São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999
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Significados da vida

NELIO BIZZO

Por que razão piscamos os dois olhos ao mesmo tempo? De um ponto de vista essencialmente lógico, não faz muito sentido em privar-se de informação visual por tanto tempo -são 50 milissegundos a cada curto espaço de tempo. Seria muito mais razoável piscar um olho de cada vez, preservando a lavagem da córnea, mantendo a atenção por todo o tempo da vigília. Afinal de contas, algo que acontece "num piscar de olhos" pode ser até mesmo fatal e contará com nossa mais absoluta cegueira, por motivos meramente mecânicos. Uma pedra atirada em nossa direção avança cerca de um metro "num piscar de olhos", mas nem tenistas como Agassi ou Gustavo Kuerten conseguem modificar seu padrão automático de piscar de olhos, mesmo durante a recepção de um saque que pode definir um "game". Como explicar esses padrões biológicos inexoráveis?
Existem basicamente duas posições entre os biólogos. Uma delas é buscar explicações acerca da necessidade de tal padrão, isto é, busca-se refúgio na filosofia natural e se admite que a existência de tal padrão tem uma lógica, uma razão de ser. A função do filósofo natural é transformar existência em razão, dizia Schelling. Trata-se então de buscar as razões do padrão estroboscópico da visão humana, que deveria elucidar por que certos padrões são bons para toda a espécie Homo sapiens (com exceção dos tenistas...).
Para outros biólogos, no entanto, esse caminho não é correto, por diversas razões, entre elas o pressuposto de que todos os padrões apresentados pelos seres vivos foram resultado de seleção natural. Para tais biólogos, embora muitos padrões biológicos admitam explicações lógicas (e é por isso que muitos biólogos têm emprego), nem sempre é possível explicá-los pela lógica da necessidade ou da seleção natural. É possível que certos padrões sejam apenas resultado de acaso ou de alguma contingência física, química ou biológica.
O piscar simultâneo dos olhos deve ter vantagens fisiológicas ou genéticas, afirma o primeiro grupo. E, se a vantagem for genética, no sentido biológico, isso significa que o primeiro grupo de biólogos pode ir adiante e explicar não apenas a razão da existência da característica, mas também a razão de sua existência evolutiva. O primeiro grupo de biólogos esmera-se em aplicar (e criar) teorias evolutivas para explicar os padrões biológicos da atualidade. No entanto, não há nada que possa enervar mais os evolucionistas do segundo grupo do que historinhas evolucionistas forçadas, com tanta lógica quanta falta de evidências empíricas. Por exemplo: "Existiam, no passado, seres humanos que piscavam os olhos de forma alternada e outros que piscavam os olhos de forma sincronizada. Com o tempo, os sincronizados tiveram mais descendentes, que acabaram por suplantar em número os alternados, que acabaram extintos". Trata-se de uma bela historinha ("just so stories"), tão bela quanto falsa (foi criada especialmente para esta resenha), isto é, pode até ser verdadeira, mas o problema é que olhando para o crânio de um australopiteco ou de um neandertal não há como deduzir seu padrão de piscar de olhos.
Os biólogos evolucionistas do segundo grupo dizem, em sua defesa, que a evolução biológica implica necessariamente a existência de contingências, como decorrência da ancestralidade. Por que razão Darwin tinha olhos claros? É inútil tentar provar que, para um cientista evolucionista, é melhor ter olhos claros, que eles trazem alguma vantagem seletiva, ou que podem ajudar a perceber melhor o entorno. Darwin tinha olhos claros porque nasceu com eles, da mesma forma que poderia ter nascido com olhos escuros. Ele era alto, mas poderia ter sido baixo; era barbudo, mas publicou seu primeiro trabalho científico na Escócia, quando ainda era um garoto imberbe. Assim, é possível compreender as escaramuças entre os dois grupos: cada um deles se define como o real defensor do evolucionismo ao mesmo tempo em que rotula os adversários como "inimigos de Darwin".
Em "A Perigosa Idéia de Darwin", Dennett pretende mostrar que as características biológicas humanas são lógicas e podem ser explicadas de forma racional. Até mesmo habilidades complexas como a linguagem ou estruturas abstratas como a mente humana, da mesma forma que qualquer característica genética da espécie humana, podem ser explicadas pela seleção natural concebida como algoritmo.
O livro tem início com uma descrição da lógica darwinista, mas Dennett se engalfinha no "whiggismo" de seus conselheiros biológicos. Ele passa boa parte do início do livro tentando separar "ideologia política" de "lógica". Como fruto dessa empreitada, foram concebidas frases como: "A idéia de Malthus de que Darwin precisava é puramente lógica. Nada tem a ver com ideologia política, (...)" (pág. 41). No final do livro, quando estarão devidamente crucificados todos os heréticos que não aplicam o princípio da seleção natural a absolutamente tudo, já terá sido esquecida a pequena nota inserida ao pé da pág. 47: "Darwin não insistiu que a seleção natural explicava tudo: era o "principal, mas não exclusivo, meio de modificação" ("Origem", pág. 6)". Dennett adota a perspectiva historiográfica dominante nos últimos 99 anos, varrendo as idéias hereditárias de Darwin para debaixo do tapete (pág. 20). Trata-se de um detalhe fundamental no argumento de Dennett, que pretende nos convencer de que Darwin sabia que a seleção natural dispensava qualquer outra explicação. Mas Darwin escreveu uma carta a Lyell, oito anos depois de ter publicado "Origem das Espécies", referindo-se à sua teoria hereditária (a pangênese): "Este é o meu caso com a pangênese (que tem 26 ou 27 anos de idade), mas estou inclinado a acreditar que se ela for considerada como uma hipótese provável terá sido dado um importante passo na biologia".

A OBRA
A Perigosa Idéia de Darwin Daniel C. Dennett Tradução: Talita M. Rodrigues Rocco (Tel. 021/507-2000) 610 págs., R$ 55,00



Pela narrativa de Dennett, Darwin nada mais teria a acrescentar depois de ter apresentado a seleção natural, o que de fato ocorreu em 1859. A pangênese, pelo depoimento do próprio Darwin a Lyell, era tão antiga quanto a seleção natural, o que traz fatos embaraçosos ao argumento de Dennett, uma vez que mostra que a herança das características adquiridas, base da pangênese, era parte da formulação inicial de Darwin, que não a abandonou mesmo depois de publicar "Origem das Espécies".
À pág. 59, Dennett afirma que a seleção natural pode ser vista de diferentes formas e que o capítulo dez examinará essa questão. Mas o que se encontra mais adiante é algo inteiramente diferente, uma vez que o capítulo anunciado traz uma saraivada de argumentos contra concepções de seleção natural alternativas ao venerado padrão algorítmico. Dennett quer fazer crer que a seleção natural seja algo como um mecanismo inexorável de produção de toda a diversidade biológica conhecida ou ainda a conhecer. Trata-se de uma reapresentação dos argumentos intermináveis de Dawkins e de suas façanhas com computadores. Em "O Relojoeiro Cego", por exemplo, Dawkins tentou provar como um macaco sentado à frente de uma máquina de escrever poderia produzir um verso de Shakespeare, desde que adotasse o princípio algorítmico da seleção natural. Se alguém, fazendo as vezes de seleção natural, escrutinasse cada caractere digitado, eliminando os "mal adaptados" e mantendo os "adaptados", não surpreenderia que o resultado final, depois de "n" tentativas, pudesse conferir com o esperado.
A tradução brasileira é boa, mas alguns reparos técnicos ainda se fazem necessários. "Pares de bases" ("base pairs") ganhou a tradução de "pares básicos" (pág. 165); quando o original diz que "Most of the DNA in any genome is unexpressed -often called "junk DNA'", a tradução é: "A maior parte do DNA de qualquer genoma não está expresso -sendo quase sempre chamado de "lixo do DNA'" (pág. 330). O estilo é cativante, mesmo se o egocentrismo do autor por vezes seja até constrangedor (nada contra a primeira pessoa do singular). Uma boa indicação talvez seja a bibliografia: para explicar a "perigosa idéia de Darwin", Dennett elenca 3 referências bibliográficas de Darwin, 11 de Dawkins e 37 dele próprio. Seria de se perguntar de quem é, afinal, a tão perigosa idéia.


Nelio Bizzo é biólogo e professor da Faculdade de Educação da USP.


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