São Paulo, sábado, 13 de março de 2004

Texto Anterior | Índice

A AURA DO PROFETA

Reeditado um clássico dos estudos sociais

LYGIA SIGAUD

"Sociologia e Antropologia" foi publicado em 1950, ano da morte de Marcel Mauss. Coube a George Gurvitch a iniciativa de homenagear o mestre, reunindo seis artigos divulgados entre 1904 e 1934. Os textos dizem respeito à magia (com H. Hubert), às obrigações de dar, receber e retribuir, às relações entre psicologia e sociologia, aos efeitos da idéia de morte, à noção de pessoa e às técnicas do corpo. Na terceira edição (1966), foi incluído um sétimo artigo, sobre a morfologia social entre os esquimós, com H. Beuchat. Apesar do intervalo de tempo entre os textos, dos colaboradores e da diversidade temática, há uma consistência notável no método, que agora me chamou a atenção. Fosse para examinar as trocas, a idéia de morte ou a organização espacial, Mauss trabalhou sempre com as comparações precisas. O que lhe interessava era estudar o tema em sistemas, em sua integridade e em determinadas áreas, para então relacioná-los. Opunha-se assim à comparação de traços isolados, "em que tudo se mistura e em que as instituições perdem toda cor local", que caracterizava o trabalho de antropólogos que o precederam, como Frazer, e que viria a ser reabilitada, adiante, pelas análises formalistas. O caráter a-histórico do estrutural-funcionalismo e a alardeada inspiração durkheimiana dessa corrente têm dificultado a percepção do tempo nos trabalhos de Mauss. Nessa releitura, saltou-me aos olhos a preocupação, forte em nossos dias, com a história social das categorias, com as transformações das formas na história e com a sociogênese dos fenômenos, que no entanto deixaram de interessar aos antropólogos a partir dos anos 40, convertidos que estavam ao formalismo dos sistemas sociais.

DIÁLOGO COM A LITERATURA
Tido como um dos fundadores da antropologia, Mauss tem sido objeto de reverências, de cultos à sua genialidade e ungido da aura de um profeta, como o diz Claude Lévi-Strauss na "Introdução" a este livro. Sem entrar no mérito de suas formidáveis qualidades intelectuais, queria destacar que a obra de Mauss é incompreensível se não levarmos em conta colaboradores como Hubert e Beuchat, cujos nomes nem sequer figuram no índice da edição francesa nem da brasileira. É ainda impenetrável se não considerarmos o quanto o pensamento de Mauss foi se estruturando, tanto a partir do diálogo com a literatura da época -sobre a qual possuía extraordinário controle, evidente nos estudos sobre a dádiva, a idéia de morte e a morfologia esquimó- quanto da retomada das notas de colegas, como as de Robert Hertz, nas quais coligiu os fatos da Polinésia que lhe permitiram arriscar a teoria sobre a dádiva e a eficácia da idéia da morte. Os textos deste volume sinalizam um momento de acumulação primitiva de um capital de teorias, métodos e conhecimentos substantivos. Neles encontramos uma teoria do funcionamento do mundo social em termos das obrigações do dar, receber e retribuir que vai muito além dos fatos empíricos examinados no "Ensaio sobre a Dádiva"; uma teoria da crença que transcende os fatos da magia e permite compreender experiências contemporâneas; os métodos das comparações precisas e do tratar os fenômenos como fatos sociais totais; e um saber a respeito dos efeitos simbólicos da idéia da morte e da noção de pessoa. Os processos sociais são cegos, como dizia Norbert Elias, e os capitais, voláteis, como se observa nas Bolsas de Valores de todo o mundo. Os capitais acumulados por Mauss na construção de um acervo do conhecimento em antropologia sofreram um duro revés quando as teorias de Lévi-Strauss entraram em moda. Antropólogos de toda parte trataram de ajustar-se às interpretações do mestre estruturalista e passaram a repetir as críticas formuladas em sua "Introdução". Mas, ao mesmo tempo em que uma espécie de senso comum em relação a Mauss se propagava e impedia que seu aporte teórico fosse reconhecido e os créditos lhe fossem atribuídos, seus pontos de vista iam entranhando a antropologia, aqui e ali, sobretudo quando se tratava de falar de crença, de eficácia simbólica, de obrigações coercitivas e de representações sobre mundo social. E foi assim que muitos antropólogos e sociólogos, desde os anos 60, têm nos feito crer, tal qual mágicos que estão inventando a roda, quando nada mais fazem senão reutilizar o capital de Mauss. Mas isso também faz parte das regras do jogo da acumulação.


LYGIA SIGAUD é professora de antropologia no Museu Nacional (RJ)

Sociologia e Antropologia Marcel Mauss Tradução de Paulo Neves Cosac & Naify (Tel. 0/xx/11/3218-1444) 535 págs. R$ 69,00



Texto Anterior: A dança brasileira
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.