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Considerações sobre o Divino
Um dos maiores craques de todos os tempos
Divino - A Vida e a Arte
de Ademir da Guia
Cleber Mazziero de Souza
Gryphus (Tel. 0/xx/11/3104-6485)
218 págs., R$ 29,00
NUNO RAMOS
Para Clóvis Cunha, Samuel de Abreu Pessoa e Antonio Mammì
Entre os jogadores brasileiros excepcionais, talvez nenhum tenha construído
um destino tão estranho quanto Ademir
da Guia. Desde sua figura quase albina,
como que saída do negativo de um filme,
flutuando sem peso pelo campo, passando pela estranha desritmia de seu jogo e
chegando ao tom demasiado sereno, demasiado maduro de suas declarações, tudo nele parece compor uma figura solitária e invertida, o reverso da potência, do
aqui e do agora próprios de seu meio, de
sua época e de seu ofício.
Aquele de repente de uma corrente pra
frente, aqueles 90 milhões em ação parecem congelar sob o seu olhar distante.
Ademir representou, ainda no auge da
grandeza do nosso futebol, um intervalo
estranho, interrogativo, algo geológico,
um deslocamento em relação a nossas
certezas e costumes. Neste momento
confuso e sem cara do nosso futebol, é a
essa espécie de linhagem evolutiva interrompida, ao mesmo tempo síntese e produto exilado de nosso jogo, que o livro "A
Vida e a Arte de Ademir da Guia", construído basicamente a partir de longos testemunhos, tanto de Ademir quanto dos
que o cercavam, agora nos dá acesso.
Difícil, antes de mais nada, nomeá-lo, e
o epíteto Divino, que sempre o acompanhou, talvez seja resultado antes do pasmo e da dificuldade de caracterização do
que da hipérbole. Sem ser um chutador
excepcional, como Rivelino, nem um lançador fora-de-série, como Gérson, nem
um cabeceador como Leivinha, nem um
roubador de bolas, como Dudu, era um
pouco tudo isto, sim, um jogador completo, mas também, de alguma forma, algo mais intenso do que isso.
Feitio único
O que impressionava em Ademir era o
modo próprio como fazia as coisas, um
feitio estranho e sem precedentes que
passaria por modesto se não fosse absolutamente único (entre os jogadores em
atividade, talvez Zidane seja o que mais se
assemelhe a ele ). Pois havia em sua enorme eficácia uma, como dizer, resistência
ao ato, que parecia camuflar-se em seus
efeitos. Percebia-se sua presença como
uma sombra imóvel espalhando-se por
todo o campo, sem que valesse a pena depois singularizá-la em jogadas. A duração
era sua matéria e seu alimento, e evitava
rompê-la com gestos e rompantes. Distribuía seu jogo numa monotonia tensa,
subterrânea, para além da urgência do
placar (segundo Dudu, jogava sempre
igual, qualquer que fosse ele), desconfiada dos grandes esforços, em contato com
uma matéria mais complexa e supra-individual: o tempo. Pois é da aceitação do
tempo, de uma estranha comunhão com
ele, que Ademir tirava sua força. É o tempo o "líquido se infiltrando/ no adversário, grosso, de dentro/ impondo-lhe o
que ele deseja/ mandando nele, apodrecendo-o" do poema de João Cabral, dedicado a ele.
Se de tantos jogadores é comum dizer
que "criam espaço", de Ademir seria preciso dizer que criava tempo. Criar não no
sentido de adicionar, mas de fazer durar,
esticando-o. Uma de suas jogadas mais
lembradas é um passe perfeito, com o pé
debaixo da bola, como uma colher, fazendo-a subir sem atrito, quase sem chute, sobre a zaga, até o atacante -um passe lento, eficaz, surpreendente, mas que
pareceria longo demais para dar certo.
Também seu corpo não parecia exatamente mover-se, mas flutuar, apegado à
inércia e à posição anterior (seu próprio
batimento cardíaco era incrivelmente
baixo). A aceleração era o elemento verdadeiramente excluído de seu futebol,
vindo daí talvez a falsa impressão de lentidão -na verdade, Ademir agia como a
tartaruga do paradoxo de Zenão: confiante de estar sempre à frente do velocista, independentemente dos esforços dele,
seguia seu ritmo com segurança.
Se Pelé desenhava seus gestos, dribles e
jogadas com uma precisão de cinema
mudo (basta lembrar, por exemplo, a cabeçada antológica contra Banks, em 70, a
famosa paradinha na hora do pênalti, o
soco no ar na comemoração dos gols ou o
chapéu contra a França, em 58), Ademir
parecia apagá-los minuciosamente na
duração e no contínuo, disfarçando o excepcional no que parecia comum e anônimo.
Daí que seja, talvez, um pouco difícil
lembrar dele. Ademir fez parte daquelas
duas gerações que, além de ganhar três
Copas, assistiram à passagem da narração do jogo pelo rádio à transmissão televisiva, gerações híbridas entre o tempo
mítico do relato oral (ao qual pertence exclusivamente o talento de um Leônidas
da Silva ou mesmo do pai de Ademir, Domingos da Guia) e o realismo algo desencantado, imagético, da televisão, que teve
seu início em 56, mas se firmou definitivamente a partir 70.
Acho que mais do que o estilo de jogo, o
número de faltas ou o preparo físico, o
que realmente mudou no futebol foi a
forma de registrá-lo. O próprio da transmissão radiofônica é a hipérbole, a maximização da emoção por meio dos achados de cada locutor (me lembro bem de
assistir aos domingos, ainda pequeno,
com o coração aos trancos, aos jogos do
Santos pelo rádio e depois revê-los na TV
Cultura, a partir das 22:00 horas, espantado com a lentidão e a pasmaceira do jogo); é a aceleração até o paroxismo no ritmo das palavras, criando uma suspensão
insuportável que o longo e monocórdico
grito de gol, comum a todos os locutores,
tem a função de aliviar. Mas como narrar
Ademir, se tudo nele é constância e metrônomo? Como hiperbolizar sua presença transparente, tão difícil de detalhar, segura e determinada como o movimento
de uma maré?
Se, de um lado, seria difícil imaginar
Nelson Rodrigues (que quase não enxergava, mas nunca tirava o ouvido do rádio), o maior e mais exagerado cronista
da era do rádio, escrevendo longamente
sobre Ademir, a televisão, por outro, parece demasiado focada para compreender seu futebol, isolando e fetichizando
com closes e repetições cada falta, gol ou
jogada, independentemente do todo do
jogo, onde Ademir parecia sempre estar
(além do que, poucas coisas seriam mais
tautológicas do que repetir uma jogada
de Ademir em câmera lenta). Espremido
assim entre as duas eras -e talvez seja
esta a base do mito Pelé: ter grandeza suficiente para pertencer a ambas-, Ademir no fundo não se identificava com nenhuma. Seu tempo, mais uma vez, era
longo demais para as urgências do presente.
Daí que tenha sido acompanhado, em
toda a sua carreira, pelo insucesso na seleção brasileira. Essa curiosa discrepância
entre a unanimidade no time e a discórdia na seleção (eram duas as acusações:
lentidão e ausência de lançamentos longos) diz muito sobre Ademir e, também,
sobre um aspecto que se alterou completamente em nosso futebol em dias ainda
muito recentes: a história e o ritmo de
formação dos clubes.
Sim, porque até a geração de Zico (até o
final dos anos 80), se assistia à longa maturação de um time, num ritmo de vegetal crescendo.
As duas academias
Raramente acertava-se do dia para a
noite. Ademir, por exemplo, foi o eixo
das duas academias palmeirenses, uma
em meados da década de 60 e outra no
início dos anos 70, que demoraram alguns anos para firmar-se. A cor e o sabor
de cada time imprimia-se a seus jogadores, que tinham dificuldade em livrar-se
disso. A seleção, ao contrário, parecia
dar-se na fagulha e no instante. O improviso, ali, era reiterado e necessário. Adaptar-se à seleção era, justamente, adaptar-se a esta urgência -basta lembrar que
Garrincha e Pelé entraram no decorrer da
Copa de 58, ou que Tostão e Pelé só foram
jogar juntos nas eliminatórias da Copa de
70. Ora, entre a épica da seleção e o enraizamento profundo, menos heróico e
mais anônimo, dos clubes, Ademir com
certeza pertencia aos clubes.
Além disso, era sempre o dono do seu
time. Seu desempenho fundamentava-se
numa generalidade, o ritmo do jogo, que
dificilmente poderia ser compartilhada.
Por isto, olhando retrospectivamente, é
aceitável não vê-lo na seleção de 70, formada quase toda por jogadores absolutamente centrados, que acabaram formando um time com diversos eixos de regência -mas parece irritante sua exclusão
em 74. Pois escolher Rivelino, esse talento
tão enorme quanto volúvel, que fracassou na tarefa de levar o Corinthians a um
único título, para essa função, deixando
Ademir de fora, é resultado de um duplo
erro de avaliação. A substituição de Ademir no segundo tempo contra a Polônia,
em seu único jogo numa Copa do Mundo
(naquele momento, eu me lembro, era o
melhor em campo), parece apenas coroar a condição de algum modo estrangeira que o acompanhou por toda a vida.
O auge do futebol brasileiro (e talvez do
próprio esporte) parece ter-se dado entre
o final da década de 50 e meados da de 70.
Sua principal característica foi provavelmente o fantástico volume de jogo, que
caracterizava o comportamento tanto de
nossa seleção quanto de nossos times
(além, é claro, de nossa extrema facilidade para marcar gols). Raramente jogávamos no contra-ataque; visávamos sempre a posse da bola, que fazíamos durar;
impúnhamos com naturalidade nosso
ritmo ao adversário. Ademir, durante todo esse período (começou no início dos
anos 60) partilhou a ambígua condição
de ser um dos frutos mais refinados dessa
característica genérica (afinal, era o mandatário do ritmo do jogo, cujo compasso,
um pouco como o canto de João Gilberto,
alongava ou comprimia) e seu filho renegado.
Hoje, parece que tudo o que perdemos
-nossa cadência, a capacidade de reter a
bola, nossa estranha e ambígua lerdeza-
estava desde sempre em Ademir, guardado e sublimado. Mas não seria sua relativa inadequação a uma época de tantas
glórias uma espécie de fundo de garantia,
para além de tudo o que conquistamos e
gastamos? E não seria essa reserva um
sentido possível para o divino?
Nuno Ramos é artista plástico.
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