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A linguagem das emoções
Obra de Darwin estuda comportamento
RENATO QUEIROZ
Esta obra foi concebida originalmente para figurar como capítulo de "A Descendência do Homem", mas avolumou-se a tal
ponto que Charles Darwin concedeu-lhe absoluta autonomia. No
dia de sua publicação, em 1872,
venderam-se mais de 5.000 cópias
do livro, numa evidente demonstração do enorme interesse despertado pelo tema e do prestígio
intelectual do próprio autor. Foi
preciso, contudo, aguardar 128
anos e um editor esclarecido para
termos a tradução brasileira deste
trabalho que inaugura o estudo
científico da comunicação não-verbal.
Passado esse entusiasmo inicial,
"A Expressão" repousou em indevido esquecimento, durante
várias décadas, recuperando, porém, a partir dos anos de 1960, sua
vocação inspiradora de estudos
sobre o comportamento humano
e de outras espécies animais. Como bem lembrou a etóloga Emma
Otta, a prolongada hegemonia
behaviorista, com sua ênfase nos
processos de aprendizagem, obscureceu o papel dos determinantes inatos do comportamento,
donde a rejeição ao mecanismo
da seleção natural como força positiva na moldagem de adaptações.
Uma base biológica
No campo da antropologia social, domínio em que o culturalismo tem desfrutado de poder quase absoluto, os postulados de Darwin suscitam ainda rígidas desconfianças. Todavia, em "A Expressão", os antropólogos encontrariam um dos melhores argumentos em favor da unidade psíquica da humanidade, sintetizado
na seguinte passagem: "(...) Um
mesmo estado de espírito exprime-se ao redor do mundo com
impressionante uniformidade; e
este fato é ele mesmo interessante,
como evidência da grande similaridade da estrutura corporal e da
conformação mental de todas as
raças humanas".
Para os culturalistas, é penoso
admitir que certos padrões comportamentais exibem uma base
biológica, constituindo, pois, objeto das mesmas pressões evolucionárias atuantes sobre estruturas anatômicas e mecanismos fisiológicos. Ademais, é Darwin
quem aponta a continuidade das
faculdades mentais entre o homem e outros animais, um desdobramento natural de suas idéias a
respeito da continuidade das espécies no decorrer da evolução.
Após revisar criticamente a literatura até então disponível a respeito da expressão das emoções,
Darwin enumera os procedimentos adotados na obtenção do material empírico que conferiu suporte à demonstração de suas teses. Observou recém-nascidos e
crianças, pois esses indivíduos
exibiriam numerosas e intensas
emoções; não se descuidou do
comportamento de pessoas mentalmente perturbadas, pois elas
seriam dadas "às mais intensas
paixões e as manifestam sem nenhum controle"; avaliou obras
dos melhores mestres da pintura
e da escultura; observou o comportamento animal, pois neste
domínio "estamos menos propensos a nos deixar influenciar
pela nossa imaginação"; recolheu
informações sobre povos não-europeus, por meio de questionário
enviado a todos os continentes,
para saber se exibiam idênticos
movimentos expressivos; exibiu
fotografias de expressões, produzidas no rosto de um indivíduo,
por meio de estimulação elétrica
dos músculos faciais, solicitando
a observadores que identificassem as emoções correspondentes;
atentou para a conduta de pessoas
nascidas com deficiências visuais
e auditivas, para as quais teria sido impossível o aprendizado de
certas expressões por imitação.
Darwin adverte para os percalços inerentes ao estudo da expressão das emoções, seja porque os
movimentos expressivos se manifestam em geral de modo sutil e
efêmero, seja em razão da intensa
simpatia despertada no observador, quando testemunha uma
emoção profunda -com o que se
compromete a observação acurada-, apontando ainda a própria
imaginação como fonte de erro,
pois, quando se espera uma determinada expressão, imagina-se
prontamente a sua presença.
As expressões inatas
Além das manifestações faciais,
os movimentos ou modificações,
em qualquer parte do corpo, prestam-se também à expressão de
emoções, assinala Darwin, para
em seguida distinguir entre gestos
e expressões "verdadeiros"
(aqueles inatos, universais) e os
"convencionais ou artificiais". Os
primeiros constituem, em larga
medida, ações involuntárias, a
despeito das influências culturais
que sobre eles possam se exercer,
ao passo que os "convencionais"
são adquiridos mediante os processos de aprendizado.
O autor de "Origem das Espécies" ressalta que tais expressões
conferem vivacidade ao que é dito, revelando pensamentos e intenções alheios melhor do que a
própria linguagem articulada, cujas palavras podem ser falsas. Sublinha também que os movimentos expressivos do rosto e do corpo representam o primeiro meio
de comunicação entre o bebê e
sua mãe. Vê-se, assim, o valor de
que se reveste o vasto e complexo
repertório de movimentos expressivos na regulação da sociabilidade.
A maioria dos movimentos expressivos configura padrões comportamentais inatos ou instintivos, argumenta Darwin, assim como instintiva deve ser a nossa capacidade de reconhecê-los. Em
outras palavras: gestos e expressões são mútua e automaticamente inteligíveis. Dessa perspectiva,
estaríamos aqui perante adaptações comportamentais que se
mostraram bem-sucedidas, uma
vez que ampliaram as chances de
sobrevivência dos organismos.
Já se constatou que, na obra em
apreço, Darwin adota raciocínios
lamarckistas. De fato, o ponto de
vista de que certas ações expressivas aprendidas poderiam posteriormente se tornar herdadas encontra-se presente em "A Expressão", e está dito, por exemplo, na
seguinte passagem: "O fato de esses gestos serem agora inatos não
constituiria uma objeção válida à
crença de que eles foram inicialmente intencionais; pois, se praticados durante muitas gerações, é
provável que fossem finalmente
herdados". Todavia, os especialistas lembram que o processo evolucionário não requer esse recurso lamarckista, já que os princípios da seleção natural e sexual revelam-se inteiramente suficientes
para dar conta da evolução das
expressões emocionais.
Linguagem silenciosa
O rubor, mais comum nos jovens e nas mulheres, é apontado
por Darwin como a mais humana
e peculiar das expressões, evidenciando-se em geral na face dos envergonhados e dos tímidos, ademais dos que se pautam pela modéstia. Uma pessoa afetada por
esses estados de espírito abaixa os
olhos ou olha de soslaio, pois dificilmente suporta o olhar dos presentes. Já nas pessoas atingidas
pelo sentimento de tristeza, as extremidades internas das sobrancelhas são erguidas e deprimidos
os cantos da boca. De outro lado,
um sorriso e um inconfundível
brilho nos olhos estampam-se na
face das pessoas quando encontram um velho amigo, ao passo
que um olhar arregalado e fixo,
sobrancelhas fortemente contraídas, narinas dilatadas e transpiração excessiva no rosto traduzem
um sentimento de horror. Tomado de alegria, o nosso rosto se expande; afetado pela tristeza, ele se
alonga. Franzir o cenho denuncia
a percepção de um sabor estranho
ou ruim no alimento.
Haveria emoções cujas expressões não se mostrariam de modo
tão nítido, como, por exemplo, a
suspeita, a inveja e o ciúme. Outras, em contrapartida, revelam-se com absoluta clareza, como é o
caso da surpresa e do espanto,
que se exprimem por meio da
abertura ampla da boca e dos
olhos. Já o tomado de orgulho,
anota Darwin, "exibe seu senso de
superioridade sobre os outros
mantendo a cabeça e o corpo eretos. Sua postura é altiva -ou elevada- e tenta parecer tão grande
quanto possível; tanto que, metaforicamente, diz-se que está inchado ou inflado de orgulho". O
culpado evita olhar seu acusador,
e o astucioso caracteriza-se sobretudo pela movimentação dos
olhos. Cuspir parece ser um sinal
universal de desprezo ou nojo,
enquanto o encolher de ombros
configura um gesto que expressa
impotência ou desculpa. Um homem tomado de fúria, raiva ou
ódio tem a sua respiração afetada,
o rosto lívido, as narinas dilatadas, boca e punhos fechados, dentes rangendo, corpo ereto, pronto
para ação imediata, e, nalgumas
vezes, dobrado para frente, na direção do agressor.
Numerosas outras emoções ou
estados de espírito e suas correspondentes expressões não-verbais, humanas e animais (sobretudo em cães, gatos e primatas
não-humanos), recebem de Darwin um tratamento meticuloso,
erudito e refinado. As ilustrações
reproduzidas na obra reforçam a
demonstração de suas teses e
brindam o leitor com uma pequena amostra da importância da documentação visual para o estudo
da "linguagem silenciosa". Nesse
domínio da expressão não-verbal
das emoções, o sorriso desponta
talvez como a manifestação mais
bem investigada. Contudo, muitas outras, da maior importância,
merecem estudos cuidadosos,
pois a maioria das nossas emoções está tão associada às suas
manifestações expressivas que raramente ocorre quando o corpo
permanece inerte.
Este livro encanta o especialista
acadêmico e o leitor comum, mas,
como se pode aquilatar, é também de grande valia para os profissionais da representação artística, pediatras, publicitários, cartunistas, veterinários, psicoterapeutas e cirurgiões plásticos, entre
outros.
Renato da Silva Queiroz é professor no
departamento de antropologia da USP.
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