São Paulo, sábado, 13 de maio de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O mundo de Jeremoabo

Crítico analisa as cartas ao barão
ROBERTO VENTURA

O escritor Mario Vargas Llosa criou, no romance "A Guerra do Fim do Mundo" (1981), a figura do barão de Canabrava, inspirada no fazendeiro, usineiro e político baiano Cícero Dantas Martins, o barão de Jeremoabo. Monarquista refinado e esperto, o barão fictício de Vargas Llosa considerava que a rebelião de Canudos, liderada por Antônio Conselheiro, fora manipulada pelo governador Luís Viana, para combater seus adversários políticos, e pelos republicanos radicais e militares jacobinos, que conspiravam para derrubar o primeiro presidente civil da República, o paulista Prudente de Morais.
A visão de mundo do barão de Jeremoabo reaparece nas entrelinhas de "Os Sertões", ensaio histórico de 1902 em que Euclides da Cunha denunciou a atuação do governo, do Exército e da Igreja no extermínio da comunidade do Belo Monte, no nordeste da Bahia. Com uma população estimada entre 10 mil e 25 mil habitantes, Belo Monte ou Canudos foi dizimada após uma longa guerra que se estendeu por quase um ano, de novembro de 1896 a outubro do ano seguinte.
Repórter de "O Estado de São Paulo" no local do conflito, Euclides cita, em "Os Sertões", a carta que o barão de Jeremoabo enviou em março de 1897 ao "Jornal de Notícias", de Salvador, para se defender das acusações de ser monarquista e de atuar como aliado do Conselheiro, líder, segundo ele, de uma "horda fanática", que se convertera em "reduto inexpugnável de desertores, ladrões e assassinos". Essa carta, muito citada, ainda que pouco conhecida, poderia ter sido incluída, em apêndice, no final do volume.
O escritor recorreu à carta do barão, que identificou apenas como uma testemunha, para recriar as primeiras andanças de Antônio Conselheiro como pregador e narrar o grande êxodo de famílias, que tudo vendiam nas feiras -gado, objetos, terrenos e casas- "por preços de nonada", para se juntar ao "santo".
Euclides pesca, na carta do barão, a expressão regional "nonada", derivada de "non", forma arcaica de "não", que Guimarães Rosa iria depois usar na abertura de "Grande Sertão: Veredas" (1956), em que o barqueiro-narrador Riobaldo inicia o relato de suas aventuras na jagunçada com as palavras: "Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja".
"Canudos - Cartas para o Barão" reúne cartas recebidas por Cícero Dantas Martins, de 1894 a 1897, durante os conturbados anos da expansão e destruição de Canudos. Nascido em 1838 na fazenda Caritá, no município de Jeremoabo, Cícero Dantas Martins estudou direito no Recife. Foi sócio da primeira usina de açúcar da Bahia, no Engenho de Bom Jardim, no Recôncavo Baiano, que foi inaugurada em 1880 e lhe valeu o título de barão, concedido por D. Pedro 2º.
Cícero Dantas Martins foi o maior proprietário de terras dos sertões. Sua sede ficava no engenho de Camuciatá, no município de Itapicuru, cujo novo e elegante sobrado inaugurou com pompa em 1894. Assim respondeu aos amigos que acharam exagerados os gastos com a construção: "Não bebo, não jogo, não gasto com mulheres, mas tenho direito a ter dois vícios: um é a política, outro é esta obra". E acrescenta: "Quando os ingleses tomarem conta do Brasil, verão que aqui morou um homem de gosto".
Mas foi seu outro vício, a política, que fez o barão entrar para a literatura e a história. Tornou-se o chefe da região de Itapicuru e Jeremoabo, estendendo seu prestígio até Inhambupe e formando, segundo o folclorista Câmara Cascudo, uma "imensa teia que se articulava aos seus dedos e cobria léguas e léguas, numa sucessão de engenhos, fazendas, sítios, povoados". Era um típico coronel do sertão, que registrava as datas de nascimento, casamento e óbito dos amigos e desafetos, e percorria a cavalo todos os municípios sob seu comando. Mantinha uma vasta correspondência com amigos e protegidos, tendo enviado entre 1873 e 1903 mais de 44 mil cartas, em uma média de cerca de 1.400 por ano.
As cartas de seu arquivo privado, reunidas em "Cartas para o Barão", trazem elementos para o conhecimento das comunidades sertanejas e dos fatos que levaram ao surgimento e desaparecimento de Canudos. Escritas por magistrados, vigários, fazendeiros, comerciantes, políticos e membros da Guarda Nacional, a correspondência mostra os esforços do barão para impedir a atuação do Conselheiro em seu distrito eleitoral, tendo solicitado em 1893 o envio de força policial contra o líder religioso após a rebelião contra a cobrança de impostos na feira do Soure.
As cartas indicam ainda a forte presença de ex-escravos na comunidade, formada, segundo o escrivão Antero Galo, melhor amigo do barão, por "soldados desertores de diversos Estados e o povo 13 de maio, que é a maior parte". Tal participação de libertos na comunidade desmente a fantasia etnográfica de Euclides da Cunha sobre o caráter curiboca, misto de branco e índio, dos sertanejos que seguiram Antônio Conselheiro.
Autora de estudos sobre movimentos sociais e políticos na Bahia, Consuelo Novais redigiu para o volume que organiza um esclarecedor ensaio, "Canudos -A Construção do Medo", em que mostra como a questão da comunidade se agravou devido à disputa pelo poder entre grupos políticos, tanto no plano nacional como no estadual e municipal.
A historiadora mostra que, no plano nacional, os jacobinos e florianistas, aliados ao vice-presidente em exercício da Presidência, o baiano Manuel Vitorino, conspiravam pelo não-retorno ao cargo de Prudente de Morais, licenciado para tratamento de saúde durante a primeira fase da guerra. Tal conspiração levou Prudente a reassumir a chefia do governo em 4 de março de 1897, no mesmo dia em que o coronel Moreira César, comandante da fracassada terceira expedição, caía fulminado no campo de batalha. Recria ainda os embates políticos na Bahia entre os "vianistas", aliados dos governadores Rodrigues Lima e Luís Viana, e os "gonçalvistas", que contavam com o apoio do ex-governador José Gonçalves e do próprio barão de Jeremoabo, cujo poder político declinara.
Consuelo Novais recorre à idéia de medo, empregada pelos historiadores franceses Jean Delumeau, em "História do Medo no Ocidente" (Companhia das Letras, 1996), e por Georges Lefèvre, a respeito do "grande medo" que cobriu de sangue a Revolução Francesa, para explicar as angústias coletivas geradas por Antônio Conselheiro e Canudos. Observa como o medo que levou ao extermínio da comunidade foi construído não só pelas facções políticas em luta na Bahia e na capital federal, mas sobretudo pela Igreja e o Exército. Tal "medo construído" se produziu a partir de dois receios, que serviram de justificativa à violenta ação do governo contra a comunidade: o fantasma da restauração monárquica e o temor das fazendas destruídas.
Prudente de Morais reassumiu a Presidência após o desastre da terceira expedição e enviou à Bahia o próprio ministro da Guerra, o marechal Carlos Bittencourt. Ordenou ao general Artur Oscar, comandante da quarta e última expedição, que não deixasse em Canudos "pedra sobre pedra". Categóricas, as ordens foram cumpridas: centenas de prisioneiros foram degolados, mulheres e crianças estupradas e traficadas, e as ruínas da comunidade queimadas com querosene.
Cícero Dantas Martins morreu em 1903, na vila de Bom Conselho, vitimado por febre, depois de tentar vestir um capote. Pregou-se ao seu nome o título, que recebera do imperador, de barão de Jeremoabo, município no qual se situava o engenho familiar em que nascera. Morto, passou a dar nome ao antigo povoado de Bom Conselho, que se chama hoje, em sua homenagem, Cícero Dantas. O sagaz e impiedoso barão entrou assim não só para a literatura e a história, como também para a geografia.


Roberto Ventura é professor de teoria literária na USP e autor de "Estilo Tropical" (Cia. das Letras).


Texto Anterior: José Murilo de Carvalho: Barão contra barão
Próximo Texto: José de Souza Martins: Atualizar as esquerdas
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.