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O mundo de Jeremoabo
Crítico analisa as cartas ao barão
ROBERTO VENTURA
O escritor Mario Vargas Llosa
criou, no romance "A Guerra do
Fim do Mundo" (1981), a figura
do barão de Canabrava, inspirada
no fazendeiro, usineiro e político
baiano Cícero Dantas Martins, o
barão de Jeremoabo. Monarquista refinado e esperto, o barão fictício de Vargas Llosa considerava
que a rebelião de Canudos, liderada por Antônio Conselheiro, fora
manipulada pelo governador Luís
Viana, para combater seus adversários políticos, e pelos republicanos radicais e militares jacobinos,
que conspiravam para derrubar o
primeiro presidente civil da República, o paulista Prudente de
Morais.
A visão de mundo do barão de
Jeremoabo reaparece nas entrelinhas de "Os Sertões", ensaio histórico de 1902 em que Euclides da
Cunha denunciou a atuação do
governo, do Exército e da Igreja
no extermínio da comunidade do
Belo Monte, no nordeste da Bahia. Com uma população estimada entre 10 mil e 25 mil habitantes,
Belo Monte ou Canudos foi dizimada após uma longa guerra que
se estendeu por quase um ano, de
novembro de 1896 a outubro do
ano seguinte.
Repórter de "O Estado de São
Paulo" no local do conflito, Euclides cita, em "Os Sertões", a carta
que o barão de Jeremoabo enviou
em março de 1897 ao "Jornal de
Notícias", de Salvador, para se defender das acusações de ser monarquista e de atuar como aliado
do Conselheiro, líder, segundo
ele, de uma "horda fanática", que
se convertera em "reduto inexpugnável de desertores, ladrões e
assassinos". Essa carta, muito citada, ainda que pouco conhecida,
poderia ter sido incluída, em
apêndice, no final do volume.
O escritor recorreu à carta do
barão, que identificou apenas como uma testemunha, para recriar
as primeiras andanças de Antônio
Conselheiro como pregador e
narrar o grande êxodo de famílias, que tudo vendiam nas feiras
-gado, objetos, terrenos e casas- "por preços de nonada",
para se juntar ao "santo".
Euclides pesca, na carta do barão, a expressão regional "nonada", derivada de "non", forma arcaica de "não", que Guimarães
Rosa iria depois usar na abertura
de "Grande Sertão: Veredas"
(1956), em que o barqueiro-narrador Riobaldo inicia o relato de
suas aventuras na jagunçada com
as palavras: "Nonada. Tiros que o
senhor ouviu foram de briga de
homem não, Deus esteja".
"Canudos - Cartas para o Barão" reúne cartas recebidas por
Cícero Dantas Martins, de 1894 a
1897, durante os conturbados
anos da expansão e destruição de
Canudos. Nascido em 1838 na fazenda Caritá, no município de Jeremoabo, Cícero Dantas Martins
estudou direito no Recife. Foi sócio da primeira usina de açúcar da
Bahia, no Engenho de Bom Jardim, no Recôncavo Baiano, que
foi inaugurada em 1880 e lhe valeu
o título de barão, concedido por
D. Pedro 2º.
Cícero Dantas Martins foi o
maior proprietário de terras dos
sertões. Sua sede ficava no engenho de Camuciatá, no município
de Itapicuru, cujo novo e elegante
sobrado inaugurou com pompa
em 1894. Assim respondeu aos
amigos que acharam exagerados
os gastos com a construção: "Não
bebo, não jogo, não gasto com
mulheres, mas tenho direito a ter
dois vícios: um é a política, outro é
esta obra". E acrescenta: "Quando
os ingleses tomarem conta do
Brasil, verão que aqui morou um
homem de gosto".
Mas foi seu outro vício, a política, que fez o barão entrar para a literatura e a história. Tornou-se o
chefe da região de Itapicuru e Jeremoabo, estendendo seu prestígio até Inhambupe e formando,
segundo o folclorista Câmara
Cascudo, uma "imensa teia que se
articulava aos seus dedos e cobria
léguas e léguas, numa sucessão de
engenhos, fazendas, sítios, povoados". Era um típico coronel do
sertão, que registrava as datas de
nascimento, casamento e óbito
dos amigos e desafetos, e percorria a cavalo todos os municípios
sob seu comando. Mantinha uma
vasta correspondência com amigos e protegidos, tendo enviado
entre 1873 e 1903 mais de 44 mil
cartas, em uma média de cerca de
1.400 por ano.
As cartas de seu arquivo privado, reunidas em "Cartas para o
Barão", trazem elementos para o
conhecimento das comunidades
sertanejas e dos fatos que levaram
ao surgimento e desaparecimento
de Canudos. Escritas por magistrados, vigários, fazendeiros, comerciantes, políticos e membros
da Guarda Nacional, a correspondência mostra os esforços do barão para impedir a atuação do
Conselheiro em seu distrito eleitoral, tendo solicitado em 1893 o
envio de força policial contra o líder religioso após a rebelião contra a cobrança de impostos na feira do Soure.
As cartas indicam ainda a forte
presença de ex-escravos na comunidade, formada, segundo o
escrivão Antero Galo, melhor
amigo do barão, por "soldados
desertores de diversos Estados e o
povo 13 de maio, que é a maior
parte". Tal participação de libertos na comunidade desmente a
fantasia etnográfica de Euclides
da Cunha sobre o caráter curiboca, misto de branco e índio, dos
sertanejos que seguiram Antônio
Conselheiro.
Autora de estudos sobre movimentos sociais e políticos na Bahia, Consuelo Novais redigiu para
o volume que organiza um esclarecedor ensaio, "Canudos -A
Construção do Medo", em que
mostra como a questão da comunidade se agravou devido à disputa pelo poder entre grupos políticos, tanto no plano nacional como no estadual e municipal.
A historiadora mostra que, no
plano nacional, os jacobinos e florianistas, aliados ao vice-presidente em exercício da Presidência, o baiano Manuel Vitorino,
conspiravam pelo não-retorno ao
cargo de Prudente de Morais, licenciado para tratamento de saúde durante a primeira fase da
guerra. Tal conspiração levou
Prudente a reassumir a chefia do
governo em 4 de março de 1897,
no mesmo dia em que o coronel
Moreira César, comandante da
fracassada terceira expedição,
caía fulminado no campo de batalha. Recria ainda os embates políticos na Bahia entre os "vianistas", aliados dos governadores
Rodrigues Lima e Luís Viana, e os
"gonçalvistas", que contavam
com o apoio do ex-governador
José Gonçalves e do próprio barão
de Jeremoabo, cujo poder político
declinara.
Consuelo Novais recorre à idéia
de medo, empregada pelos historiadores franceses Jean Delumeau, em "História do Medo no
Ocidente" (Companhia das Letras, 1996), e por Georges Lefèvre,
a respeito do "grande medo" que
cobriu de sangue a Revolução
Francesa, para explicar as angústias coletivas geradas por Antônio
Conselheiro e Canudos. Observa
como o medo que levou ao extermínio da comunidade foi construído não só pelas facções políticas em luta na Bahia e na capital
federal, mas sobretudo pela Igreja
e o Exército. Tal "medo construído" se produziu a partir de dois
receios, que serviram de justificativa à violenta ação do governo
contra a comunidade: o fantasma
da restauração monárquica e o temor das fazendas destruídas.
Prudente de Morais reassumiu
a Presidência após o desastre da
terceira expedição e enviou à Bahia o próprio ministro da Guerra,
o marechal Carlos Bittencourt.
Ordenou ao general Artur Oscar,
comandante da quarta e última
expedição, que não deixasse em
Canudos "pedra sobre pedra".
Categóricas, as ordens foram
cumpridas: centenas de prisioneiros foram degolados, mulheres e
crianças estupradas e traficadas, e
as ruínas da comunidade queimadas com querosene.
Cícero Dantas Martins morreu
em 1903, na vila de Bom Conselho, vitimado por febre, depois de
tentar vestir um capote. Pregou-se ao seu nome o título, que recebera do imperador, de barão de
Jeremoabo, município no qual se
situava o engenho familiar em
que nascera. Morto, passou a dar
nome ao antigo povoado de Bom
Conselho, que se chama hoje, em
sua homenagem, Cícero Dantas.
O sagaz e impiedoso barão entrou
assim não só para a literatura e a
história, como também para a
geografia.
Roberto Ventura é professor de teoria
literária na USP e autor de "Estilo Tropical" (Cia. das Letras).
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