São Paulo, sábado, 13 de maio de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A linguagem das emoções

Obra de Darwin estuda comportamento
RENATO QUEIROZ

Esta obra foi concebida originalmente para figurar como capítulo de "A Descendência do Homem", mas avolumou-se a tal ponto que Charles Darwin concedeu-lhe absoluta autonomia. No dia de sua publicação, em 1872, venderam-se mais de 5.000 cópias do livro, numa evidente demonstração do enorme interesse despertado pelo tema e do prestígio intelectual do próprio autor. Foi preciso, contudo, aguardar 128 anos e um editor esclarecido para termos a tradução brasileira deste trabalho que inaugura o estudo científico da comunicação não-verbal.
Passado esse entusiasmo inicial, "A Expressão" repousou em indevido esquecimento, durante várias décadas, recuperando, porém, a partir dos anos de 1960, sua vocação inspiradora de estudos sobre o comportamento humano e de outras espécies animais. Como bem lembrou a etóloga Emma Otta, a prolongada hegemonia behaviorista, com sua ênfase nos processos de aprendizagem, obscureceu o papel dos determinantes inatos do comportamento, donde a rejeição ao mecanismo da seleção natural como força positiva na moldagem de adaptações.

Uma base biológica
No campo da antropologia social, domínio em que o culturalismo tem desfrutado de poder quase absoluto, os postulados de Darwin suscitam ainda rígidas desconfianças. Todavia, em "A Expressão", os antropólogos encontrariam um dos melhores argumentos em favor da unidade psíquica da humanidade, sintetizado na seguinte passagem: "(...) Um mesmo estado de espírito exprime-se ao redor do mundo com impressionante uniformidade; e este fato é ele mesmo interessante, como evidência da grande similaridade da estrutura corporal e da conformação mental de todas as raças humanas".
Para os culturalistas, é penoso admitir que certos padrões comportamentais exibem uma base biológica, constituindo, pois, objeto das mesmas pressões evolucionárias atuantes sobre estruturas anatômicas e mecanismos fisiológicos. Ademais, é Darwin quem aponta a continuidade das faculdades mentais entre o homem e outros animais, um desdobramento natural de suas idéias a respeito da continuidade das espécies no decorrer da evolução.
Após revisar criticamente a literatura até então disponível a respeito da expressão das emoções, Darwin enumera os procedimentos adotados na obtenção do material empírico que conferiu suporte à demonstração de suas teses. Observou recém-nascidos e crianças, pois esses indivíduos exibiriam numerosas e intensas emoções; não se descuidou do comportamento de pessoas mentalmente perturbadas, pois elas seriam dadas "às mais intensas paixões e as manifestam sem nenhum controle"; avaliou obras dos melhores mestres da pintura e da escultura; observou o comportamento animal, pois neste domínio "estamos menos propensos a nos deixar influenciar pela nossa imaginação"; recolheu informações sobre povos não-europeus, por meio de questionário enviado a todos os continentes, para saber se exibiam idênticos movimentos expressivos; exibiu fotografias de expressões, produzidas no rosto de um indivíduo, por meio de estimulação elétrica dos músculos faciais, solicitando a observadores que identificassem as emoções correspondentes; atentou para a conduta de pessoas nascidas com deficiências visuais e auditivas, para as quais teria sido impossível o aprendizado de certas expressões por imitação.
Darwin adverte para os percalços inerentes ao estudo da expressão das emoções, seja porque os movimentos expressivos se manifestam em geral de modo sutil e efêmero, seja em razão da intensa simpatia despertada no observador, quando testemunha uma emoção profunda -com o que se compromete a observação acurada-, apontando ainda a própria imaginação como fonte de erro, pois, quando se espera uma determinada expressão, imagina-se prontamente a sua presença.

As expressões inatas
Além das manifestações faciais, os movimentos ou modificações, em qualquer parte do corpo, prestam-se também à expressão de emoções, assinala Darwin, para em seguida distinguir entre gestos e expressões "verdadeiros" (aqueles inatos, universais) e os "convencionais ou artificiais". Os primeiros constituem, em larga medida, ações involuntárias, a despeito das influências culturais que sobre eles possam se exercer, ao passo que os "convencionais" são adquiridos mediante os processos de aprendizado.
O autor de "Origem das Espécies" ressalta que tais expressões conferem vivacidade ao que é dito, revelando pensamentos e intenções alheios melhor do que a própria linguagem articulada, cujas palavras podem ser falsas. Sublinha também que os movimentos expressivos do rosto e do corpo representam o primeiro meio de comunicação entre o bebê e sua mãe. Vê-se, assim, o valor de que se reveste o vasto e complexo repertório de movimentos expressivos na regulação da sociabilidade.
A maioria dos movimentos expressivos configura padrões comportamentais inatos ou instintivos, argumenta Darwin, assim como instintiva deve ser a nossa capacidade de reconhecê-los. Em outras palavras: gestos e expressões são mútua e automaticamente inteligíveis. Dessa perspectiva, estaríamos aqui perante adaptações comportamentais que se mostraram bem-sucedidas, uma vez que ampliaram as chances de sobrevivência dos organismos.
Já se constatou que, na obra em apreço, Darwin adota raciocínios lamarckistas. De fato, o ponto de vista de que certas ações expressivas aprendidas poderiam posteriormente se tornar herdadas encontra-se presente em "A Expressão", e está dito, por exemplo, na seguinte passagem: "O fato de esses gestos serem agora inatos não constituiria uma objeção válida à crença de que eles foram inicialmente intencionais; pois, se praticados durante muitas gerações, é provável que fossem finalmente herdados". Todavia, os especialistas lembram que o processo evolucionário não requer esse recurso lamarckista, já que os princípios da seleção natural e sexual revelam-se inteiramente suficientes para dar conta da evolução das expressões emocionais.

Linguagem silenciosa
O rubor, mais comum nos jovens e nas mulheres, é apontado por Darwin como a mais humana e peculiar das expressões, evidenciando-se em geral na face dos envergonhados e dos tímidos, ademais dos que se pautam pela modéstia. Uma pessoa afetada por esses estados de espírito abaixa os olhos ou olha de soslaio, pois dificilmente suporta o olhar dos presentes. Já nas pessoas atingidas pelo sentimento de tristeza, as extremidades internas das sobrancelhas são erguidas e deprimidos os cantos da boca. De outro lado, um sorriso e um inconfundível brilho nos olhos estampam-se na face das pessoas quando encontram um velho amigo, ao passo que um olhar arregalado e fixo, sobrancelhas fortemente contraídas, narinas dilatadas e transpiração excessiva no rosto traduzem um sentimento de horror. Tomado de alegria, o nosso rosto se expande; afetado pela tristeza, ele se alonga. Franzir o cenho denuncia a percepção de um sabor estranho ou ruim no alimento.
Haveria emoções cujas expressões não se mostrariam de modo tão nítido, como, por exemplo, a suspeita, a inveja e o ciúme. Outras, em contrapartida, revelam-se com absoluta clareza, como é o caso da surpresa e do espanto, que se exprimem por meio da abertura ampla da boca e dos olhos. Já o tomado de orgulho, anota Darwin, "exibe seu senso de superioridade sobre os outros mantendo a cabeça e o corpo eretos. Sua postura é altiva -ou elevada- e tenta parecer tão grande quanto possível; tanto que, metaforicamente, diz-se que está inchado ou inflado de orgulho". O culpado evita olhar seu acusador, e o astucioso caracteriza-se sobretudo pela movimentação dos olhos. Cuspir parece ser um sinal universal de desprezo ou nojo, enquanto o encolher de ombros configura um gesto que expressa impotência ou desculpa. Um homem tomado de fúria, raiva ou ódio tem a sua respiração afetada, o rosto lívido, as narinas dilatadas, boca e punhos fechados, dentes rangendo, corpo ereto, pronto para ação imediata, e, nalgumas vezes, dobrado para frente, na direção do agressor.
Numerosas outras emoções ou estados de espírito e suas correspondentes expressões não-verbais, humanas e animais (sobretudo em cães, gatos e primatas não-humanos), recebem de Darwin um tratamento meticuloso, erudito e refinado. As ilustrações reproduzidas na obra reforçam a demonstração de suas teses e brindam o leitor com uma pequena amostra da importância da documentação visual para o estudo da "linguagem silenciosa". Nesse domínio da expressão não-verbal das emoções, o sorriso desponta talvez como a manifestação mais bem investigada. Contudo, muitas outras, da maior importância, merecem estudos cuidadosos, pois a maioria das nossas emoções está tão associada às suas manifestações expressivas que raramente ocorre quando o corpo permanece inerte.
Este livro encanta o especialista acadêmico e o leitor comum, mas, como se pode aquilatar, é também de grande valia para os profissionais da representação artística, pediatras, publicitários, cartunistas, veterinários, psicoterapeutas e cirurgiões plásticos, entre outros.


Renato da Silva Queiroz é professor no departamento de antropologia da USP.


Texto Anterior: Marina de Mello e Souza: Sob o prisma da festa
Próximo Texto: Leda Paulani: Vulnerabilidade ampliada
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.