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São Paulo, sábado, 13 de setembro de 2003

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De trás pra frente

Estudo trata dos temas preferidos dos palhaços brasileiros

Palhaços
Mário Fernando Bolognesi
Ed. Unesp (Tel.0/xx/11/3242-7171)
294 págs., R$ 29,00

ANA PORTICH

O estilo filosófico está associado à circunspecção, à compostura, à discrição; mas, ao tratar filosoficamente de "Palhaços", Mário Bolognesi se coloca entre os autores, antigos ou não, que nos instigam à investigação filosófica sem tédio.
A começar pelo repertório de 46 esquetes, fotografado e transcrito por Bolognesi durante pesquisa de campo feita em diversas regiões brasileiras entre 1997 e 2000, importantíssimo como registro da prática dos palhaços. Em uma primeira triagem, o material se classifica entre esquetes exclusivamente gestuais e outros, que têm um diálogo básico a partir do qual os artistas improvisam.
Estes, por sua vez, são divididos em "reprises" e "entradas", que no jargão circense nomeiam respectivamente paródias de outras atrações circenses e comédias clownescas de curta duração. Em circos brasileiros, pequenos ou médios, os palhaços participam ainda de números musicais, interpretando em chave obscena canções em voga, além de representar personagens cômicas em breves dramas e comédias. Observações sobre a retração do gênero melodramático são reveladoras: "Na atualidade, no Brasil, o circo-teatro tem-se dedicado à representação de comédias. Os antigos melodramas têm uma participação pequena".
Reprisados às avessas ou transformados em peças curtas, os temas preferidos pelos palhaços brasileiros são paródias de números circenses. Quando o assunto é a vida fora do picadeiro, os conflitos subordinam-se à inter-relação de dois tipos básicos de palhaços. São eles, o prepotente Clown Branco, assim chamado devido à maquiagem que o caracteriza, e Augusto, desastrado e submisso, ao contrário do que sugere o nome.
Essa tipificação, que tem raízes nas facécias dos bufões medievais e na "commedia dell'arte" do renascimento, consolida-se a partir do século 19 na Europa e em todos os lugares do mundo por onde passaram os grandes circos; no Brasil, ciganos refugiados das perseguições do Santo Ofício apresentavam em meados do século 18 espetáculos muito semelhantes aos que constituíram as atrações dos primeiros circos europeus, os quais, na acepção contemporânea da palavra, apareceram décadas depois.
Enquanto a "commedia dell'arte" fundamenta suas intrigas em diversas personagens mascaradas ou não, "a entrada clownesca tem somente na oposição do Clown Branco com o Augusto os seus ingredientes conflitantes". Aspecto dramatúrgico que não se confirma atualmente nos circos brasileiros, em que, no mais das vezes, ocorre a contraposição de dois Augustos; se um deles prepondera no papel de trapalhão, pode haver uma reviravolta em que o mais fraco se sobreponha.

Improvisação
O levantamento de dados "in loco" e a história da personagem clownesca indicam que seu traço mais marcante é a improvisação. Para que os palhaços improvisem, são determinantes a caracterização da personagem e os recursos dramatúrgicos definidos no decorrer dessa história, transmitidos oralmente. Então a improvisação não se dá por geração espontânea, no picadeiro não irrompe a manifestação imediata de forças naturais.
Se os palhaços realizam uma articulação de elementos artísticos, Bolognesi os detecta no âmbito da cultura popular. Aqui o termo "popular" não se entende como "primitivo", pois está relacionado a categorias de produção e recepção artísticas apropriadas ao vulgo, codificado como inapto, desajeitado e propenso ao estilo baixo ou sórdido. "Cidade de Trás pra Frente", uma das entradas incluídas no livro, demonstra que o linguajar lascivo e a obtusidade do palhaço são motivos de riso (mesmo que o mais atrapalhado dê a volta por cima):
"Palhaço 1. Eu sou mais viajado que você. Palhaço 2. Não, você não é mais viajado que eu! 1. Então vamos fazer uma aposta. A cidade que eu passei e você também, você diz o nome dela de trás pra frente. Eu passei na Freguesia do Ó! 2. Eu passei o ó na freguesia! 1. Eu passei em Rego do Limão! 2. Eu passei o limão no rego! 1. Eu passei em Cubatão! 2. Eu passei batão no... Onde você passou? 1. Eu passei em Cubatão! 2. Lá eu passei de Avião!!!".
No corpo do palhaço revela-se plenamente seu aspecto grotesco, contraposto à sublimidade dos acrobatas, cuja perícia e altivez são desmistificadas pela demonstração de imperfeições, desvios e pela exposição do baixo ventre. Na paródia que o clown faz de seus admiráveis colegas, no oscilar entre dois pólos, se evidencia a especificidade do espetáculo de circo: o corpo, considerado como organismo vivo e não coisa inerte.
Também sem a ligeira contribuição dos acrobatas, o caricato palhaço consegue sustentar certa leveza, e aqui Bolognesi, ainda que aceite suas premissas, discorda das conclusões de Henri Bergson sobre o riso. De fato, o desempenho do palhaço é centrado no corpo, mas não um corpo mecanizado e coisificado. Isso porque o filósofo francês "se atém ao objeto do riso. Despreza, portanto, duas outras instâncias essenciais do fenômeno do riso, a saber, o sujeito que suscita o riso (o autor, o ator, o comediante etc.) e o sujeito que ri (o espectador)".
O palhaço não segue ao pé da letra um roteiro nem reproduz um papel previamente definido. Sua atuação depende de uma série de imponderáveis, desde a infinidade de reações do público até as características pessoais de quem o faz. Embora obedeça ao preceito aristotélico de generalização para inventar a personagem cômica, cada palhaço difere dos demais, segundo a subjetividade daquele que o personifica, procedendo a uma síntese entre o particular e o universal.
Nesse jogo, cujo resultado é imprevisível, frustram-se expectativas moralizantes. O público dos circos brasileiros desconsidera mensagens melodramáticas porque prefere, sem mais, fruir da diversidade incessante que o itinerante palhaço recolhe do contato direto com a cultura popular. Também a opressão do Clown Branco sobre seu parceiro tem referências externas ao circo. "Desse modo, portanto, duas das principais características da sociedade burguesa são contempladas: a divisão de classes e a expressão da subjetividade".
Fixado à margem desse lugar, o sujeito que o palhaço põe em cena seria transformado em coisa, em objeto, não fosse a sua falta de aptidão, o seu desleixo, e a falta de sentido que o mundo utilitário trai nos esquetes clownescos.


Ana Portich é doutoranda em filosofia na USP.


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