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A escrita da cena
Grupo Galpão Diário de Montagem (Livros 1 a 4)
Carlos Antônio Leite Brandão e Eduardo da Luz Moreira
Ed. UFMG
(Tel. 0/xx/31/3499-4642)
118, 108, 124, 118 págs., R$ 50,00 ( 4 vol.)
FÁTIMA SAADI
Os quatro "Diários de Montagem" do Grupo Galpão, relativos ao processo
de criação dos espetáculos "Romeu e Julieta", "A Rua da Amargura", "Um
Molière Imaginário" e "Partido", devem ser lidos como um "Bildungsroman",
como se lê, por exemplo, "A Missão Teatral de Wilhelm Meister", de Goethe.
No entanto, à diferença do romance alemão, o foco não está na formação espiritual do protagonista por meio de seu contato com uma trupe itinerante que
ele encontra por acaso num albergue. O que os quatro "Diários" nos revelam é
a configuração da função do dramaturgista e o seu trabalho no âmbito do Grupo Galpão. Os textos são o mais importante testemunho até agora produzido
no Brasil a respeito de uma atividade mais fácil de descrever do que de explicar,
porque estabelece teias produtivas entre o pensamento e a criação teatrais.
Cacá Brandão, dramaturgista do Galpão, redigiu três dos quatro "Diários" e
o ator e diretor Eduardo Moreira se encarregou das anotações relativas ao processo de criação de "A Rua da Amargura", espetáculo no qual também atuou.
Apesar das peculiaridades de estilo de cada um e de os diários se referirem a
encenações dirigidas por diretores diferentes -Gabriel Villela ("Romeu e Julieta" e "A Rua da Amargura"), Eduardo Moreira ("Um Molière Imaginário")
e Cacá Carvalho ("Partido")-, algumas constantes podem ser ressaltadas.
O Grupo Galpão já tinha dez anos de trabalho com espetáculos de rua e sala
fechada quando, no início de 1992, convidou o arquiteto Carlos Antônio Leite
Brandão para dar uma aula sobre Shakespeare e seu tempo, como parte da
pesquisa para a encenação de "Romeu e Julieta". O que deveria ter se restringido a uns poucos encontros transformou-se numa colaboração de longo prazo,
multiplicando-se as tarefas de Cacá: além da redação dos diários, que foi assumindo papel cada vez mais central (a presença do dramaturgista em praticamente todos os ensaios), a ele cabia realizar pesquisas em torno dos temas de
interesse para as montagens, adaptar as peças, redigindo os textos necessários
e fornecendo-lhes os referenciais teóricos pertinentes, além de organizar os
programas dos espetáculos. Também lhe foi entregue a tarefa de escrever o livro comemorativo dos 15 anos do Galpão, relato da trajetória do Grupo, que os
"Diários" vêm completar, enfocando o cotidiano da criação.
Se as tarefas que resultam na escrita ou na adaptação de textos demarcam de
forma mais visível a função do dramaturgista, é preciso lembrar, no entanto,
que a especificidade de seu trabalho ultrapassa esse âmbito, consistindo em
alimentar na equipe de criação do espetáculo o desejo pelo permanente ir e vir
entre a conceitualização da proposta do espetáculo e a expressão cênica do
sentido, sem instaurar hierarquia entre essas duas instâncias. Isso fica evidente
no fato de a redação dos diários não ter sido interrompida com o afastamento
temporário de Cacá Brandão, que não pôde participar do processo de criação
de "A Rua da Amargura". Eduardo Moreira assume então a função de se perguntar pelo sentido do trabalho, num momento particularmente doloroso para ele e para o grupo, pois tinham acabado de perder num acidente de automóvel a atriz Wanda Fernandes, criadora do papel de Julieta e mulher de Eduardo.
O enfoque fragmentário que o ator tem do trabalho, e que Eduardo sublinha,
não impede, no entanto, que o fio condutor de seu raciocínio seja a fricção entre conceito e realização cênica. E a própria escrita funciona como uma lente
que obriga Eduardo a procurar a distância ótima a partir da qual seja capaz de
abarcar o andamento da construção do espetáculo sem deslocar o foco de seu
próprio processo criativo.
Definindo-se prioritariamente como um grupo de atores, o Galpão já havia
passado, no início de seu percurso, por uma fase de direção coletiva, logo substituída pela prática de convidar encenadores para projetos específicos. No entanto, a marca de seu modo originário de trabalho permanece nos "workshops", por meio dos quais os atores mergulham nos temas que lhes interessa
desenvolver, e que fizeram parte do processo de criação de cada uma das quatro montagens em questão. Sob este prisma, os diários e a presença do dramaturgista (a partir de "Romeu e Julieta") parecem ser o registro e a sistematização de um caminho que o próprio grupo já havia estabelecido para si.
A decisão de Eduardo Moreira de dirigir "Um Molière Imaginário" foi a recondução da instância da autoria para o âmbito do grupo. É emblemático que
justamente nesse processo tenham se estreitado de modo tão produtivo os laços de colaboração entre diretor e dramaturgista. É que o trabalho de dramaturgia requer uma perspectiva de longo prazo e uma explicitação dos objetivos
do grupo -o que o Galpão estava, efetivamente, empreendendo naquele momento, sob a pressão criada pelo enorme sucesso dos dois espetáculos dirigidos por Gabriel Villela.
A construção de uma moldura que, ao mesmo tempo, coloca em perspectiva
a vida de Molière e a da trupe do Galpão é uma bela metáfora para a interação
entre o texto que se leva à cena (no caso, "O Doente Imaginário") e o trabalho
que sobre ele a equipe de criação deve realizar (e que resultou em "Um Molière
Imaginário"). Isso nos remete a outra das características do Grupo, patente
nos "Diários": a importância atribuída a todos os elementos da cena, que se
manifesta pelo desenvolvimento simultâneo de todos eles ao longo do período
de ensaios. Desde o início do processo, a equipe técnica está a postos para ir experimentando e reformulando suas propostas, apesar da dificuldade adicional
representada pelo fato de alguns profissionais não morarem em Belo Horizonte.
O material que o dramaturgista propõe como estímulo não funciona, portanto, só para o diretor ou só para os atores, mas para toda a equipe, que vai
acompanhando as diferentes etapas por que passa seu pensamento. A feliz
junção de idéias e autores aparentemente díspares, como, por exemplo, Shakespeare, Guimarães Rosa e circo-teatro, em "Romeu e Julieta", ou Molière,
Machado de Assis e Chagall, em "Um Molière Imaginário", ecoa sobre todos
os artífices da cena e é palpável no resultado de seu trabalho.
Os diários, que, de início, pareceram a Cacá algo inútil, pois ninguém os leu,
nem mesmo Gabriel Villela, o autor da sugestão, acabaram por revelar dimensões insuspeitadas: como registro minucioso do processo, permitiram que não
se perdesse a memória das angústias e da bem-aventurança da criação; como
catalisadores da reflexão cotidiana sobre o trabalho, mostraram que a realidade não é opaca nem unidimensional, mas rica do sentido que aí aprendemos a
colocar e a reconhecer; e, como romance de formação, permitem a nós, leitores
e gentes de teatro, reconhecer, nas lidas de uma trupe, dilemas éticos e a esperança de que é possível construir um mundo melhor. Ao menos no palco.
Fátima Saadi é tradutora e dramaturgista do Teatro do Pequeno Gesto, para o qual edita a revista
"Folhetim".
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