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A DANÇA BRASILEIRA
A criação do bailado nacional
LEOPOLDO WAIZBORT
"A Formação do Balé Brasileiro" possui três méritos e alguns problemas. Os
primeiros podem ser facilmente indicados: toma a dança como um objeto digno de história e reflexão, procura investigar o problema de uma "dança brasileira" e apresenta materiais há muito adormecidos em jornais e arquivos.
Já os segundos são mais difíceis de
apresentar em curta resenha. Em geral, o
problema é que faltou potencializar as
qualidades com reflexão, faltou refletir
de fato sobre o problema enunciado no
título e modelado historicamente nos
materiais coligidos.
O primeiro equívoco é o uso por demais instrumentalizado da noção de
"formação", em uma história que é concebida institucionalmente: o núcleo da
investigação é uma análise parcial de
duas temporadas do balé do Theatro
Municipal do Rio de Janeiro, em 1939 e
1943. Com efeito, a "formação" de que se
fala é antes análise de caso bastante limitado, e jamais compreensão de uma estrutura histórica em processo.
Trata-se na verdade do surto do período getulista, que, tendo na música expressão bem nítida, encontrou também
na dança um "locus" privilegiado de modelagem: a velha discussão do nacional,
erudito e popular, a criação do bailado
nacional. Uma empresa claramente
ideológica, um empreendimento de Estado que mobilizou coreógrafos, dançarinos, professores, cenógrafos, compositores, regentes, orquestras, escolas de
dança, corpo de baile, críticos, prefeito,
primeira-dama, intelectuais, ministro,
jornais, DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), cinema, cassino, política de boa vizinhança, teatros de variedades e teatro municipal e muito mais.
VILLA-LOBOS IDEÓLOGO
T al dimensão configura desde o mais íntimo a
empreitada, embora o livro só a destaque
em seu capítulo final, quando então já é
tarde demais para mostrar como, o tempo todo, era disso que se tratava. Há mais
de 20 anos, José Miguel Wisnik ("O Coro
dos Contrários", ed. Duas Cidades) demonstrou com clareza o problema no
domínio da música ("casamento de arte
e política" visando a "orquestrar a sociedade dividida"); o mesmo seria de se esperar com relação à dança, pois a proximidade é flagrante, sem desmerecer as
especificidades.
Assim, para exemplificar, ao Villa-Lobos ideólogo (no texto, dos anos 1940,
"Educação Musical"), que propagandeia
o amálgama de canto e dança "para criar
uma nova forma de bailados tipicamente
brasileiros", corresponde, "mutatis mutandis", a bailarina Eros Volúsia, recentemente morta, nomeada por Gustavo
Capanema para expressivo cargo público e cumpridora fidedigna da ideologia
de Estado. É o que se vê em seu texto, tão
programático quanto o de Villa, "A Criação do Bailado Nacional" (1939), transcrito no livro. "Nacionalismo" e "estilização", então, precisariam ser compreendidos em sua tessitura ideológica e artística, entrelaçamento complexo no qual
se constituiria um nexo de forma artística e processo social, velha rubrica deixada de lado pelo autor.
A mesma tessitura pede atenção na
discussão das "danças nacionais", pois
elas mesmas são, uma vez retiradas de
seu contexto de origem (local, "comunitário"), móveis ideológicos, empenhados na construção de uma identidade
"nacional"; ou, dito de outro modo, é
preciso expor a construção interessada
que cria as "danças nacionais", estereotipização como expressão de um "temperamento". Isso, ademais, toca a questão
da "estilização", que é sempre um problema espinhoso e cuja única solução,
creio, seria analisar no maior detalhe a
dança, no conjunto de seus elementos
constitutivos.
E é o próprio autor quem não dá a devida atenção à especificidade da dança,
pois não avança na compreensão do recorrentemente mencionado "corpo que
dança": como sabemos, desde Norbert
Elias e Michel Foucault, produto de relações de poder, social, histórico, e jamais
dado em uma naturalidade inocente. A
criação de um "corpo brasileiro" e sua
relação com o "bailado brasileiro" precisaria ser pensada concretamente: um
corpo específico, criado e adestrado com
uma finalidade específica; o corpo como
resultado, "dominação da natureza no
ser humano", como revelou magistralmente, com relação à dança, um aluno
de Adorno. Mas agora, ao mesmo tempo, lugar da inscrição ideológica, o corpo
encarna o nacional, popular e erudito finalmente pacificados.
Ao revés da interpretação intentada
por Roberto Pereira, a leitura do livro sugere não a "formação", mas sim um processo marcado por descontinuidades e
carência ou dificuldade de acumulação,
com semelhanças, a serem investigadas,
como o que Paulo Emílio Sales Gomes
formulou com relação à "trajetória no
subdesenvolvimento" do cinema nacional, donde ter falado, acima, em "surto".
O sugestivo enfoque de Paulo Emílio diz
mais sobre a (im)possibilidade de formação da dança no Brasil do que o malabarismo de Pereira para descobrir na
dança um processo de formação similar
ao da literatura. Donde minha opinião,
potencializando os anacronismos históricos que perpassam o problema e que
Pereira por vezes assinala, de que não há
propriamente um processo formativo na
dança nacional, mas uma série descontínua e não cumulativa de surtos, um dos
quais o estudado no livro.
A descontinuidade encontra lastro histórico no próprio processo de diferenciação das formas de dança cênica, pois,
quando se intenta criar o "bailado nacional" sob as forças históricas do balé (no
Theatro Municipal), este, em parte esgotado como norma histórica específica, já
se encontrava acometido pela concorrência de outras danças cênicas modernas, que lhe questionavam com enorme
ímpeto histórico e artístico a exclusividade. Mas, com isso, já estamos para além
dos marcos do livro de Roberto Pereira,
o que demonstra uma quarta e grande
qualidade sua, a de abrir campo para
pensar os problemas da dança no Brasil.
LEOPOLDO WAIZBORT é professor de sociologia na USP e
autor de "As Aventuras de Georg Simmel" (ed. 34)
A Formação do Balé Brasileiro - Nacionalismo e Estilização
Roberto Pereira
Ed. FGV (Tel.0/xx/21/2559-5542)
315 págs. R$ 38,00
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