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São Paulo, sábado, 13 de setembro de 2003

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Chica, a mulher e o mito

A verdadeira história de Chica da Silva

Chica da Silva e o Contratador de Diamantes
Júnia Ferreira Furtado
Companhia das Letras
(Tel.0/xx/11/ 3707-3500)
464 págs., R$ 48,50

SANDRA LAUDERDALE GRAHAM

Sedutora e provocante, calculista, dominadora, flamejante, pecadora, bruxa, protetora de escravos e patrona das artes -estas imagens acorrem à mente ante o nome da ex-escrava de Minas Gerais no século 18, Chica da Silva.
Essa Chica foi criada: uma colagem de personalidades juntadas durante um século e meio, começando com um misto de advogado e historiador amador nos anos de 1850, continuando com um bispo da década de 1890, prosseguindo com os profissionais de turismo, romancistas, autores teatrais, diretores de cinema e, mais recentemente, um produtor de telenovelas. Essas Chicas, distorcidas, exageradas, romantizadas, às vezes pura fantasia ou mau gosto extremo, levaram a historiadora Júnia Ferreira Furtado a perguntar: quem foi Chica da Silva? Furtado deseja descobrir a mulher que viveu do outro lado do mito.
Para isso, ela procurou diligentemente por Chica em pilhas de papel velho, desbotado e poeirento que os bons historiadores sociais sabem como consultar: registros paroquiais, livros de notas, testamentos e inventários; dados fiscais e um censo de 1774 que arrolou cada casa do Tejuco, hoje Diamantina, onde Chica viveu a maior parte de sua vida de liberta; um livro de razão do Recolhimento das Macaúbas, que guardou a notícia dos presentes dados e das visitas feitas por Chica a suas filhas que ali estudavam. No Brasil, Furtado varreu arquivos pequenos e grandes, regionais e nacionais.
É evidente que não bastava perseguir apenas Chica, foi preciso buscar pelos que desempenharam papéis importantes na sua vida, sobretudo João Fernandes de Oliveira, o contratador de diamantes, seu quase marido. E como o de outros homens brancos importantes, o rastro de João Fernandes é fácil de seguir, conduzindo ao governador da capitania e até mais acima, ao poderoso amigo do rei, Sebastião José de Carvalho e Melo, marquês de Pombal, que distribuía o mando colonial entre aqueles em quem confiava -e Pombal confiava em João Fernandes como confiara em seu pai.
A Chica encontrada não é a mulata exótica da ficção, mas uma mulher mais pé-na-terra, mais convincente e mais parecida do que se poderia esperar com outras ex-escravas da época e da região. Da intersecção da biografia com a história, a autora quer, contudo, extrair o que é específico a Chica.
Nascida de escrava africana e pai branco poucos anos após a descoberta dos diamantes -mais ou menos entre 1731 e 1735, pois a data permanece incerta-, em 1749 Chica já tinha sido comprada por Manuel Pires Sardinha, seguramente como sua concubina, e dois anos depois tinha dado a luz ao seu primeiro filho. Acusado por uma Visita Pastoral de manter relações ilícitas com duas escravas, Sardinha vendeu Chica e o filho deles a João Fernandes de Oliveira em 1753, provavelmente, então, para ser concubina deste. Em dezembro do mesmo ano -e aqui Furtado enfia uma deliciosa reconstrução histórica para explicar o significado da data-, João Fernandes a libertou. Extraordinariamente. Não era digno de nota que, no século 18, escravas fossem concubinas de seus senhores ou libertadas por eles, sendo, contudo, característico que esperassem pela liberdade e que, frequentemente assistindo a alforria de seus filhos por ocasião do batismo, só fossem libertadas quando o senhor ficasse velho e temeroso da morte.

A Chica auto-inventada
Mas não foi isso que se deu com Chica e João Fernandes. Apesar de não ser um casamento oficial, a união durou. Todos os filhos foram batizados e reconhecidos como herdeiros do pai; e todos foram educados -as meninas, no mais renomado recolhimento de Minas, os meninos em Portugal. Se esta não é a história típica de uma ex-escrava, tampouco é a história de uma mulher conhecida como devoradora de homens. Ao fim e ao cabo, como sugere Furtado, 13 crianças nascidas em 16 anos é suficiente para tornar qualquer mulher menos glamourosa.
Se outros inventaram a Chica mítica, Chica inventou-se. Referindo-se à sociedade inglesa do século 16, Stephen Greenblatt chamou processos desse tipo de "self-fashioning", a construção da personalidade individual que envolve não apenas a aspiração e a perspectiva da realização pessoal, mas a posse de recursos pessoais -ambição, talento, beleza- combinados com as possibilidades de mobilidade social e, ao mesmo tempo, o reconhecimento sensível dos limites que constrangem a iniciativa individual. O objetivo de Chica não era desafiar a elite da sociedade, apesar de, sob certo aspecto, isso ser inevitável por causa de sua cor e status; o que ela queria era pertencer à elite, observar suas regras enquanto esposa consensual, mãe, dona de casa, patrona da igreja e das irmandades a que pertencia.
O tema de Furtado é sempre o esforço de Chica em se inserir numa sociedade livre e branca, em imitar a senhora que ela queria ser. Chica se tornou Francisca da Silva de Oliveira e, assim, a um só tempo, recuperou seu nome de batismo e a ele incorporou o sobrenome de João Fernandes. Entre libertos, era prática corriqueira tomar como seu o nome dos antigos senhores; aqui, contudo, o empréstimo soa ambíguo, mais como uma mulher assumindo o nome de casada. Unida a um homem cuja riqueza e prestígio ela partilhava informalmente, Chica ganhou uma posição social que, sozinha, nunca teria conseguido. No século 18, Minas Gerais recompensava o "self-fashioning" de pessoas de todas as qualidades.
Apesar da glória e da promessa -a casa de Chica no Tejuco, a chácara da Palha com seus vastos jardins onde patrocinavam teatro e música, as fazendas, cavalos, gado, e a encomenda de capelas-, apesar de tudo isso, no final as coisas não saíram como o desejado. O que mais chama a atenção é a apressada separação entre Chica e João Fernandes, provocada pelas notícias da morte do pai em Lisboa no ano de 1770 e do arrebatamento de metade da fortuna pela madrasta, descontente com o dote que lhe ficara do contrato pré-nupcial. Não dá para saber se Chica e João Fernandes perceberam então que nunca mais se veriam, e Furtado evita qualquer especulação. Não há menção de cartas ou mensagens entre eles, mas não parece certo que tenham se correspondido, tratando pelo menos das crianças e das propriedades?
Pelos próximos anos, João Fernandes permaneceu em Lisboa, embrulhado em batalhas legais para salvar sua fortuna. Em 1775, João Fernandes encontrava-se doente e moribundo, e com a morte do rei, em 1777, e Pombal em desgraça, sua fortuna foi de mal a pior. Morreu sem ter voltado para o Brasil ou para Chica. Até sua própria morte, 20 anos depois, Chica manteve-se como uma mulher rica, dona de terras e escravos. Seu funeral, realizado dentro da igreja, ao pé do altar principal, e as inúmeras missas oferecidas a sua alma refletem sua preeminência terrena.
Como prólogo e epílogo à história de Chica, Furtado faz uma pausa para refletir sobre a escrita da história e, por extensão, sobre o fazer histórico. Nesta era pós-moderna, sua posição é clara: história não é ficção, não é invenção. Diferentemente dos criadores de mitos, os historiadores não podem preencher lacunas. Ao contrário, historiadores são obrigados ao exame rigoroso de cada evidência passível de ser recuperada, e situadas nos quadros de um contexto construído de forma igualmente rigorosa.
Na frase e na prática de E.P. Thompson, "a disciplina da história é, acima de tudo, a disciplina do contexto". Reconstrução contextual e interpretação constituem também o método de Furtado, de tal maneira que, ao final, ela consegue iluminar não apenas Chica da Silva, mas a vida nos distritos mineradores de Minas Gerais no século 18. Ela avisa que a reconstrução histórica tem seus limites. Há muito de frustrante e evasivo acerca de motivos e emoções, e as fontes permanecem teimosamente silenciosas. Apesar disso, este livro, maravilhosamente pesquisado e escrito, triunfa quando nos lembra que a história é mais cativante que a ficção. É a verdadeira Chica que manda.


Sandra Lauderdale Graham é professora de história na Universidade do Texas e autora de "A Casa e a Rua" (Cia. das Letras)
Tradução de Laura de Mello e Souza.


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