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São Paulo, sábado, 13 de setembro de 2003

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A escrita da cena

Grupo Galpão Diário de Montagem (Livros 1 a 4)
Carlos Antônio Leite Brandão e Eduardo da Luz Moreira
Ed. UFMG
(Tel. 0/xx/31/3499-4642)
118, 108, 124, 118 págs., R$ 50,00 ( 4 vol.)

FÁTIMA SAADI

Os quatro "Diários de Montagem" do Grupo Galpão, relativos ao processo de criação dos espetáculos "Romeu e Julieta", "A Rua da Amargura", "Um Molière Imaginário" e "Partido", devem ser lidos como um "Bildungsroman", como se lê, por exemplo, "A Missão Teatral de Wilhelm Meister", de Goethe. No entanto, à diferença do romance alemão, o foco não está na formação espiritual do protagonista por meio de seu contato com uma trupe itinerante que ele encontra por acaso num albergue. O que os quatro "Diários" nos revelam é a configuração da função do dramaturgista e o seu trabalho no âmbito do Grupo Galpão. Os textos são o mais importante testemunho até agora produzido no Brasil a respeito de uma atividade mais fácil de descrever do que de explicar, porque estabelece teias produtivas entre o pensamento e a criação teatrais.
Cacá Brandão, dramaturgista do Galpão, redigiu três dos quatro "Diários" e o ator e diretor Eduardo Moreira se encarregou das anotações relativas ao processo de criação de "A Rua da Amargura", espetáculo no qual também atuou. Apesar das peculiaridades de estilo de cada um e de os diários se referirem a encenações dirigidas por diretores diferentes -Gabriel Villela ("Romeu e Julieta" e "A Rua da Amargura"), Eduardo Moreira ("Um Molière Imaginário") e Cacá Carvalho ("Partido")-, algumas constantes podem ser ressaltadas.
O Grupo Galpão já tinha dez anos de trabalho com espetáculos de rua e sala fechada quando, no início de 1992, convidou o arquiteto Carlos Antônio Leite Brandão para dar uma aula sobre Shakespeare e seu tempo, como parte da pesquisa para a encenação de "Romeu e Julieta". O que deveria ter se restringido a uns poucos encontros transformou-se numa colaboração de longo prazo, multiplicando-se as tarefas de Cacá: além da redação dos diários, que foi assumindo papel cada vez mais central (a presença do dramaturgista em praticamente todos os ensaios), a ele cabia realizar pesquisas em torno dos temas de interesse para as montagens, adaptar as peças, redigindo os textos necessários e fornecendo-lhes os referenciais teóricos pertinentes, além de organizar os programas dos espetáculos. Também lhe foi entregue a tarefa de escrever o livro comemorativo dos 15 anos do Galpão, relato da trajetória do Grupo, que os "Diários" vêm completar, enfocando o cotidiano da criação.
Se as tarefas que resultam na escrita ou na adaptação de textos demarcam de forma mais visível a função do dramaturgista, é preciso lembrar, no entanto, que a especificidade de seu trabalho ultrapassa esse âmbito, consistindo em alimentar na equipe de criação do espetáculo o desejo pelo permanente ir e vir entre a conceitualização da proposta do espetáculo e a expressão cênica do sentido, sem instaurar hierarquia entre essas duas instâncias. Isso fica evidente no fato de a redação dos diários não ter sido interrompida com o afastamento temporário de Cacá Brandão, que não pôde participar do processo de criação de "A Rua da Amargura". Eduardo Moreira assume então a função de se perguntar pelo sentido do trabalho, num momento particularmente doloroso para ele e para o grupo, pois tinham acabado de perder num acidente de automóvel a atriz Wanda Fernandes, criadora do papel de Julieta e mulher de Eduardo.
O enfoque fragmentário que o ator tem do trabalho, e que Eduardo sublinha, não impede, no entanto, que o fio condutor de seu raciocínio seja a fricção entre conceito e realização cênica. E a própria escrita funciona como uma lente que obriga Eduardo a procurar a distância ótima a partir da qual seja capaz de abarcar o andamento da construção do espetáculo sem deslocar o foco de seu próprio processo criativo.
Definindo-se prioritariamente como um grupo de atores, o Galpão já havia passado, no início de seu percurso, por uma fase de direção coletiva, logo substituída pela prática de convidar encenadores para projetos específicos. No entanto, a marca de seu modo originário de trabalho permanece nos "workshops", por meio dos quais os atores mergulham nos temas que lhes interessa desenvolver, e que fizeram parte do processo de criação de cada uma das quatro montagens em questão. Sob este prisma, os diários e a presença do dramaturgista (a partir de "Romeu e Julieta") parecem ser o registro e a sistematização de um caminho que o próprio grupo já havia estabelecido para si.
A decisão de Eduardo Moreira de dirigir "Um Molière Imaginário" foi a recondução da instância da autoria para o âmbito do grupo. É emblemático que justamente nesse processo tenham se estreitado de modo tão produtivo os laços de colaboração entre diretor e dramaturgista. É que o trabalho de dramaturgia requer uma perspectiva de longo prazo e uma explicitação dos objetivos do grupo -o que o Galpão estava, efetivamente, empreendendo naquele momento, sob a pressão criada pelo enorme sucesso dos dois espetáculos dirigidos por Gabriel Villela.
A construção de uma moldura que, ao mesmo tempo, coloca em perspectiva a vida de Molière e a da trupe do Galpão é uma bela metáfora para a interação entre o texto que se leva à cena (no caso, "O Doente Imaginário") e o trabalho que sobre ele a equipe de criação deve realizar (e que resultou em "Um Molière Imaginário"). Isso nos remete a outra das características do Grupo, patente nos "Diários": a importância atribuída a todos os elementos da cena, que se manifesta pelo desenvolvimento simultâneo de todos eles ao longo do período de ensaios. Desde o início do processo, a equipe técnica está a postos para ir experimentando e reformulando suas propostas, apesar da dificuldade adicional representada pelo fato de alguns profissionais não morarem em Belo Horizonte.
O material que o dramaturgista propõe como estímulo não funciona, portanto, só para o diretor ou só para os atores, mas para toda a equipe, que vai acompanhando as diferentes etapas por que passa seu pensamento. A feliz junção de idéias e autores aparentemente díspares, como, por exemplo, Shakespeare, Guimarães Rosa e circo-teatro, em "Romeu e Julieta", ou Molière, Machado de Assis e Chagall, em "Um Molière Imaginário", ecoa sobre todos os artífices da cena e é palpável no resultado de seu trabalho.
Os diários, que, de início, pareceram a Cacá algo inútil, pois ninguém os leu, nem mesmo Gabriel Villela, o autor da sugestão, acabaram por revelar dimensões insuspeitadas: como registro minucioso do processo, permitiram que não se perdesse a memória das angústias e da bem-aventurança da criação; como catalisadores da reflexão cotidiana sobre o trabalho, mostraram que a realidade não é opaca nem unidimensional, mas rica do sentido que aí aprendemos a colocar e a reconhecer; e, como romance de formação, permitem a nós, leitores e gentes de teatro, reconhecer, nas lidas de uma trupe, dilemas éticos e a esperança de que é possível construir um mundo melhor. Ao menos no palco.


Fátima Saadi é tradutora e dramaturgista do Teatro do Pequeno Gesto, para o qual edita a revista "Folhetim".


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