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A AURA DO PROFETA
Reeditado um clássico dos estudos sociais
LYGIA SIGAUD
"Sociologia e Antropologia" foi publicado em 1950, ano
da morte de Marcel Mauss. Coube a George Gurvitch a
iniciativa de homenagear o mestre, reunindo seis artigos divulgados entre 1904 e 1934. Os textos dizem respeito à magia (com H. Hubert), às obrigações de dar, receber e retribuir, às relações entre psicologia e sociologia, aos efeitos da idéia de morte, à noção de pessoa e às
técnicas do corpo. Na terceira edição (1966), foi incluído
um sétimo artigo, sobre a morfologia social entre os esquimós, com H. Beuchat.
Apesar do intervalo de tempo entre os textos, dos colaboradores e da diversidade temática, há uma consistência notável no método, que agora me chamou a atenção. Fosse para examinar as trocas, a idéia de morte ou a
organização espacial, Mauss trabalhou sempre com as
comparações precisas.
O que lhe interessava era estudar o tema em sistemas,
em sua integridade e em determinadas áreas, para então relacioná-los. Opunha-se assim à comparação de
traços isolados, "em que tudo se mistura e em que as
instituições perdem toda cor local", que caracterizava o
trabalho de antropólogos que o precederam, como Frazer, e que viria a ser reabilitada, adiante, pelas análises
formalistas.
O caráter a-histórico do estrutural-funcionalismo e a
alardeada inspiração durkheimiana dessa corrente têm
dificultado a percepção do tempo nos trabalhos de
Mauss. Nessa releitura, saltou-me aos olhos a preocupação, forte em nossos dias, com a história social das categorias, com as transformações das formas na história
e com a sociogênese dos fenômenos, que no entanto
deixaram de interessar aos antropólogos a partir dos
anos 40, convertidos que estavam ao formalismo dos
sistemas sociais.
DIÁLOGO COM A LITERATURA
Tido como um dos
fundadores da antropologia, Mauss tem sido objeto de
reverências, de cultos à sua genialidade e ungido da aura de um profeta, como o diz Claude Lévi-Strauss na
"Introdução" a este livro. Sem entrar no mérito de suas
formidáveis qualidades intelectuais, queria destacar
que a obra de Mauss é incompreensível se não levarmos
em conta colaboradores como Hubert e Beuchat, cujos
nomes nem sequer figuram no índice da edição francesa nem da brasileira. É ainda impenetrável se não considerarmos o quanto o pensamento de Mauss foi se estruturando, tanto a partir do diálogo com a literatura da
época -sobre a qual possuía extraordinário controle,
evidente nos estudos sobre a dádiva, a idéia de morte e a
morfologia esquimó- quanto da retomada das notas
de colegas, como as de Robert Hertz, nas quais coligiu
os fatos da Polinésia que lhe permitiram arriscar a teoria sobre a dádiva e a eficácia da idéia da morte.
Os textos deste volume sinalizam um momento de
acumulação primitiva de um capital de teorias, métodos e conhecimentos substantivos. Neles encontramos
uma teoria do funcionamento do mundo social em termos das obrigações do dar, receber e retribuir que vai
muito além dos fatos empíricos examinados no "Ensaio
sobre a Dádiva"; uma teoria da crença que transcende
os fatos da magia e permite compreender experiências
contemporâneas; os métodos das comparações precisas e do tratar os fenômenos como fatos sociais totais; e
um saber a respeito dos efeitos simbólicos da idéia da
morte e da noção de pessoa.
Os processos sociais são cegos, como dizia Norbert
Elias, e os capitais, voláteis, como se observa nas Bolsas
de Valores de todo o mundo. Os capitais acumulados
por Mauss na construção de um acervo do conhecimento em antropologia sofreram um duro revés quando as teorias de Lévi-Strauss entraram em moda. Antropólogos de toda parte trataram de ajustar-se às interpretações do mestre estruturalista e passaram a repetir
as críticas formuladas em sua "Introdução".
Mas, ao mesmo tempo em que uma espécie de senso
comum em relação a Mauss se propagava e impedia
que seu aporte teórico fosse reconhecido e os créditos
lhe fossem atribuídos, seus pontos de vista iam entranhando a antropologia, aqui e ali, sobretudo quando se
tratava de falar de crença, de eficácia simbólica, de obrigações coercitivas e de representações sobre mundo social. E foi assim que muitos antropólogos e sociólogos,
desde os anos 60, têm nos feito crer, tal qual mágicos
que estão inventando a roda, quando nada mais fazem
senão reutilizar o capital de Mauss. Mas isso também
faz parte das regras do jogo da acumulação.
LYGIA SIGAUD é professora de antropologia no Museu Nacional (RJ)
Sociologia e Antropologia Marcel Mauss
Tradução de Paulo Neves
Cosac & Naify (Tel. 0/xx/11/3218-1444)
535 págs. R$ 69,00
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