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Deslocamentos
Ensaios críticos de Flora Süssekind tratam de vários autores
VIVIANA BOSI
Flora Süssekind vem apresentando
uma produção consistente e variada, seja
como pesquisadora da literatura brasileira do século 19 e da virada para o 20, seja
como crítica antenada com a cultura contemporânea. "A Voz e a Série" é uma coletânea que pode ser lida por inteiro, como variação à volta de um núcleo central,
ou por partes, em que se seleciona o assunto explorado em cada estudo de acordo com o interesse do leitor.
O livro está dividido em blocos temáticos. Logo na abertura, a autora escolhe
como recorte "A Voz" e apresenta um ensaio sobre teatro, outro sobre poesia, um
terceiro sobre ficção e um último sobre
cinema. Em todos, problematiza a voz
narrativa na produção contemporânea,
seja descrevendo as duplicações do eu
dramático em Gerald Thomas, seja refletindo sobre a exatidão concreta, geográfica, em tensão com a distância abstrata, do
eu lírico em João Cabral.
Um dos pontos altos da coletânea encontra-se na segunda parte, "Formas do
Tempo", no ensaio " Relógios e Ritmos",
em que Flora reflete sobre o descompasso
constitutivo da história brasileira, tendo
em vista a heterogeneidade de tempos
culturais que convivem em nosso ambiente. Ancora-se em Braudel, quando
trata da multiplicidade dos níveis históricos, nos quais se conjuminam estratos
não sincrônicos e de dimensões diferentes. Esse amálgama pontua nossa literatura, em obras como "Macunaíma", na
qual se misturam elementos de várias
culturas.
O desdobrar vertiginoso
Na terceira parte, sobre "A Série ", encontramos a questão fulcral do livro. A
discussão da voz centralizada em um indivíduo encontra amplo desenvolvimento no estudo sobre Borges. Em sua obra,
ele cultiva forte desconfiança em relação
às formas de reprodução técnica do humano, tais como se vêem nos livros, discos, telefones, fotografia (e, na raiz, na cópula e nos espelhos). Ao mesmo tempo,
apetece-lhe o "desdobrar vertiginoso" da
enumeração, das listas e duplos, utilizando a justaposição como técnica narrativa,
em que a multiplicação serial evoca a épica clássica. Tematiza a tensão entre o sucessivo e o coexistente, almejando desdobrar o "infinito no finito", seja pela estruturação em abismo da Biblioteca de Babel
ou pela impossibilidade de descrever tudo o que o Aleph revela "in nuce". A pesquisadora aventa a relação entre os catálogos épicos, típicos da lenda de origem
oral, e a seriação da reprodução técnica
industrial, nos folhetins e histórias de crimes modernos. Assim, recria-se uma forma narrativa agora apropriada à civilização de massa. Essa aproximação de linguagem mítica e novelas populares reaparece como angústia e paródia em Borges.
Süssekind evoca Benjamin, retratando
o "flaneur" baudelairiano em ensaio sobre João do Rio. Trata-se de uma excelente análise da modernização do Rio de Janeiro e da sociedade brasileira de então.
A autora compara os conteúdos dos folhetins do cotidiano do Rio com o apelo
das histórias de detetive e seus mistérios
urbanos, expressos na atração pela marginalidade e transgressão que a cidade
parece propiciar. Tal sentimento é aumentado pelos recentes maquinismos
-em especial o automóvel-, que manifesta a velocidade do amor proibido, a ostentação de seus possuidores, o espaço
privado e móvel contra o desconforto da
cidade que se despersonaliza -a um
tempo atraente e amedrontadora. Destroem-se os modelos tradicionais de socialização e os valores arraigados, mas isso é compensado por novas formas de liberdade.
A quarta parte, "Lembrar e Descrever",
abre com outro ensaio sobre João Cabral
-agora à volta dos "Poema(s) da Cabra", em que o poeta, por aproximações
sucessivas em torno do mesmo objeto,
vai criando uma tensão entre narratividade e lirismo, abstração e figuração, numa
série em que o suposto paisagismo impessoal, que aproxima o Mediterrâneo
europeu do Moxotó pernambucano mediante a comparação de suas cabras negras, na verdade manifesta um eu discreto, mas claro agente do olhar. A seguir,
em ensaio sobre Elizabeth Bishop, o recurso ao geografismo, que oculta o sujeito lírico, é desdobrado. Os mapas vão revelando os deslocamentos da autora, distante em relação à paisagem presente e
passada. A descrição parece comprovar a
distância, permeada, no entanto, pela
memória em movimento, que articula o
fundo do poema.
A carta
Há ainda outros ensaios sobre o descritivismo memorialista, mas o momento
mais interessante vem na parte final, reservada ao tema "A Carta", especialmente no brilhante ensaio "Cabral-Bandeira-Drummond". Nele, a autora apresenta a
correspondência entre Cabral e os outros
dois poetas, que marca, pelo próprio estilo das missivas, a personalidade de cada
um. Em Cabral, há uma explícita dificuldade em expor-se. Mesmo na comunicação mais pessoal, ele gostaria de "evitar-se", procurando transformar o epistolar
em ensaístico ou tendendo à brevidade e
ao prático. Enquanto Bandeira expõe
longamente seus gostos e desgostos nas
cartas, de forma espontânea e afetuosa,
Cabral preocupa-se principalmente em
imprimir o livro do amigo, "Mafuá do
Malungo", em sua tipografia caseira na
Espanha, para tornar mais visível e concreta a sua poesia. São formas reveladoras da diversidade de um e outro que têm
em comum, no entanto, a troca de versos,
de pesquisas, de informações e críticas
sinceras.
O mais importante dessas cartas, além
da consolidação de longas amizades intelectuais, foi perceber o quanto Cabral ia
construindo seu método a partir das leituras dos outros dois, que admirava sem
por isso diminuir suas diferenças. O diálogo com a poesia de ambos é intenso.
Em Drummond, Cabral enxerga o poder
de concretização e a capacidade de colocar "prosa na poesia". Em Bandeira, admira o despojamento de desentranhar
poemas do cotidiano, sem nenhum procedimento técnico aparente (embora,
mais do que ninguém, tão capaz ao utilizá-los). Nota Flora que, enquanto Bandeira evoca Recife de forma lírica e nostálgica, e Drummond expõe suas "inquietudes do eu" até a autonegação e a
culpa, ambos percebem em Cabral o gosto pela série de dominantes, o método de
aproximação sucessiva, em que se desdobra e retifica a imagem buscando a objetivação, no qual o eu é descentrado e se esmaece o foco central da perspectiva. Não
poderia haver contraste maior do que entre a liricidade despojada e terna de "O
Último Poema" de Bandeira e a dureza
lúcida do antilirismo cabralino, que propõe uma inversão corrosiva do modelo
anterior.
Polirritimia
O livro é polirrítmico, alternando ensaios mais densos e mais voláteis. Alguns
são antes esboços de estudos futuros,
com idéias latentes, mas nem sempre já
suficientemente críticos para uma tomada de posição, e outros traduzem consistência reflexiva e originalidade. Por vezes,
pecam por uma erudição detalhista, que
incha o texto de informações de rodapé,
reproduzindo, borgianamente, o excesso
enciclopédico de dados. No entanto, fazem parte da voz de Flora Süssekind as
digressões explicativas -ou introduções
na aparência um tanto disjuntivas-, de
forma que alguns textos lembram devaneios da razão, sem com isso perder-se o
fio coeso de idéias.
Mas, sendo já uma voz madura, talvez
não sejam mais necessários tantos exemplos para especificar cada particular, empanando o gume crítico. Possíveis aproximações precisariam de mais tempo de
depuração para convencer: por vezes, o
texto caminha em moldes mais agregativos que analíticos, em que correlações
ainda tênues são sobrepostas, ainda que
de forma imaginativa e promissora -e
sempre amparados pela integridade minuciosa da pesquisa.
O que, afinal, nos induz a pensar que estes ensaios contêm algo de apresentação
de um método, em que a autora amplia
em várias direções seus objetos de atenção, procurando acercar-se de campos de
estudo, às vezes de modo bem delineado,
e outras, deixando-os livres para o ainda
inconcluso. Assim, o próprio modelo de
composição do livro evoca o "Leitmotiv"
da seriação, haja vista a contínua justaposição de dados e pesquisas diversas , como uma fuga em que se reúnem vagas
melodias -intuições que afloram-,
mas que apenas sugerem um tema sub-reptício, justamente as modulações variáveis da voz na série temporal infinita
da história.
Viviana Bosi é professora de teoria literária e literatura comparada na USP e autora de "John Ashbery - Um Módulo Para o Vento" (Edusp).
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