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Atualizar as esquerdas
Sociólogo faz balanço da social-democracia e do neoliberalismo
JOSÉ DE SOUZA MARTINS
Não deixa de ser estimulante a leitura
de um livro menor no conjunto da obra
de um autor reputado como Anthony
Giddens quando esse livro não só instiga
pelas interpretações que contém, mas
também comove pela preocupação de assegurar vida e continuidade a idéias e valores que o autor compartilha como relevantes na afirmação de ideais políticos e
na melhora das condições de existência
de sua sociedade. Giddens certamente tinha mais o que fazer do que escrever este
pequeno livro destinado à reflexão crítica
dos trabalhistas ingleses. Mas o livro é útil
também a nós, pois constitui um consistente estímulo à análise das grandes
transformações econômicas e políticas
que também nos atingiram nas últimas
décadas.
De fato, "A Terceira Via" é um cuidadoso mapeamento das ruínas que ficaram
do neoliberalismo thatcheriano e das
propostas das esquerdas européias com o
colapso do comunismo enquanto concepção estatal da política e do socialismo.
A serenidade do texto e as equilibradas
considerações sobre acertos do neoliberalismo e erros da social-democracia,
num discurso dirigido às esquerdas,
constitui um chamamento à razão e, em
grande parte, à esperança. Giddens vai
assinalando as inovações necessárias no
ideário social-democrata em relação a
questões concretas da prática política e
das demandas sociais. Pontos em que são
necessárias revisões de concepção e de
conduta.
No final, o livro constitui um elenco de
considerações críticas que implicam uma
acentuada revisão de curso na atuação
das esquerdas democráticas, a partir,
aliás, de uma idéia bem marxista, a de um
fazer história a partir da herança histórica
concreta com que se defrontam o militante e os partidos.
O principal questionamento de Giddens é dirigido ao modo como os trabalhistas ingleses enfrentaram o thatcherismo, opondo-lhe concepções e interpretações da velha esquerda, anteriores às mudanças que o neoliberalismo propôs e
executou.
Alternativas de esquerda
No fundo, o que ele indica é que as esquerdas se atualizem, revisem criticamente suas idéias à luz da realidade e da
prática e oponham à devastação neoliberal concepções novas e criativas. Aliás,
contraditoriamente, conservadora de
modo bem diverso do conservadorismo
tradicional. Pois, ao mesmo tempo em
que é economicamente liberal, apoiando
irrestritamente as forças do mercado como forças reguladores do funcionamento da sociedade e Estado, tem sua base social e doutrinária no mundo da tradição.
O primado da produtividade e do lucro
tornou-se uma mediação inevitável na
reordenação das relações sociais e políticas. De nada adianta antepor-lhe propostas de esquerda que representem um retrocesso a uma situação anterior de confronto político com base nos ideais do Estado do Bem-Estar Social. É preciso criar
alternativas sociais e de esquerda que restabeleçam o primado do homem e dos
valores sociais relativos à sua emancipação na reordenação social. Giddens assinala corretamente que "a teoria está em
atraso em relação à prática". E afirma:
"Desta vez é a esquerda que mais tem a
ganhar afirmando que as velhas categorias já não fazem nenhum sentido."
O ponto de partida das esquerdas reformistas não pode ser, sugere ele, a nostálgica contraposição das velhas idéias amplamente derrotadas em vários países. O
ponto de partida está no simples reconhecimento de que "o neoliberalismo
triunfou em todo o mundo" e de que "a
globalização econômica é uma realidade".
Essa "é uma reversão considerável", diz
ele, "já que durante pelo menos um século os socialistas pensaram estar na vanguarda da história". Nos países em que de
certo modo se está optando pela terceira
via, além da Inglaterra, a França, a Alemanha, a Itália, a Espanha, Portugal e,
também, não esqueçamos, o Brasil, trata-se, aparentemente, de pôr ordem na devastação neoliberal para em cima dela reverter os primados e erguer as bases de
uma nova e outra concepção do bem-estar social.
Apuros do neoliberalismo
Giddens sublinha um ponto importante na ação de quem quer agir no sentido
de promover transformações sociais e
políticas: "O neoliberalismo está em apuros e é importante ver por quê. A principal razão é que suas duas metades -fundamentalismo de mercado e conservadorismo- estão em tensão". A política
neoliberal compromete a continuidade
da tradição que é essencial para o conservadorismo em que se funda o neoliberalismo, pois "o dinamismo das sociedades
de mercado solapa as estruturas tradicionais de autoridade e fratura as comunidades locais".
Mas essas contradições afetam o terreno de atuação dos social-democratas, que
tiveram que passar a se preocupar com
temas correlatos como produtividade
econômica, políticas de participação, desenvolvimento comunitário e ecologia.
Além disso, a afluência desviou a maioria
eleitoral "do "ethos" social-democrático
do coletivismo e da solidariedade". Em
decorrência, "a realização pessoal e a
competição econômica tiveram de ganhar maior relevo."
É aí que tem sentido falar numa terceira
via, como "tentativa de transcender tanto
a social-democracia do velho estilo quanto o neoliberalismo". Transcender no
sentido de superá-los para negar no alternativo e na criatividade social e política o
atual, e não na recusa mecânica pura e
simplesmente, que é no geral a conduta
das esquerdas diante da devastação neoliberal.
Giddens toca num ponto nem sempre
do gosto dos sociólogos (e dos militantes
políticos) de esquerda, que preferem
conceber a sociedade como uma grande
estrutura de macrorrelações sociais de dimensão histórica, na qual os aspectos
miúdos e vivenciais da vida diária não
têm relevo. Ele menciona os efeitos da
globalização na vida cotidiana: "Ela está
mudando a vida do dia-a-dia" e transformando as instituições da sociedade em
que vivemos. Mudanças, por sua vez, relacionadas com a ascensão de um "novo
individualismo", em contraste com a atitude coletivista das ideologias de esquerda e, em parte, da ideologia democrática
cristã de países europeus do continente.
Portanto, a globalização e o neoliberalismo colocaram as esquerdas diante do
inevitável reconhecimento de que valores
próprios da sociedade capitalista, como o
da competição e do individualismo, foram incorporados pelo eleitorado progressista. É, assim, inevitável dialogar
criativamente com essa realidade mudada e nova: "A globalização também "empurra" -ela cria demandas e também
novas possibilidades para a regeneração
de identidades locais."
Temas essenciais
Temas como a família, a comunidade, a
velhice, a juventude, a segurança, a sexualidade, a natureza, temas que não são
relativos à categoria de classe social e à luta de classes, aparecem na análise de Giddens como temas essenciais da social-democracia na opção da terceira via. Isto é,
o reconhecimento da alternativa da terceira via implica reconhecer que categorias polarizadoras de confronto, como a
de classe social, perderam a centralidade
e a eficácia política que tinham, e que novas identidades, não raro fundadas na
tradição, podem ser os fatores de um novo consenso político articulado no que
ele define como "centro radical".
Ao mesmo tempo, a social-democracia
tem que se defrontar com o grave problema da deterioração do civismo e, portanto, do sentido da co-responsabilidade social dos cidadãos e terá que fazê-lo sem
desconhecer que o mundo agora é globalizado.
A social-democracia, justamente, atrasou-se na compreensão das mudanças no
comportamento da sociedade. Na década
de 80, os social-democratas viram-se sem
uma estrutura ideológica efetiva com que
reagir às orientações neoliberais e às mudanças, enquanto os "movimentos sociais e outros grupos empurravam para o
primeiro plano as questões que foram
abandonadas pela política social-democrática tradicional".
O neoliberalismo, acrescenta Giddens,
"empreendeu uma crítica constante do
papel do governo na vida social e econômica, crítica que parece encontrar ressonâncias em tendências do mundo real".
Embora a social-democracia tenha se originado dos movimentos sociais do fim do
século 19, hoje está flanqueada, como ele
diz, pelos novos movimentos sociais e
por uma desvalorização da política e um
esvaziamento do poder. Tudo parece indicar que as grandes mudanças ocorridas
nos últimos tempos propõem o protagonismo da sociedade e um papel reduzido
e específico para o Estado na administração e solução das questões sociais. Como
propõe, também, um panorama de atuação política para enfrentá-las, que traz
para o centro da ação e da decisão políticas novos temas e novas caras.
A Terceira Via (Reflexões
sobre o Impasse Político
Atual e o Futuro da
Social-Democracia)
Anthony Giddens
Tradução: Maria Luiza S. de A . Borges
Record (Tel. 0/xx/21/585-2047))
173 págs., R$ 25,00
José de Souza Martins é professor de sociologia
na USP e autor, entre outros livros, de "A Sociabilidade do Homem Simples" (Humanitas).
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