma tipologia, cujo marco mais significativo é a maior ou menor dependência para com o mundo exterior à comunidade escrava. Além da discussão, reedita mapas de quilombos anteriormente publicados pela Biblioteca Nacional. Por último, Durval de Souza Filho apresenta um belo conjunto de fotos de cativos tirados na Casa de Correção da Corte. A segunda e a terceira partes do livro são mais bem integradas entre si, já que abordam temas recorrentes da escola de demografia da escravidão com sede na Universidade Federal do Rio de Janeiro, que, sob a liderança de Manolo Florentino e João Fragoso, tem contribuído para a compreensão desse tema, principalmente no Rio de Janeiro. A obra, como um todo, não segue um trajeto temático rigoroso, mas apresenta trabalhos relevantes, alguns dos quais tiveram versões anteriores publicadas. Embora apresente mais detalhes sobre vários aspectos da escravidão, seu maior mérito não é a inovação, mas permitir ao leitor, em um único e bem acabado volume, visualizar uma parte da diversidade de caminhos tomados pela historiografia recente. Vale salientar que, se a falta de um mais rigoroso encadeamento teórico, cronológico, geográfico ou mesmo temático pode ser um problema, não deixa também de ser um ponto positivo do livro, na medida em que os trabalhos reunidos trazem enfoques, senão opostos, ao menos dissonantes.


MARCUS JOAQUIM MACIEL DE CARVALHO é Ph.D. pela University of Illinois (EUA) e professor de história na Universidade Federal de Pernambuco

Ensaios sobre a Escravidão Manolo Florentino e Cacilda Machado (orgs.) UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4642) 278 págs. R$ 75,00



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