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Chica, a mulher e o mito
A verdadeira história de Chica da Silva
Chica da Silva e o
Contratador de Diamantes
Júnia Ferreira Furtado
Companhia das Letras
(Tel.0/xx/11/ 3707-3500)
464 págs., R$ 48,50
SANDRA LAUDERDALE GRAHAM
Sedutora e provocante, calculista, dominadora, flamejante, pecadora, bruxa, protetora de escravos
e patrona das artes -estas imagens acorrem à mente ante o nome da ex-escrava de Minas Gerais
no século 18, Chica da Silva.
Essa Chica foi criada: uma colagem de personalidades juntadas
durante um século e meio, começando com um misto de advogado e historiador amador nos anos
de 1850, continuando com um
bispo da década de 1890, prosseguindo com os profissionais de
turismo, romancistas, autores
teatrais, diretores de cinema e,
mais recentemente, um produtor
de telenovelas. Essas Chicas, distorcidas, exageradas, romantizadas, às vezes pura fantasia ou mau
gosto extremo, levaram a historiadora Júnia Ferreira Furtado a
perguntar: quem foi Chica da Silva? Furtado deseja descobrir a
mulher que viveu do outro lado
do mito.
Para isso, ela procurou diligentemente por Chica em pilhas de
papel velho, desbotado e poeirento que os bons historiadores sociais sabem como consultar: registros paroquiais, livros de notas,
testamentos e inventários; dados
fiscais e um censo de 1774 que arrolou cada casa do Tejuco, hoje
Diamantina, onde Chica viveu a
maior parte de sua vida de liberta;
um livro de razão do Recolhimento das Macaúbas, que guardou a
notícia dos presentes dados e das
visitas feitas por Chica a suas filhas que ali estudavam. No Brasil,
Furtado varreu arquivos pequenos e grandes, regionais e nacionais.
É evidente que não bastava perseguir apenas Chica, foi preciso
buscar pelos que desempenharam papéis importantes na sua vida, sobretudo João Fernandes de
Oliveira, o contratador de diamantes, seu quase marido. E como o de outros homens brancos
importantes, o rastro de João Fernandes é fácil de seguir, conduzindo ao governador da capitania
e até mais acima, ao poderoso
amigo do rei, Sebastião José de
Carvalho e Melo, marquês de
Pombal, que distribuía o mando
colonial entre aqueles em quem
confiava -e Pombal confiava em
João Fernandes como confiara
em seu pai.
A Chica encontrada não é a mulata exótica da ficção, mas uma
mulher mais pé-na-terra, mais
convincente e mais parecida do
que se poderia esperar com outras ex-escravas da época e da região. Da intersecção da biografia
com a história, a autora quer, contudo, extrair o que é específico a
Chica.
Nascida de escrava africana e
pai branco poucos anos após a
descoberta dos diamantes -mais
ou menos entre 1731 e 1735, pois a
data permanece incerta-, em
1749 Chica já tinha sido comprada por Manuel Pires Sardinha, seguramente como sua concubina,
e dois anos depois tinha dado a
luz ao seu primeiro filho. Acusado
por uma Visita Pastoral de manter relações ilícitas com duas escravas, Sardinha vendeu Chica e o
filho deles a João Fernandes de
Oliveira em 1753, provavelmente,
então, para ser concubina deste.
Em dezembro do mesmo ano -e
aqui Furtado enfia uma deliciosa
reconstrução histórica para explicar o significado da data-, João
Fernandes a libertou. Extraordinariamente. Não era digno de nota que, no século 18, escravas fossem concubinas de seus senhores
ou libertadas por eles, sendo, contudo, característico que esperassem pela liberdade e que, frequentemente assistindo a alforria
de seus filhos por ocasião do batismo, só fossem libertadas quando o senhor ficasse velho e temeroso da morte.
A Chica auto-inventada
Mas não foi isso que se deu com
Chica e João Fernandes. Apesar
de não ser um casamento oficial, a
união durou. Todos os filhos foram batizados e reconhecidos como herdeiros do pai; e todos foram educados -as meninas, no
mais renomado recolhimento de
Minas, os meninos em Portugal.
Se esta não é a história típica de
uma ex-escrava, tampouco é a
história de uma mulher conhecida como devoradora de homens.
Ao fim e ao cabo, como sugere
Furtado, 13 crianças nascidas em
16 anos é suficiente para tornar
qualquer mulher menos glamourosa.
Se outros inventaram a Chica
mítica, Chica inventou-se. Referindo-se à sociedade inglesa do
século 16, Stephen Greenblatt
chamou processos desse tipo de
"self-fashioning", a construção da
personalidade individual que envolve não apenas a aspiração e a
perspectiva da realização pessoal,
mas a posse de recursos pessoais
-ambição, talento, beleza-
combinados com as possibilidades de mobilidade social e, ao
mesmo tempo, o reconhecimento
sensível dos limites que constrangem a iniciativa individual. O objetivo de Chica não era desafiar a
elite da sociedade, apesar de, sob
certo aspecto, isso ser inevitável
por causa de sua cor e status; o
que ela queria era pertencer à elite, observar suas regras enquanto
esposa consensual, mãe, dona de
casa, patrona da igreja e das irmandades a que pertencia.
O tema de Furtado é sempre o
esforço de Chica em se inserir numa sociedade livre e branca, em
imitar a senhora que ela queria
ser. Chica se tornou Francisca da
Silva de Oliveira e, assim, a um só
tempo, recuperou seu nome de
batismo e a ele incorporou o sobrenome de João Fernandes. Entre libertos, era prática corriqueira tomar como seu o nome dos
antigos senhores; aqui, contudo, o
empréstimo soa ambíguo, mais
como uma mulher assumindo o
nome de casada. Unida a um homem cuja riqueza e prestígio ela
partilhava informalmente, Chica
ganhou uma posição social que,
sozinha, nunca teria conseguido.
No século 18, Minas Gerais recompensava o "self-fashioning"
de pessoas de todas as qualidades.
Apesar da glória e da promessa
-a casa de Chica no Tejuco, a
chácara da Palha com seus vastos
jardins onde patrocinavam teatro
e música, as fazendas, cavalos, gado, e a encomenda de capelas-,
apesar de tudo isso, no final as
coisas não saíram como o desejado. O que mais chama a atenção é
a apressada separação entre Chica
e João Fernandes, provocada pelas notícias da morte do pai em
Lisboa no ano de 1770 e do arrebatamento de metade da fortuna
pela madrasta, descontente com o
dote que lhe ficara do contrato
pré-nupcial. Não dá para saber se
Chica e João Fernandes perceberam então que nunca mais se veriam, e Furtado evita qualquer especulação. Não há menção de cartas ou mensagens entre eles, mas
não parece certo que tenham se
correspondido, tratando pelo menos das crianças e das propriedades?
Pelos próximos anos, João Fernandes permaneceu em Lisboa,
embrulhado em batalhas legais
para salvar sua fortuna. Em 1775,
João Fernandes encontrava-se
doente e moribundo, e com a
morte do rei, em 1777, e Pombal
em desgraça, sua fortuna foi de
mal a pior. Morreu sem ter voltado para o Brasil ou para Chica.
Até sua própria morte, 20 anos
depois, Chica manteve-se como
uma mulher rica, dona de terras e
escravos. Seu funeral, realizado
dentro da igreja, ao pé do altar
principal, e as inúmeras missas
oferecidas a sua alma refletem sua
preeminência terrena.
Como prólogo e epílogo à história de Chica, Furtado faz uma
pausa para refletir sobre a escrita
da história e, por extensão, sobre
o fazer histórico. Nesta era pós-moderna, sua posição é clara: história não é ficção, não é invenção.
Diferentemente dos criadores de
mitos, os historiadores não podem preencher lacunas. Ao contrário, historiadores são obrigados ao exame rigoroso de cada
evidência passível de ser recuperada, e situadas nos quadros de
um contexto construído de forma
igualmente rigorosa.
Na frase e na prática de E.P.
Thompson, "a disciplina da história é, acima de tudo, a disciplina
do contexto". Reconstrução contextual e interpretação constituem também o método de Furtado, de tal maneira que, ao final, ela
consegue iluminar não apenas
Chica da Silva, mas a vida nos distritos mineradores de Minas Gerais no século 18. Ela avisa que a
reconstrução histórica tem seus
limites. Há muito de frustrante e
evasivo acerca de motivos e emoções, e as fontes permanecem teimosamente silenciosas. Apesar
disso, este livro, maravilhosamente pesquisado e escrito, triunfa quando nos lembra que a história é mais cativante que a ficção. É
a verdadeira Chica que manda.
Sandra Lauderdale Graham é professora de história na Universidade do Texas e autora de "A Casa e a Rua" (Cia. das
Letras)
Tradução de Laura de Mello e Souza.
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