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Muito além do mercado
Adam Smith explica como a moralidade depende da vida social
ROLF KUNTZ
Adam Smith é lembrado, hoje, principalmente como autor de "A Riqueza das
Nações", um livro famoso, frequentemente citado com impropriedade e considerado, por muitos, como a bíblia do
capitalismo sem regras. O fim do socialismo na Europa Oriental e na extinta
União Soviética já foi descrito como vitória de Smith sobre Marx. Mesmo entre
pessoas mais informadas, poucas têm familiaridade com a "Teoria dos Sentimentos Morais" ou com outras obras de
Smith -estudos sobre literatura, retórica, política, ciências naturais e lógica. Em
seu tempo, no entanto, Smith alcançou
fama e sucesso como professor, como filósofo e como autor de dois livros tão
complexos quanto fascinantes. Pela rotulagem contemporânea, parte de sua obra
seria classificada como sociologia. Para
Smith, porém, seria difícil separar, sem
grave perda para a investigação sobre o
homem, as diferentes faces do comportamento humano. David Reismann tentou
dar conta dessa complexidade num livro
intitulado "Adam Smith's Sociological
Economics", publicado em 1976, no bicentenário de "A Riqueza das Nações".
No século 19, o fascínio continuou, mas
a ele se acrescentou a perplexidade, graças, principalmente, à contribuição de alguns professores alemães. Como poderia
o mesmo filósofo ter escrito a "Teoria dos
Sentimentos Morais" e "A Riqueza das
Nações"? Essa pergunta é um exemplo de
como a leitura desatenta -ou prejudicada pela incompetência historiográfica-
pode criar um falso problema, dignificado, nesse caso, pela pompa de um nome
alemão: "Das Adam Smith Problem".
Um falso problema
Em termos simples, esse problema seria
o seguinte: num daqueles livros, a simpatia, um sentimento benevolente, seria tomada como a base do comportamento
social; no outro, o interesse próprio seria
apontado como a principal motivação
dos indivíduos. Teria Smith perdido o rumo, sustentando, em dois livros, pontos
de vista opostos? Ou suas idéias teriam
mudado? Afinal, houve um considerável
intervalo entre o lançamento do primeiro, em 1759, e o do segundo, em 1776.
A hipótese da mudança de idéia é uma
evidente bobagem. Houve seis edições da
"Teoria dos Sentimentos Morais" durante a vida de Smith. A última foi publicada
em 1790, pouco antes de sua morte. Correções e mudanças foram introduzidas
em cada nova edição, mas foram mantidas, sempre, as teses mais importantes.
Ou Smith era fantasticamente distraído,
assim como seus leitores mais qualificados (gente como David Hume e Adam
Ferguson), ou eram todos um bando de
incompetentes. Afinal, nenhum deles teria percebido, em todo esse tempo, a tal
incompatibilidade? Em casos como esse,
a humildade do intérprete faz o desconfiômetro funcionar com maior segurança.
A tese de dois livros incompatíveis fica
ainda mais estranha quando se pensa no
projeto de Adam Smith. Sim, ele se referiu a seus livros, no fim da vida, como
partes de um projeto intelectual. Como
nas "Variações Goldberg", na obra de
Smith o fim repete o começo. A sexta edição da "Teoria dos Sentimentos Morais"
é aberta com uma página de advertência,
lamentavelmente omitida nesta tradução
brasileira. É uma pista preciosa para a
compreensão de todo o trabalho smithiano.
Essa advertência tem dois parágrafos.
No primeiro, Smith chama a atenção para correções e acréscimos. A sexta parte,
por exemplo, foi amplamente refeita para
essa edição. No segundo parágrafo, ele
recorda a promessa enunciada nas últimas linhas da primeira edição, lançada 31
anos antes. Nessas linhas finais, ele prometia discutir, noutra obra, "os princípios gerais da lei e do governo", assim como suas "diferentes revoluções nas diferentes eras e períodos da sociedade". Ele
deveria tratar da justiça, do rendimento,
das armas e de tudo quanto fosse objeto
da lei. Essa promessa, segundo Smith, havia sido parcialmente cumprida na "Investigação sobre a Natureza e as Causas
da Riqueza das Nações". Tinha sido impossível, no entanto, realizar a parte relativa à teoria da jurisprudência, por causa
de outras atividades. "Embora minha
idade avançada me conceda, reconheço,
pouca esperança de poder executar esse
grande trabalho de forma satisfatória,
não abandonei totalmente esse intento",
informa o filósofo na advertência. Concluindo, ele se declara ainda na obrigação
de realizar a tarefa -e por isso decidiu
manter as palavras finais da sexta parte.
Raros pensadores sociais -Marx e
Weber são exceções evidentes- dedicaram-se a um programa tão amplo e tão
ambicioso. Os dois livros deixados por
Smith bastam para compor um enorme
esforço de interpretação da vida social,
mas o quadro ainda se completa com alguns documentos importantes. Um deles
é o texto das "Considerações sobre a Primeira Formação das Línguas", publicado
como apêndice da terceira edição da
"Teoria dos Sentimentos Morais" (Dugald Stewart menciona, erradamente, a
segunda) e incluído neste volume lançado pela Martins Fontes. São ricas, também, as "Lições de Jurisprudência", de
1762-63 e de 1764-65, anotadas provavelmente por dois estudantes. O primeiro
desses textos, o mais extenso, foi descoberto em 1958. O outro foi conhecido 63
anos antes, em 1895. As lições contêm a
teoria dos quatro estágios do desenvolvimento econômico e social, com a discussão dos vínculos entre formas de produção, costumes e organização do poder.
Andrew Skinner descreve esse trabalho
como uma "interpretação econômica da
história". Esse exercício de "história conjectural" ou "filosófica" foi reproduzido
em boa parte nos livros 3 e 5 de "A Riqueza das Nações".
A noção de simpatia
A função da "Teoria dos Sentimentos
Morais" é expor a concepção smithiana
da interação social. Parte fundamental
dessa tarefa é explicar o julgamento moral, isto é, os juízos de aprovação e de reprovação dos comportamentos e a partilha de um mundo de valores. Essa explicação depende da noção de simpatia.
Não se trata, no caso, de um sentimento
de benevolência, como entenderam muitos leitores descuidados. Simpatia é a solidariedade com qualquer sentimento.
Um indivíduo só pode avaliar o comportamento de outro -sua reação de ressentimento ou de gratidão, por exemplo- por ser capaz, pela imaginação, de
assumir seu lugar. Nenhum homem pode penetrar a consciência de outro, porque todo conhecimento provém, direta
ou indiretamente, da percepção sensorial. A vida social, no entanto, só é possível porque os homens, de alguma forma,
aprendem a ler no comportamento
alheio a aprovação e a reprovação, assim
como a expectativa em relação a seus
atos. Cada indivíduo aprende, por assim
dizer, a contemplar-se por meio do olhar
dos demais.
Esse intercâmbio constitui a trama da
vida moral. Não haveria moralidade sem
a vida coletiva. Um homem criado sem
vínculo social seria incapaz de formar
qualquer idéia a respeito da beleza ou da
deformidade de seu comportamento, assim como um homem sem espelho seria
incapaz de conhecer sua face. "O homem
só é moral por viver em sociedade, pois a
moralidade consiste em ser solidário com
um grupo e em variar segundo essa solidariedade", escreveu Émile Durkheim
mais de um século depois. David Reismann chama a atenção em mais de um
ponto para a semelhança entre as concepções de Smith e as de Durkheim, algo
espantoso, sem dúvida, para quem se
acostumou às interpretações mais toscas
do "individualismo" smithiano. Nada
parecido com essa versão, em parte alimentada pela tradição marxista, se encontra nos intérpretes contemporâneos
mais atentos, como David Reismann,
Andrew Skinner e Thomas Wilson. A
própria consciência moral do indivíduo,
simbolizada, por Smith, na figura do "espectador imparcial", só é inteligível como
interiorização dos padrões sociais.
O julgamento moral
A noção de simpatia explica, portanto,
como é possível o julgamento moral. Não
se simpatiza, porém, apenas com o sentimento alheio, mas com a propriedade do
comportamento exibido pelos demais.
"Propriedade" (em inglês, "propriety",
com grafia ligeiramente diferente daquela da palavra "property") designa a conveniência (termo usado na tradução brasileira), a adequação ou a correção do
sentimento indicado pelos atos de cada
homem. Proporção é um dos componentes dessa "propriety". Gratidão e ressentimento, generosidade e auto-interesse,
ousadia e prudência, expansividade e circunspeção, alegria e tristeza, violência e
moderação, para citar só alguns casos,
podem ser "apropriados", "convenientes" ou "corretos" segundo cada circunstância. A simpatia permite ao indivíduo
pôr-se na situação do outro, mas a aprovação e a reprovação estão ligadas a uma
avaliação das motivações. Muitos intérpretes deixaram de perceber essa diferença. O interesse próprio, normal no comportamento mercantil, é uma motivação.
Não é o caso da simpatia. A simpatia permite a cada agente perceber como o interesse determina o comportamento dos
outros homens (aqui entra o famoso
exemplo sobre o intercâmbio com o cervejeiro, o açougueiro e o padeiro, uma
das passagens mais familiares de "A Riqueza das Nações"). A motivação é algo
distinto. Sem a simpatia, o funcionamento do mercado seria duvidoso, porque os
agentes desconheceriam o interesse recíproco e até os padrões de confiança necessários às transações. Também o mercado é um fato social mais complexo para
Smith do que para muitos de supostos
discípulos.
Smith, como Marx, é um autor infinitamente mais complexo e rico do que supõem seus devotos, e isto vale tanto para
o conjunto de sua análise social quanto
para os detalhes de sua teoria econômica.
Hoje está na moda falar sobre o mercado
como se esta noção fosse inteligível por si
mesma, independentemente de qualquer
outra referência, exceto, talvez, aos dados
legais da garantia da propriedade e da segurança dos contratos. Tudo isso provavelmente soaria para Smith como um falatório cômico, até porque ele se dedicou
a estudar as noções de propriedade e de
segurança legal como resultantes de uma
complexa evolução histórica. Ler a "Teoria dos Sentimentos Morais" e as "Considerações sobre a Primeira Formação das
Línguas" pode ser um passo inicial para
uma nova compreensão de Smith -e,
talvez, do mundo de hoje.
Rolf Kuntz é professor do departamento de filosofia da USP.
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