São Paulo, sábado, 13 de maio de 2000


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Atualizar as esquerdas

Sociólogo faz balanço da social-democracia e do neoliberalismo
JOSÉ DE SOUZA MARTINS

Não deixa de ser estimulante a leitura de um livro menor no conjunto da obra de um autor reputado como Anthony Giddens quando esse livro não só instiga pelas interpretações que contém, mas também comove pela preocupação de assegurar vida e continuidade a idéias e valores que o autor compartilha como relevantes na afirmação de ideais políticos e na melhora das condições de existência de sua sociedade. Giddens certamente tinha mais o que fazer do que escrever este pequeno livro destinado à reflexão crítica dos trabalhistas ingleses. Mas o livro é útil também a nós, pois constitui um consistente estímulo à análise das grandes transformações econômicas e políticas que também nos atingiram nas últimas décadas.
De fato, "A Terceira Via" é um cuidadoso mapeamento das ruínas que ficaram do neoliberalismo thatcheriano e das propostas das esquerdas européias com o colapso do comunismo enquanto concepção estatal da política e do socialismo. A serenidade do texto e as equilibradas considerações sobre acertos do neoliberalismo e erros da social-democracia, num discurso dirigido às esquerdas, constitui um chamamento à razão e, em grande parte, à esperança. Giddens vai assinalando as inovações necessárias no ideário social-democrata em relação a questões concretas da prática política e das demandas sociais. Pontos em que são necessárias revisões de concepção e de conduta.
No final, o livro constitui um elenco de considerações críticas que implicam uma acentuada revisão de curso na atuação das esquerdas democráticas, a partir, aliás, de uma idéia bem marxista, a de um fazer história a partir da herança histórica concreta com que se defrontam o militante e os partidos.
O principal questionamento de Giddens é dirigido ao modo como os trabalhistas ingleses enfrentaram o thatcherismo, opondo-lhe concepções e interpretações da velha esquerda, anteriores às mudanças que o neoliberalismo propôs e executou.

Alternativas de esquerda
No fundo, o que ele indica é que as esquerdas se atualizem, revisem criticamente suas idéias à luz da realidade e da prática e oponham à devastação neoliberal concepções novas e criativas. Aliás, contraditoriamente, conservadora de modo bem diverso do conservadorismo tradicional. Pois, ao mesmo tempo em que é economicamente liberal, apoiando irrestritamente as forças do mercado como forças reguladores do funcionamento da sociedade e Estado, tem sua base social e doutrinária no mundo da tradição.
O primado da produtividade e do lucro tornou-se uma mediação inevitável na reordenação das relações sociais e políticas. De nada adianta antepor-lhe propostas de esquerda que representem um retrocesso a uma situação anterior de confronto político com base nos ideais do Estado do Bem-Estar Social. É preciso criar alternativas sociais e de esquerda que restabeleçam o primado do homem e dos valores sociais relativos à sua emancipação na reordenação social. Giddens assinala corretamente que "a teoria está em atraso em relação à prática". E afirma: "Desta vez é a esquerda que mais tem a ganhar afirmando que as velhas categorias já não fazem nenhum sentido."
O ponto de partida das esquerdas reformistas não pode ser, sugere ele, a nostálgica contraposição das velhas idéias amplamente derrotadas em vários países. O ponto de partida está no simples reconhecimento de que "o neoliberalismo triunfou em todo o mundo" e de que "a globalização econômica é uma realidade".
Essa "é uma reversão considerável", diz ele, "já que durante pelo menos um século os socialistas pensaram estar na vanguarda da história". Nos países em que de certo modo se está optando pela terceira via, além da Inglaterra, a França, a Alemanha, a Itália, a Espanha, Portugal e, também, não esqueçamos, o Brasil, trata-se, aparentemente, de pôr ordem na devastação neoliberal para em cima dela reverter os primados e erguer as bases de uma nova e outra concepção do bem-estar social.

Apuros do neoliberalismo
Giddens sublinha um ponto importante na ação de quem quer agir no sentido de promover transformações sociais e políticas: "O neoliberalismo está em apuros e é importante ver por quê. A principal razão é que suas duas metades -fundamentalismo de mercado e conservadorismo- estão em tensão". A política neoliberal compromete a continuidade da tradição que é essencial para o conservadorismo em que se funda o neoliberalismo, pois "o dinamismo das sociedades de mercado solapa as estruturas tradicionais de autoridade e fratura as comunidades locais".
Mas essas contradições afetam o terreno de atuação dos social-democratas, que tiveram que passar a se preocupar com temas correlatos como produtividade econômica, políticas de participação, desenvolvimento comunitário e ecologia. Além disso, a afluência desviou a maioria eleitoral "do "ethos" social-democrático do coletivismo e da solidariedade". Em decorrência, "a realização pessoal e a competição econômica tiveram de ganhar maior relevo."
É aí que tem sentido falar numa terceira via, como "tentativa de transcender tanto a social-democracia do velho estilo quanto o neoliberalismo". Transcender no sentido de superá-los para negar no alternativo e na criatividade social e política o atual, e não na recusa mecânica pura e simplesmente, que é no geral a conduta das esquerdas diante da devastação neoliberal.
Giddens toca num ponto nem sempre do gosto dos sociólogos (e dos militantes políticos) de esquerda, que preferem conceber a sociedade como uma grande estrutura de macrorrelações sociais de dimensão histórica, na qual os aspectos miúdos e vivenciais da vida diária não têm relevo. Ele menciona os efeitos da globalização na vida cotidiana: "Ela está mudando a vida do dia-a-dia" e transformando as instituições da sociedade em que vivemos. Mudanças, por sua vez, relacionadas com a ascensão de um "novo individualismo", em contraste com a atitude coletivista das ideologias de esquerda e, em parte, da ideologia democrática cristã de países europeus do continente.
Portanto, a globalização e o neoliberalismo colocaram as esquerdas diante do inevitável reconhecimento de que valores próprios da sociedade capitalista, como o da competição e do individualismo, foram incorporados pelo eleitorado progressista. É, assim, inevitável dialogar criativamente com essa realidade mudada e nova: "A globalização também "empurra" -ela cria demandas e também novas possibilidades para a regeneração de identidades locais."

Temas essenciais
Temas como a família, a comunidade, a velhice, a juventude, a segurança, a sexualidade, a natureza, temas que não são relativos à categoria de classe social e à luta de classes, aparecem na análise de Giddens como temas essenciais da social-democracia na opção da terceira via. Isto é, o reconhecimento da alternativa da terceira via implica reconhecer que categorias polarizadoras de confronto, como a de classe social, perderam a centralidade e a eficácia política que tinham, e que novas identidades, não raro fundadas na tradição, podem ser os fatores de um novo consenso político articulado no que ele define como "centro radical".
Ao mesmo tempo, a social-democracia tem que se defrontar com o grave problema da deterioração do civismo e, portanto, do sentido da co-responsabilidade social dos cidadãos e terá que fazê-lo sem desconhecer que o mundo agora é globalizado.
A social-democracia, justamente, atrasou-se na compreensão das mudanças no comportamento da sociedade. Na década de 80, os social-democratas viram-se sem uma estrutura ideológica efetiva com que reagir às orientações neoliberais e às mudanças, enquanto os "movimentos sociais e outros grupos empurravam para o primeiro plano as questões que foram abandonadas pela política social-democrática tradicional".
O neoliberalismo, acrescenta Giddens, "empreendeu uma crítica constante do papel do governo na vida social e econômica, crítica que parece encontrar ressonâncias em tendências do mundo real". Embora a social-democracia tenha se originado dos movimentos sociais do fim do século 19, hoje está flanqueada, como ele diz, pelos novos movimentos sociais e por uma desvalorização da política e um esvaziamento do poder. Tudo parece indicar que as grandes mudanças ocorridas nos últimos tempos propõem o protagonismo da sociedade e um papel reduzido e específico para o Estado na administração e solução das questões sociais. Como propõe, também, um panorama de atuação política para enfrentá-las, que traz para o centro da ação e da decisão políticas novos temas e novas caras.



A Terceira Via (Reflexões sobre o Impasse Político Atual e o Futuro da Social-Democracia)
Anthony Giddens
Tradução: Maria Luiza S. de A . Borges
Record (Tel. 0/xx/21/585-2047))
173 págs., R$ 25,00




José de Souza Martins é professor de sociologia na USP e autor, entre outros livros, de "A Sociabilidade do Homem Simples" (Humanitas).

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