São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999
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Mea philosophia


Marilena Chaui e Bento Prado Jr. dialogam sobre a filosofia de Espinosa


BENTO PRADO JR.

Em breve estará à disposição dos leitores o novo livro de Marilena Chaui sobre Espinosa. O Jornal de Resenhas propôs-me a tarefa de apresentá-lo ao público apoiado na viva voz da autora.
Com a entrevista, cremos, fica clara a estrutura da obra, destinada a três públicos diferentes, e a necessidade de sua extensão. Descobrimos também seu lugar na tradição dos estudos espinosanos no Brasil, a partir da obra inaugural de nosso mestre comum, Lívio Teixeira. Assim como podemos vislumbrar a singularidade da leitura proposta por Marilena, no que tem de comum e no que se afasta de empresas contemporâneas como as de Gilles Deleuze, Antonio Negri, Etienne Balibar e Alexandre Matheron. A própria idéia de "nervura do real" é esclarecida, mostrando o alvo último do trabalho.
Além do mais, a entrevista restitui o prazer da conversação, cada vez mais raro, mas que tem a ver essencialmente com a filosofia, desde seu nascimento.
Bento Prado Jr. - É notório que seu livro é muito longo. Pergunto, então, pela razão dessa extensão. Um leitor malévolo poderia afirmar que seria possível dizer as mesmas coisas em menos páginas. Não deve ser o caso, e sei que a forma do livro exprime sua intenção mais profunda. Então, por que esse volume?
Marilena Chaui -
Quando pensei esse livro, eu o inseri numa série que inauguraria uma biblioteca espinosana brasileira e seria constituída pela publicação do livro de Lívio Teixeira (deveria ter sido o primeiro da série, o que não foi possível), seguido do meu e dos de dois colegas do Rio, Lia Levy e Marcos Gleizer.
Como a intenção da série é formadora e informadora, meu livro se dirige a três públicos diferentes e, por isso, é extenso. Dirige-se a um público que não conhece história da filosofia nem Espinosa, mas já ouviu falar dele e poderia ter interesse em ler sobre esse curioso filósofo. Para esse público foi preciso oferecer muita informação sobre história da filosofia, Espinosa e a Europa do século 17. Há um segundo público, que conhece a história da filosofia, mas não está familiarizado com Espinosa. Para esse foi necessário mostrar sua inserção nas tradições filosóficas judaicas, cristãs, antigas, medievais e modernas, de modo que ficasse claro por onde passa a subversão espinosana. E o terceiro público é o dos especialistas, para os quais fica clara imediatamente qual é minha interpretação, contra quais e a favor de quais eu me coloco. Se tivesse escrito só para esse público, o livro certamente seria bem menor.
Há mais duas razões para a extensão do livro. A primeira é a maneira como entendo o trabalho em história da filosofia, isto é, mostrando que uma filosofia interroga a experiência de seu tempo, é constituída por essa experiência e é também constitutiva dela, de sorte que a história não é um mero contexto externo à obra, e sim que ela precisa emergir da própria obra, esclarecendo-se nela e a esclarecendo também. A história da Holanda, a história do pensamento judaico, a história da modernidade filosófica participam da constituição da obra de Espinosa e essas informações tiveram que ser dadas para que ficasse claro para o leitor que a relação entre obra e história é interna.
A segunda razão é o estilo de Espinosa. Trata-se de um autor extremamente conciso. Sua obra magna, a "Ética", tem cem páginas! Com exceção do "Tratado Teológico-Político", suas demais obras são curtas. Esse laconismo obriga seu comentador a mergulhar na erudição e na filologia para poder explicitar o implícito. De todo modo, não estou sozinha em extensão textual. O comentário de Martial Guéroult à parte primeira da "Ética" gasta 698 páginas para analisar 30 de Espinosa. Via de regra, os livros sobre Espinosa tendem a ser longos, porque o intérprete precisa explicitar textos de elegante concisão, fina ironia e profundidade, aceitando um ditado que volta e meia Espinosa menciona: "Para bom entendedor, meia palavra basta".
Prado Jr. - Já que, como Espinosa, você começa "in media res", dispensando uma introdução "didática", quero perguntar-lhe quais são as etapas de seu livro e qual seu alvo final. Sobretudo porque não conhecemos a segunda parte ou o desfecho do trabalho.
Chaui -
A intenção do livro é dupla. Ergue-se contra a tradição interpretativa que declara que numa filosofia da imanência (isto é, da existência de uma única substância no universo) não pode haver seres singulares reais e que também declara que, numa filosofia que afirma a necessidade absoluta das causas e leis da realidade e que exclui a idéia de livre-arbítrio, não pode haver liberdade, uma vez que esta exige a existência do contingente e do possível, e da vontade que escolhe.
Minha tarefa é, primeiro, mostrar como a imanência de Deus à natureza ou a existência de uma única substância no universo é a condição para haver seres singulares reais; e, em seguida, mostrar como se dá a construção da concepção judaico-cristã da liberdade a partir da imagem da ação divina como uma ação voluntária contingente e da ação humana como ação voluntária contingente, construção que produz uma oposição entre necessidade e liberdade; e, por fim, depois de mostrar como se dá a oposição imaginária entre liberdade e necessidade e a articulação imaginária entre vontade e liberdade, mostrar como Espinosa desconstrói esse imaginário e como somente em sua filosofia ganham sentido as idéias de liberdades divina e humana.
O "télos" do livro depende do eixo à volta do qual examino as teses espinosanas, mostrando que a filosofia de Espinosa realiza uma subversão filosófica sem precedentes porque é a elaboração rigorosa e sem falhas do que chamo de ontologia do necessário. Trata-se de uma subversão, porque a teologia judaico-cristã, a metafísica moderna e a ontologia contemporânea são dimensões e etapas da construção do pensamento ocidental hegemônico, isto é, a ontologia do possível, inteiramente recusada e criticada por Espinosa.
Passo agora à questão da arquitetura do livro.
Ele está estruturado para mostrar como é construída a ontologia do necessário e, portanto, centrado no conceito de imanência e de unicidade substancial. Isso é feito sob a forma de um diálogo conflituoso de Espinosa com a tradição filosófica, que vai sendo demolida. Trabalho com a idéia da obra como um pensamento que se realiza em dois registros simultâneos: como contradiscurso que demole o instituído e como discurso que labora um pensamento novo. Uma vez demonstrada a existência dos seres singulares e afastada a noção imaginária de vontade livre, mostrarei futuramente como Espinosa concebe a relação entre a alma e o corpo e como pensa a atividade e a passividade corporal e psíquica, de maneira a vermos como se constitui a idéia de liberdade humana e por que é inseparável da idéia de necessidade. Para Espinosa, o oposto à liberdade não é a necessidade, mas a contingência, pois é lá onde há contingência que existe servidão.
Abro o livro com uma "Introdução", na qual me refiro à pluralidade de interpretações da obra espinosana. Em seguida vem a "Parte 1", "A Construção do Espinosismo". O tema dessa parte não é Espinosa construindo sua obra, e sim a construção das interpretações de sua obra.

A OBRA
A Nervura do Real Marilena Chaui Companhia das Letras (Tel.011/866-0801) 944 págs. (volume 1) e 296 págs. (volume 2). R$ 69,00




Prado Jr. - Posso interrompê-la? Recordo-me da primeira pergunta que lhe fiz em seu concurso para professora titular: apoiado na distinção tradicional entre marxismo, marxologia, marxianismo, perguntei se você se considerava espinosista, espinosana ou espinosóloga.
Chaui -
Nesse livro uso o seguinte léxico: espinosano, espinosana, espinosista e espinosismo. Espinosano e espinosana se referem ao discurso e ao pensamento de Espinosa. Espinosista se refere às interpretações referentes a Espinosa. E espinosismo se refere à suposição de que exista uma doutrina de Espinosa. Espinosista e espinosismo são usados em sentido pejorativo, Espinosano e espinosana com sentido afirmativo. Aliás, essa distinção vem daquela pergunta que você me fez.
"Construção do Espinosismo": com isso pretendo mostrar como foi produzida uma imagem do filósofo e de sua obra, imagem que foi uma interpretação inicial de onde provieram todas as subsequentes. Procuro mostrar que a produção da imagem do espinosismo se inicia com Espinosa ainda vivo e, para isso, examino as cartas anteriores à escrita da "Ética". Os correspondentes holandeses de Espinosa, ao lerem essas duas primeiras obras numa chave cristã, se escandalizaram, dando início ao esboço da figura do filósofo como fatalista e ateu, mas também, e contraditoriamente, como entusiasta (portanto, um místico).
A seguir, mostro como essa imagem se consolida após a morte de Espinosa, quando é publicada a "Ética". Examino a reação dos filósofos -Leibniz, Henry More e Malebranche- e, depois, o texto daquele que dá origem à tradição interpretativa que vai do século 17 até nossos dias, o verbete "Espinosa", do "Dicionário" de Pierre Bayle. Desse verbete provêm as interpretações leibniziana, da Ilustração, hegeliana, kantiana, ou seja, a fortuna crítica da obra de Espinosa não nasce da leitura dessa obra, mas da leitura do verbete de Bayle.
Prado Jr. - Posso interrompê-la mais uma vez? A figura do "fatalista", essa expressão é polêmica e insultuosa, essencialmente antiespinosista. Mas, quando Diderot escreve "Jacques le Fataliste", não assume ele o contrário? Algo como a boa face do fatalismo?
Chaui -
Sim. A situação do século 18 é curiosa. A obra de Espinosa vai suscitar um fascínio muito grande, pois responde ao materialismo do período, ao mesmo tempo em que vem com o peso de uma tradição interpretativa já constituída. Não há nenhum autor do século 18 que não se defina com relação a Espinosa porque ele é a atração e a repulsa máximas, em grande parte produzidas pelo verbete de Bayle. Esse verbete é complicadíssimo, porque é uma fina peça de retórica judiciária na qual é montado um processo contra Espinosa a fim de explicar a existência de uma figura, até então impensável, a do "ateu especulativo" (admitia-se a existência do ateu prático), pois não pode haver pensamento nem especulação filosófica ali onde não houver o fundamento verdadeiro e último, Deus.
Um ateu, como dizia Descartes, pode aprender matemática, mas jamais terá como provar que conhece a verdade. Espinosa se torna um assombro porque seria um ateu filósofo. Um dos grandes debates políticos herdados pelo século 17 é o da possibilidade de uma república atéia. Julgada impossível até então (não há vida comunitária e virtuosa sem Deus), começa, graças sobretudo aos libertinos, a ser considerada possível e virtuosa . Sob esse ponto de vista, os primeiros leitores da obra de Espinosa não têm dúvidas em julgá-lo libertino ou ateu prático. Todo o problema aparece, porém, com a "Ética" e o "ateísmo especulativo", cujo núcleo e objeto da crítica do século 17 ao 20 é, justamente, o fatalismo, isto é, a imagem cristã do que chamo de ontologia do necessário.
Prado Jr. - Porque o objeto da especulação (essência da "metafísica") é Deus, a origem...
Chaui -
Sim. Um ateu prático, ou seja, moral, é coisa corriqueira. Impensável e monstruosa é a figura de um ateu especulativo. Diante do desconcerto que provoca, compreende-se que Bayle conclua o verbete dizendo que Espinosa é louco. Por isso, conclui, ninguém precisa se preocupar com essa filosofia insidiosa e perversa que atormenta os espíritos cristãos, pois se trata da obra de um louco manso, de alguém que, se tivesse levado a sua loucura até o fim, seria um fatalista coerente e teria ficado em silêncio.
Se do verbete de Bayle nasce o ateu fatalista, na interpretação de Henry More surge o melancólico entusiasta, aquele que se imagina imerso na divindade. Ora, no século 17, entusiastas são todas as seitas e partidos revolucionários radicais que querem, no dizer de Christopher Hill, "virar o mundo de ponta-cabeça". Assim como o fatalista é um perigo para religião e o Estado, os entusiastas também o são, o que significa que Espinosa é perigoso em qualquer roupagem.
Na segunda parte procuro acompanhar Espinosa elaborando sua filosofia. A tradição considera que ela é uma mescla de racionalismo cartesiano com neoplatonismo e estoicismo e de elementos da teologia judaica. O que procuro mostrar é a torção conceitual a que Espinosa submete o legado cartesiano, medieval e judaico, isto é, o pensamento da transcendência e da contingência. Em suma, investigo como o pensamento espinosano vai sendo elaborado no embate com a tradição filosófica.
Prado Jr. - No nível do tratado ou da suma tradicionalmente definidos, desde a Idade Média? Quase como "quaestiones disputatae"...
Chaui -
Sim, pois ali Espinosa não esconde o tom polêmico, mas o enfatiza. Essa ênfase é preciosa para o intérprete porque lhe permite acompanhar o nascedouro da obra em seu tempo próprio, no embate com outras.
Feito isso, passamos à exposição da obra já elaborada. Por isso a terceira parte se intitula "Mea Philosophia", expressão que Espinosa emprega para referir-se à sua filosofia, ou melhor, à "prima philosophia", pois jamais emprega o termo "metafísica". A obra magna, a "Ética", é escrita à maneira dos geômetras. Então era preciso explicar ao leitor o que é ordem geométrica no século 17 e por que a geometria espinosana não é a cartesiana, nem a hobbesiana, nem a matemática leibniziana.
Assim, na introdução, dialogo com os outros comentadores da obra; na primeira parte, Espinosa dialoga sobre teologia política com seus contemporâneos; na segunda, Espinosa subverte a tradição e o legado cartesiano; na terceira, o pensamento de Espinosa se apresenta nos textos escritos para seus amigos (o "Tratado da Emenda" e cartas) e em sua obra magna, a "Ética", como ontologia do necessário e da liberdade humana.
Meu empenho é mostrar que estamos diante de uma subversão filosófica porque vemos nascer e expor-se a ontologia do necessário, de tal maneira que a dimensão afirmativa da obra de Espinosa é também a demolição do núcleo do pensamento ocidental judaico-cristão, qual seja, uma ontologia e uma metafísica do possível cujo pressuposto é uma teologia da transcendência de um Deus pessoal, dotado de intelecto e de vontade. Com isso fica preparado o terreno para que se compreenda como e por que há seres singulares reais, por que a ação desses seres é necessária, como necessária é sua causa (Deus) e por que é essa necessidade causal a condição de sua liberdade efetiva.
Prado Jr. - Vamos voltar à acusação de fatalismo ou de necessitarismo... Você poderia explicar ao leitor de que modo Espinosa destrói a idéia de livre-arbítrio sem abrir mão da de liberdade?
Chaui -
Vamos lá. A questão da contingência é posta de maneira diferente da aristotélica com o surgimento do pensamento judaico-cristão, quando aparece a noção de criação do mundo. Embora mantendo a concepção aristotélica da contingência, o pensamento judaico-cristão terá que deslocá-la para a própria ação de Deus, pois não pode conservar a idéia da necessidade eterna da natureza, uma vez que o mundo foi criado e a criação é efeito de uma causa contingente, isto é, a livre vontade de Deus, a qual poderia não ter criado o mundo se não o quisesse. Se a existência do mundo fosse necessária, julgam teólogos e filósofos, estariam aniquiladas a onipotência e a liberdade divinas.
A obra de Espinosa é a destruição da idéia de uma causa voluntária que age contingentemente, isto é, de uma vontade -divina ou humana- cuja liberdade seria provada pela contingência de suas ações, isto é, pelo poder fazer ou deixar de fazer alguma coisa. A demolição se realiza em duas etapas. Na primeira, Espinosa oferece as causas que levam a imaginação humana a construir essa imagem de um Deus como pessoa transcendente, mera projeção de uma imagem do homem como livre-arbítrio, pois tanto essa imagem de Deus como a do homem são ilusórias. Na segunda etapa, o filósofo demonstra que Deus é Deus porque age necessariamente, segundo as leis necessárias de sua essência e de sua potência. A tradição sempre afirmou que Deus age de acordo com sua vontade onipotente, com seu intelecto onisciente ou com a junção de ambos.
Espinosa demonstra que essas noções são imaginárias, que Deus não é intelecto nem vontade, que a perfeição divina são as leis necessárias da essência divina e que a liberdade divina é o poder de Deus para autodeterminar-se à ação, e jamais um ato de escolha entre possíveis. Assim, ao deslocar o lugar da ação divina e o modo dessa ação, Espinosa desmantela a idéia de uma causalidade contingente. No tocante aos seres humanos, a liberdade também não se localiza numa vontade livre que delibera e escolhe entre possíveis contrários. Numa filosofia da necessidade absoluta, a liberdade humana também será, como a divina, o poder de autodeterminação para agir, ou o que Espinosa chama de "causa adequada". Somos livres quando a ação por nós realizada decorre da necessidade de nossa natureza, da força interna de nosso ser e não do poderio de causas externas sobre nós. Justamente porque somos modificações do ser absoluto, nossa liberdade é como a divina. Em suma, a liberdade humana é a força interior de nosso corpo e mente para produzir e acolher a pluralidade simultânea de movimentos corporais, afetos e idéias. A liberdade não é escolha e sim autodeterminação necessária e riqueza de vida. A consequência é imediata: contingência significa ausência de ação; é a passividade submissa ao poder de forças externas inesperadas e imprevisíveis. Numa palavra, Espinosa demonstra que a articulação entre liberdade e contingência destrói a liberdade, em vez de afirmá-la. E se teimamos em opor necessidade e liberdade é porque fomos acostumados pela tradição teológico-política a identificar necessidade com autoridade ou decreto, e liberdade com desobediência.
Prado Jr. - Eu havia cancelado uma pergunta a que devo retornar. É importante que você situe seu trabalho na tradição dos estudos espinosanos no Brasil, entre a obra inaugural de LívioTeixeira e a dos pesquisadores mais recentes.
Chaui -
Na origem do meu trabalho estão os cursos do professor Lívio no departamento de filosofia da USP e a sua tese sobre Espinosa, ainda não publicada.
Quando resolvi fazer filosofia, estava buscando respostas a questões de natureza religiosa. Era uma cristã perplexa. No exame vestibular, na prova oral de filosofia, o professor Lívio me perguntou por que eu queria estudar filosofia e lhe expliquei que era por isso. Ele me disse que a filosofia não iria dar-me essas respostas. Passei no vestibular e, no segundo ano da graduação, segui o curso que ele ministrava sobre a "Ética". A última aula foi dedicada a uma análise da "Parte 5" dessa obra. Quando o professor Lívio terminou a exposição, eu, do fundo da classe (e, você se lembra, naquele tempo, nós éramos muito contidos, a relação em classe era muito cerimoniosa), não me contive e exclamei: "Mas, professor, é isso que eu procurei a vida inteira, procurei alguém que me dissesse que é possível viver sem culpa e que a felicidade é possível". Foi assim a minha iniciação a Espinosa. Amor intelectual à primeira vista...
Quando comecei a estudar Espinosa, fiquei quase paralisada, pois não conseguia entender uma única palavra. Era impenetrável. Quando o departamento de filosofia decidiu que eu deveria fazer meu doutorado na França, você e (José Arthur) Giannotti sugeriram que eu trabalhasse sobre um clássico e decidi que seria Espinosa. Minha relação com Espinosa é coisa antiga, nascida pelo fascínio por essa filosofia de um Deus imanente à natureza, por essa ética da liberdade e da felicidade que coloca a culpa, o remorso, a humildade do lado das paixões tristes e da servidão, e vê na alegria nossa verdadeira salvação...
Quando comecei meu trabalho, em 1968, pretendia que fosse uma continuação da tese do professor Lívio. Foi assim que trabalhei inicialmente com Victor Goldschmidt, na França. Mas quando voltei para o Brasil, logo depois do AI-5, achei que precisava pensar a tirania, a violência política, e por isso meu trabalho se voltou para o "Tratado Teológico-Político" e para o "Tratado Político", de tal maneira que a "Ética" servia apenas para assegurar o fundamento das teses desse dois tratados.
Prado Jr. - Funcionava como um idéia reguladora...
Chaui -
Sim. Eu estava tentando, por meio de Espinosa, pensar o Brasil. Com ingenuidade de neófita, imaginava que essa relação poderia ser imediata. Mas a guinada foi muito importante para mim, porque, ao ler o Espinosa dos tratados políticos apoiados na ontologia, pude perceber que a própria ontologia espinosana foi elaborada como embate efetivo com uma tradição poderosíssima, a da teologia política.
Prado Jr. - Entre parênteses, talvez não seja apenas uma contingência da situação brasileira, pois, se não me engano, a leitura de Espinosa nos anos 60, não só no Brasil, redescobriu essa dimensão política...
Chaui -
Não é bem assim. O que se fazia, sobretudo por causa de Althusser, era a remissão de Marx a Espinosa, mas nunca inteiramente explicitada e esclarecida. Nos anos 60, há os trabalhos de Guéroult e Deleuze: o primeiro não se interessou pela questão política e o segundo empenhou-se em antever Nietzsche em Espinosa. É nos anos 70, com os livros de Alexandre Matheron e Antonio Negri que se inicia realmente uma leitura da obra política de Espinosa e uma interpretação política da própria "Ética". Quando fiz o meu ingênuo doutoramento, essas obras também estavam em preparação. Mas você tem toda razão em dizer que os anos 60 estimularam uma leitura política de Espinosa, uma leitura de esquerda.
Prado Jr. - É isso que estou dizendo. Não é só a circunstância de ditadura no Brasil, é algo mais planetário.
Chaui -
Concordo. Mas ainda considero que o melhor trabalho para uma iniciação ao pensamento de Espinosa é o do professor Lívio, que recomendo como leitura obrigatória para todos os que vêm estudando Espinosa comigo. Quanto à minha trajetória, fui caminhando e me distanciando, não do que ele diz, mas de suas preocupações.
Sobre a nova nova geração -Lia Levy, Marcos Gleizer e Ulisses Pinheiro, que foram formados por Raul Landim e depois trabalharam com Jean-Marie Beyssade-, o mais importante para ela é a relação entre Espinosa e Descartes, e a ênfase recai mais sobre as questões epistemológicas e as repercussões dessas questões sobre a ética, enquanto estou mais preocupada com a ontologia, a ética e a política. Como eles e eu orientamos trabalhos sobre Espinosa, em breve estará consolidada uma tradição brasileira que se pauta pela aceitação de perspectivas diversas de análise.
Prado Jr. - Depois de ter situado seu trabalho dentro da tradição brasileira de espinosologia, eu pediria para você se situar em relação a alguns comentadores recentes de Espinosa. Estou pensando no artigo de Antonio Negri, que saiu justamente na Folha (Mais!, 28/02/99), no qual ele fala de Espinosa como antídoto ao pensamento pós-moderno. E de fato, como você mesmo disse, há nos escritos de Negri, e também nos livros de Matheron e Deleuze, uma nova leitura de Espinosa, até porque o Espinosa de Deleuze é um nietzschiano, mas de esquerda.
Vejamos o texto do Negri. Ele afirma que tal releitura consiste em cinco revisões da interpretação tradicional que Hegel realizara, que subvertia a imagem de um Espinosa panteísta, acósmico e a-histórico. Você disse que, numa determinação negativa da filosofia de Espinosa, deve-se primeiro observar que essa filosofia não é panteísmo, nem emanatismo, não é neoplatonismo, nem monismo e tampouco acosmismo. Quer dizer, você está tentando retirar a filosofia de Espinosa da roupa pronta que lhe foi colocada por pensadores fiéis a tradições com os quais ele rompia. Aqui, creio, aparentemente há semelhanças com os trabalhos de Matheron e Deleuze, que também caminham para afirmar que não há acosmismo, panteísmo e todas essas coisas que eram consideradas ou defeitos ou qualidades de Espinosa.
Além disso, todos eles também insistem na dimensão política de Espinosa. Uma dimensão que, pelo menos para mim, que conhecia apenas o Espinosa de nosso mestre Lívio Teixeira, foi uma surpresa. (Foi uma descoberta quando li seus primeiros textos sobre o Espinosa do "Tratado Teológico-Político".) Enfim, gostaria que você falasse um pouco sobre o que há de parecido e de diferente entre sua leitura e essas outras.
Chaui -
Os estudos mais recentes sobre Espinosa concordam no que recusam: Espinosa não é panteísta, monista ou acosmista. Mas a concordância termina aí, porque disso resulta a busca de novos termos para qualificar a filosofia espinosana e, de modo geral, não concordo com os termos propostos, pois acarretam problemas que a própria obra não propõe. Além disso, muitos conservam, por exemplo, a afirmação do monismo, porque para Espinosa há uma única substância no universo. Ora, ele só seria monista se a substância absolutamente infinita fosse constituída por um único atributo (por exemplo, seria apenas extensa ou seria apenas pensamento), mas ela é constituída por infinitos atributos infinitos, é infinitamente complexa e diferenciada e, portanto, o termo "monismo" é um contra-senso. No caso da recusa do acosmismo (o termo é de Hegel, mas a origem dessa idéia encontra-se no verbete de Bayle, coisa que ninguém havia levado em conta), você pode chegar a conclusões espantosas. Por exemplo, Matheron termina seu primeiro livro sobre Espinosa comparando a estrutura do universo proposta pela "Ética" e o cosmos proposto pela árvore sefirótica da cabala judaica, deixando de lado que essa árvore (mística e não geométrica) tem como pressupostos a transcendência radical do absoluto e a idéia de emanação, isto é, duas idéias criticadas e rejeitadas por Espinosa.
Prado Jr. - Seriam as nervuras daquela árvore...
Chaui -
Não exatamente, pois a idéia de nervura afirma a imanência, recusando a transcendência e a emanação. Ora, essas duas idéias são inseparáveis da noção de graus de realidade ou de hierarquia dos seres, graus e hierarquia criticados e recusados por Espinosa. Dizer que Espinosa não é acosmista não é dizer que sua filosofia manteria a idéia da natureza como cosmos, e sim mostrar que o conceito de "ordem necessária da natureza" se refere à atividade real de produção de todos os seres pela causalidade imanente dos atributos da substância e de seus modos infinitos, que essa atividade constitui a estrutura da realidade e que esta é infinita. Exatamente porque a realidade é infinita e auto-ordenada é que não se pode falar nem em acosmismo nem em cosmos.
Ainda com relação à recusa do acosmismo, também não é possível aceitar o que diz Negri, que considera que a evolução política de Espinosa teria sido tal que os infinitos atributos infinitos, que constituem a substância absolutamente infinita e cujo papel é essencial na ontologia da "Ética", iriam perdendo função, assim como os modos infinitos, que também iriam perdendo sentido, restando, ao fim e ao cabo, uma filosofia materialista fundada apenas nas ações dos modos finitos, isto é, dos corpos e dos espíritos finitos...
Prado Jr. - Os modos finitos de produção?
Chaui -
Sim, os modos finitos de produção. A idéia que sustenta essa interpretação é a de que o pensamento político de Espinosa, em sua particularidade concreta, não necessitaria dos conceitos metafísicos de atributo e de modo infinito, os quais seriam vestígios da influência neoplatônica renascentista sobre o jovem filósofo, abandonados por ele à medida que se tornaria materialista. Com isso, considera-se uma parte ponderável da ontologia espinosana descartável e residual. Independentemente do que se encontra de fato escrito na "Ética", parece que há aqui um esquecimento grave, isto é, a afirmação feita pelo "Tratado Político" de que essa obra está fundada na "mea philosophia", portanto, na ontologia da "Ética".
Então, o fato de que hoje os intérpretes unanimemente concordem em rejeitar o rótulo de acosmismo não significa que estejamos dizendo o mesmo, porque alguns recuperam a noção de cosmos e outros a demolem à custa do abandono de conceitos-chave da ontologia, e eu me recuso a fazer isso.
Prado Jr. - Falemos agora do título de seu livro, "As Nervuras do Real". Eu tenho a impressão de que o título quer sublinhar a ênfase no chão ontológico do pensamento. O que pode significar a nervura do real? A metáfora que me parece mais evidente é a nervura de uma folha, a estrutura de uma árvore. A nervura do real parece, portanto, indicar uma espécie de antikantismo, isto é, algo contra a suposição de que exista um sujeito cognitivo ordenador, de um lado, e uma realidade informe, de outro, uma poeira de dados que é estruturada pelo ato de conhecimento. De uma certa maneira, o real se põe a si mesmo, ele se auto-estrutura; ou seja, a nervura do real quer dizer que o próprio real organiza-se, estrutura-se, distribui-se em singularidades regulares. Pergunto-me: não há aí um eco de Merleau-Ponty?
Chaui -
A referência merleau-pontyiana do título é proposital, porque Merleau-Ponty também fala em nervura da folha e porque, no correr do livro, me valho de uma expressão dele, inseparável da idéia de nervura: "O ser de indivisão". A substância espinosana (Deus ou a natureza) é a ação imanente de um ser que se autodetermina e de autodiferencia sem se separar de si mesmo. E, de fato, nervura do real pretende assinalar, desde o começo, que estamos numa filosofia que não trabalha com a cisão sujeito-objeto, não considera, à maneira cartesiana, que a consciência seja um princípio da filosofia, e não admite, à maneira kantiana, que o real seria a multiplicidade bruta a ser organizada e ordenada como fenômeno pelo sujeito do conhecimento. Nervura do real e imanência significam a realidade auto-ordenada e auto-estruturada por um princípio inteligível que é sua própria ação e sua própria existência. Essa inteligibilidade plena do real é afirmada pela primeira definição da "Ética", a da "causa de si".


Bento Prado Jr. é professor da Universidade Federal de São Carlos e autor, entre outros livros, de "Presença e Campo Transcendental: Consciência e Negatividade na Filosofia de Bergson" (Edusp).


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