São Paulo, sábado, 13 de maio de 2000


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Sob o prisma da festa

MARINA DE MELLO E SOUZA

00O estudo da festa -ou o seu mero registro- ficou por muito tempo restrito aos memorialistas e folcloristas, despertando a atenção de antropólogos, quando estes passaram a se interessar pelos chamados rituais. O interesse pelo tema é relativamente recente entre os historiadores, sendo poucas as pesquisas que o tomaram como cerne da análise. "O Império do Divino" vem consolidar as enormes possibilidades de compreensão da realidade sob o prisma da festa no campo da historiografia brasileira. Ao se debruçar sobre uma vasta documentação relativa ao Rio de Janeiro imperial, a autora nos dá um exemplo de como exercer o ofício de historiadora, tomando a festa como foco de luz que ilumina uma multiplicidade de aspectos da sociedade carioca do século 19.
00Entre as muitas festividades então realizadas, destacou-se por muito tempo a do Divino Espírito Santo, no campo de Santana. Herança de um passado ibérico medieval, foi aclimatada à sociedade brasileira em formação, na qual ganhou enorme importância, associada ao papel desempenhado pelas irmandades religiosas e pelo lugar das manifestações exteriores da fé típicas do catolicismo de feições barrocas, que imperou por todo o período colonial. Principal ocasião de divertimento de todas as camadas sociais, como bem perceberam muitos dos espantados viajantes, as festas tinham múltiplas funções e significados, abrigando a todos dentro da sua polissemia. Mas foi a do Divino, realizada no campo de Santana, pela irmandade da mesma santa, que atingiu maiores proporções.
00Na época de seu apogeu, dos anos 30 aos 60, os divertimentos de rua associados à celebração da padroeira chegaram a se estender por três meses, de maio a julho, emendando nas também concorridas festas de Santo Antonio, São Pedro e São João. Nessa ocasião, mediante a licença dos poderes administrativos, eram montadas, no campo de Santana, barraquinhas que ofereciam os mais variados divertimentos, comidas, bebidas e jogos de azar. Grande descampado no qual lavadeiras, vendedores ambulantes, prestadores de serviços e as mais variadas pessoas, principalmente das classes populares, se encontravam, o campo era um espaço privilegiado de exercício da sociabilidade, sendo esta característica, como nos mostra a autora, razão fundamental para o sucesso da festa. Para exemplificar esse encontro entre grupos diversos, Martha Abreu analisa um divertimento específico, os espetáculos teatrais e as danças que eram apresentadas na Barraca Três Cidras do Amor, na qual o Teles comandava as sessões que se sucediam noite adentro e eram assistidas por famílias de bem, por artistas cultivados e também pelos mais baixos estratos da população.
00Esse caldeirão de pessoas e manifestações culturais de diferentes origens levou a autora a propor a noção de "lundu", termo empregado para designar uma variedade de ritmos e passos, e por ela apropriado para indicar a flexibilidade de alguns produtos culturais que incorporam influências diversas, sendo também partilhados por grupos de várias procedências sociais. A análise que Martha Abreu empreende nesse ponto, aqui simplificada ao extremo, é apenas um exemplo dos vários momentos em que ela dá uma densidade incomum à sua narrativa, combinando uma sólida pesquisa documental com alta capacidade de reflexão. O ir e vir entre a descrição, sempre muito interessante, e a interpretação, sempre nova e bem-fundada, aliado à variedade de temas que aborda, torna seu livro de grande importância para a compreensão da sociedade carioca, principalmente no que diz respeito às trocas culturais entre os diversos grupos, incluídas aí não só as diferenças sociais como também as étnicas.
00Como não poderia deixar de ser, ao tratar de grupos de origens sociais e étnicas diversas, outro eixo condutor que toma para sua análise é o referente aos mecanismos de controle utilizados pela administração pública e órgãos religiosos, ambos inseridos num movimento que buscava se afastar de um passado colonial visto como atrasado, e implantar um certo padrão de civilização, inspirado nos países europeus, considerado mais adequado à jovem nação que se tornara independente, e buscava construir uma imagem de grandeza e modernidade. As tensões entre as normas de civilidade vigentes e as concessões inerentes às relações patriarcais reinantes são minuciosamente exploradas, sendo exemplar a análise de um batuque de negros que não foi reprimido, a despeito da legislação em vigor, interpretada à luz das relações pessoais em questão. Este é outro momento em que Martha Abreu exerce plenamente a sua capacidade de descrição densa. Aliando pesquisa e análise, o episódio faz com que reflita não só sobre os caminhos da tolerância, mas também dos processos vividos pelos africanos escravizados e seus descendentes, nos quais heranças culturais particulares se fundiram e compuseram novos produtos culturais, por todos vividos e reforçadores de uma identidade de grupo.
00Ao desvendar a importância da festa na sociedade do Rio de Janeiro imperial, e como nessa ocasião grupos diversos participavam de manifestações culturais que a todos congregavam, a autora também destaca a contribuição de Mello Morais Filho, argumentando que mais do que registrar tradições em vias de desaparecimento, ele teria proposto um caminho de compreensão do povo brasileiro, no qual a festa ocupava espaço de destaque e a contribuição das diversas raças não era vista de forma negativa. Evidentemente fascinada pelo autor no qual percebe um pioneirismo nunca antes mencionado, Martha Abreu se vincula, com a importante contribuição deste livro, a partir do qual a festa do Divino pode ser associada ao carnaval e o lundu ao samba, a uma tendência de pensamento que toma a festa como o local privilegiado de criação de uma identidade que, no limite, abrange a toda a nação.



O Império do Divino - Festas Religiosas e Cultura Popular no Rio de Janeiro (1830-1900)
Martha Abreu
Nova Fronteira (Tel. 0/xx/21/537-8770)
408 págs., R$ 27,00



Marina de Mello e Souza é doutora em história pela Universidade Federal Fluminense e autora de "Parati. A Cidade e as Festas"(UFRJ Editora).

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