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LÓGICA DA DOMINAÇÃO
Historiador define a atualidade de Machado de Assis
SERGIO MOTA
O crescente interesse de certos historiadores pela obra de Machado de Assis
tem revelado um confronto entre uma
intenção que se organiza a partir de um
contexto histórico e uma estrutura que o
ultrapassa, para redescobrir a contundência política e social das observações
de Machado e sua notável atualidade. Ao
apontar nessa tensão a visão acidamente
crítica do autor sobre o processo de modernização capitalista do Brasil na passagem do Império para a República, a
abordagem histórica das obras de Machado expõe os bastidores e meandros
da pesquisa, que denunciam um certo
darwinismo social que atua como estratégia conservadora de desenvolvimento
do país.
É função do historiador compreender
o sentido das mudanças históricas e organizar os procedimentos de controle do
conteúdo da informação, embora detenha sua atenção no corpo do próprio fato histórico. É justamente o esqueleto
desse processo de rastreamento o principal objeto de discussão de "Machado de
Assis, Historiador". A abordagem percorre duas perspectivas que se complementam e podem ser lidas separadamente, sem prejuízo do duplo olhar engendrado por Sidney Chalhoub (o de
historiador e o de analista literário).
A primeira vertente analisa a literatura
de Machado sob a chancela da história,
na exploração da ideologia senhorial,
voltando o olhar para a relação entre fato
e ficção, o que extrapola a idéia de que a
literatura é apenas fonte porque fornece
subsídios para uma compreensão mais
explícita da história social.
À primeira vista, pode-se compreender tal proposta metodológica como
uma simplificação no modo de encarar o
texto literário, que, necessariamente, não
é prova histórica nem muito menos representação mimética da realidade, ainda mais no caso de Machado, que não se
quer documental nem se sente compelido a fazer da sua obra um testemunho de
época. A eficiência do argumento de
Chalhoub, que atrela seu modo de ler os
romances de Machado à interpretação
da experiência histórica da década de
1870, passa ao largo dessa discussão.
Na análise de "Helena", o historiador
reconhece uma prosa de extraordinário
teor de crítica social e de que forma Machado reescreveu a história do Brasil no
século 19, principalmente na revelação
de determinados mecanismos de poder.
Percebe-se a evidente preocupação de
Chalhoub em reconhecer o texto literário como mecanismo de interpretação
histórica possível e como lugar de confronto, à mesma medida que não o entende, em uma clave reducionista, apenas como descrição fiel de uma realidade
específica.
IMAGINÁRIO SENHORIAL
Ao longo da teorização de Chalhoub revelam-se as redes a partir das quais Machado
abordou a lógica da dominação, centrando suas histórias nos antagonismos
entre senhores e dependentes, dentro de
uma lógica de caráter paternalista que
fez de tal metodologia um princípio de
arte literária, no desvendamento da razão do processo histórico.
Ao reconstituir todo o imaginário senhorial presente no texto de Machado
mediante descrições, deduções, versões e
atualizações de personagens em outros
personagens ou de outros autores, o livro de Chalhoub se apropria, em vários
momentos, do estilo do escritor, principalmente no uso das digressões, no sarcasmo em relação ao número de leitores
e na constatação da lentidão da narrativa
que retarda o desenlace. Machado nunca
se esquecia de que alguém estava lendo
seu texto e, com uma certa intimidade e
condescendência, sempre se dirigia a esse leitor anônimo.
A segunda parte do livro parece, a princípio, estar desconectada do material da
primeira, principalmente porque muda
o enfoque e a perspectiva, sem abandonar o tema -em termos de coerência,
seria mais interessante que ela viesse no
início do livro, para, depois, abordar, na
ficção, a experiência dos dependentes livres e escravos diante da dominação.
Mesmo fora do lugar, essa segunda perspectiva é o grande trunfo de Chalhoub,
porque empreende uma sofisticada pesquisa sobre as atividades do autor de
"Dom Casmurro" no Ministério da Agricultura durante as décadas de 1870 e 80.
Se a primeira parte revelava o crítico literário em busca de ângulos diferentes
do pensamento, a vocação de historiador
encontra ponto de vista original que rastreia na documentação estudada, à guisa
de uma biografia intelectual, a vida de
Machado como funcionário público de
um departamento encarregado de
acompanhar questões relativas à emancipação dos escravos e à política de terras.
Apesar de um certo excesso descritivo
inevitável na reconstrução de um painel
burocrático da redação e aplicação da Lei
do Ventre Livre, de 1871, na organização
de pareceres sobre diferentes visões da liberdade ou nas intervenções pontuais de
Machado em tais processos, sempre a favor do escravo que queria se libertar, o
capítulo pode ser lido, em alguns momentos, como um delicioso romance de
estrutura folhetinesca que amplifica os
meandros da pesquisa histórica e aborda
questões metodológicas negligenciadas
por muitos.
Mais que debates em torno de uma estrutura emperrada e resistente à liberdade, a pesquisa definitiva de Chalhoub ganha densidade histórica e eficácia crítica
não só porque demonstra que Machado
era funcionário público por convicção
ideológica, mas porque reconhece os
graus de motivação do combate a uma
certa barbárie social dos senhores.
A crença irrestrita de Machado no fato
de que o poder público possuía uma função primordial para frear a ambição do
lucro e a concentração de poder da classe
senhorial era uma experiência não só de
formação do cidadão, mas estruturalmente também do ficcionista, o que, de
certa maneira, determinou sua literatura.
SERGIO MOTA é professor do departamento de
comunicação social da PUC-RJ.
Machado de Assis, Historiador Sidney Chalhoub
Cia. das Letras (Tel.0/xx/11/3707-3500)
345 págs. R$ 41,00
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