São Paulo, sábado, 13 de maio de 2000


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Muito além do mercado

Adam Smith explica como a moralidade depende da vida social
ROLF KUNTZ

Adam Smith é lembrado, hoje, principalmente como autor de "A Riqueza das Nações", um livro famoso, frequentemente citado com impropriedade e considerado, por muitos, como a bíblia do capitalismo sem regras. O fim do socialismo na Europa Oriental e na extinta União Soviética já foi descrito como vitória de Smith sobre Marx. Mesmo entre pessoas mais informadas, poucas têm familiaridade com a "Teoria dos Sentimentos Morais" ou com outras obras de Smith -estudos sobre literatura, retórica, política, ciências naturais e lógica. Em seu tempo, no entanto, Smith alcançou fama e sucesso como professor, como filósofo e como autor de dois livros tão complexos quanto fascinantes. Pela rotulagem contemporânea, parte de sua obra seria classificada como sociologia. Para Smith, porém, seria difícil separar, sem grave perda para a investigação sobre o homem, as diferentes faces do comportamento humano. David Reismann tentou dar conta dessa complexidade num livro intitulado "Adam Smith's Sociological Economics", publicado em 1976, no bicentenário de "A Riqueza das Nações".
No século 19, o fascínio continuou, mas a ele se acrescentou a perplexidade, graças, principalmente, à contribuição de alguns professores alemães. Como poderia o mesmo filósofo ter escrito a "Teoria dos Sentimentos Morais" e "A Riqueza das Nações"? Essa pergunta é um exemplo de como a leitura desatenta -ou prejudicada pela incompetência historiográfica- pode criar um falso problema, dignificado, nesse caso, pela pompa de um nome alemão: "Das Adam Smith Problem".

Um falso problema
Em termos simples, esse problema seria o seguinte: num daqueles livros, a simpatia, um sentimento benevolente, seria tomada como a base do comportamento social; no outro, o interesse próprio seria apontado como a principal motivação dos indivíduos. Teria Smith perdido o rumo, sustentando, em dois livros, pontos de vista opostos? Ou suas idéias teriam mudado? Afinal, houve um considerável intervalo entre o lançamento do primeiro, em 1759, e o do segundo, em 1776.
A hipótese da mudança de idéia é uma evidente bobagem. Houve seis edições da "Teoria dos Sentimentos Morais" durante a vida de Smith. A última foi publicada em 1790, pouco antes de sua morte. Correções e mudanças foram introduzidas em cada nova edição, mas foram mantidas, sempre, as teses mais importantes. Ou Smith era fantasticamente distraído, assim como seus leitores mais qualificados (gente como David Hume e Adam Ferguson), ou eram todos um bando de incompetentes. Afinal, nenhum deles teria percebido, em todo esse tempo, a tal incompatibilidade? Em casos como esse, a humildade do intérprete faz o desconfiômetro funcionar com maior segurança.
A tese de dois livros incompatíveis fica ainda mais estranha quando se pensa no projeto de Adam Smith. Sim, ele se referiu a seus livros, no fim da vida, como partes de um projeto intelectual. Como nas "Variações Goldberg", na obra de Smith o fim repete o começo. A sexta edição da "Teoria dos Sentimentos Morais" é aberta com uma página de advertência, lamentavelmente omitida nesta tradução brasileira. É uma pista preciosa para a compreensão de todo o trabalho smithiano.
Essa advertência tem dois parágrafos. No primeiro, Smith chama a atenção para correções e acréscimos. A sexta parte, por exemplo, foi amplamente refeita para essa edição. No segundo parágrafo, ele recorda a promessa enunciada nas últimas linhas da primeira edição, lançada 31 anos antes. Nessas linhas finais, ele prometia discutir, noutra obra, "os princípios gerais da lei e do governo", assim como suas "diferentes revoluções nas diferentes eras e períodos da sociedade". Ele deveria tratar da justiça, do rendimento, das armas e de tudo quanto fosse objeto da lei. Essa promessa, segundo Smith, havia sido parcialmente cumprida na "Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações". Tinha sido impossível, no entanto, realizar a parte relativa à teoria da jurisprudência, por causa de outras atividades. "Embora minha idade avançada me conceda, reconheço, pouca esperança de poder executar esse grande trabalho de forma satisfatória, não abandonei totalmente esse intento", informa o filósofo na advertência. Concluindo, ele se declara ainda na obrigação de realizar a tarefa -e por isso decidiu manter as palavras finais da sexta parte.
Raros pensadores sociais -Marx e Weber são exceções evidentes- dedicaram-se a um programa tão amplo e tão ambicioso. Os dois livros deixados por Smith bastam para compor um enorme esforço de interpretação da vida social, mas o quadro ainda se completa com alguns documentos importantes. Um deles é o texto das "Considerações sobre a Primeira Formação das Línguas", publicado como apêndice da terceira edição da "Teoria dos Sentimentos Morais" (Dugald Stewart menciona, erradamente, a segunda) e incluído neste volume lançado pela Martins Fontes. São ricas, também, as "Lições de Jurisprudência", de 1762-63 e de 1764-65, anotadas provavelmente por dois estudantes. O primeiro desses textos, o mais extenso, foi descoberto em 1958. O outro foi conhecido 63 anos antes, em 1895. As lições contêm a teoria dos quatro estágios do desenvolvimento econômico e social, com a discussão dos vínculos entre formas de produção, costumes e organização do poder. Andrew Skinner descreve esse trabalho como uma "interpretação econômica da história". Esse exercício de "história conjectural" ou "filosófica" foi reproduzido em boa parte nos livros 3 e 5 de "A Riqueza das Nações".

A noção de simpatia
A função da "Teoria dos Sentimentos Morais" é expor a concepção smithiana da interação social. Parte fundamental dessa tarefa é explicar o julgamento moral, isto é, os juízos de aprovação e de reprovação dos comportamentos e a partilha de um mundo de valores. Essa explicação depende da noção de simpatia. Não se trata, no caso, de um sentimento de benevolência, como entenderam muitos leitores descuidados. Simpatia é a solidariedade com qualquer sentimento. Um indivíduo só pode avaliar o comportamento de outro -sua reação de ressentimento ou de gratidão, por exemplo- por ser capaz, pela imaginação, de assumir seu lugar. Nenhum homem pode penetrar a consciência de outro, porque todo conhecimento provém, direta ou indiretamente, da percepção sensorial. A vida social, no entanto, só é possível porque os homens, de alguma forma, aprendem a ler no comportamento alheio a aprovação e a reprovação, assim como a expectativa em relação a seus atos. Cada indivíduo aprende, por assim dizer, a contemplar-se por meio do olhar dos demais.
Esse intercâmbio constitui a trama da vida moral. Não haveria moralidade sem a vida coletiva. Um homem criado sem vínculo social seria incapaz de formar qualquer idéia a respeito da beleza ou da deformidade de seu comportamento, assim como um homem sem espelho seria incapaz de conhecer sua face. "O homem só é moral por viver em sociedade, pois a moralidade consiste em ser solidário com um grupo e em variar segundo essa solidariedade", escreveu Émile Durkheim mais de um século depois. David Reismann chama a atenção em mais de um ponto para a semelhança entre as concepções de Smith e as de Durkheim, algo espantoso, sem dúvida, para quem se acostumou às interpretações mais toscas do "individualismo" smithiano. Nada parecido com essa versão, em parte alimentada pela tradição marxista, se encontra nos intérpretes contemporâneos mais atentos, como David Reismann, Andrew Skinner e Thomas Wilson. A própria consciência moral do indivíduo, simbolizada, por Smith, na figura do "espectador imparcial", só é inteligível como interiorização dos padrões sociais.

O julgamento moral
A noção de simpatia explica, portanto, como é possível o julgamento moral. Não se simpatiza, porém, apenas com o sentimento alheio, mas com a propriedade do comportamento exibido pelos demais. "Propriedade" (em inglês, "propriety", com grafia ligeiramente diferente daquela da palavra "property") designa a conveniência (termo usado na tradução brasileira), a adequação ou a correção do sentimento indicado pelos atos de cada homem. Proporção é um dos componentes dessa "propriety". Gratidão e ressentimento, generosidade e auto-interesse, ousadia e prudência, expansividade e circunspeção, alegria e tristeza, violência e moderação, para citar só alguns casos, podem ser "apropriados", "convenientes" ou "corretos" segundo cada circunstância. A simpatia permite ao indivíduo pôr-se na situação do outro, mas a aprovação e a reprovação estão ligadas a uma avaliação das motivações. Muitos intérpretes deixaram de perceber essa diferença. O interesse próprio, normal no comportamento mercantil, é uma motivação. Não é o caso da simpatia. A simpatia permite a cada agente perceber como o interesse determina o comportamento dos outros homens (aqui entra o famoso exemplo sobre o intercâmbio com o cervejeiro, o açougueiro e o padeiro, uma das passagens mais familiares de "A Riqueza das Nações"). A motivação é algo distinto. Sem a simpatia, o funcionamento do mercado seria duvidoso, porque os agentes desconheceriam o interesse recíproco e até os padrões de confiança necessários às transações. Também o mercado é um fato social mais complexo para Smith do que para muitos de supostos discípulos.
Smith, como Marx, é um autor infinitamente mais complexo e rico do que supõem seus devotos, e isto vale tanto para o conjunto de sua análise social quanto para os detalhes de sua teoria econômica. Hoje está na moda falar sobre o mercado como se esta noção fosse inteligível por si mesma, independentemente de qualquer outra referência, exceto, talvez, aos dados legais da garantia da propriedade e da segurança dos contratos. Tudo isso provavelmente soaria para Smith como um falatório cômico, até porque ele se dedicou a estudar as noções de propriedade e de segurança legal como resultantes de uma complexa evolução histórica. Ler a "Teoria dos Sentimentos Morais" e as "Considerações sobre a Primeira Formação das Línguas" pode ser um passo inicial para uma nova compreensão de Smith -e, talvez, do mundo de hoje.


Rolf Kuntz é professor do departamento de filosofia da USP.


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