São Paulo, Sábado, 13 de Novembro de 1999
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A fera pensante

ELIANE ROBERT MORAES

A distinção entre "ars erotica" e "scientia sexualis", que Michel Foucault aponta como os dois grandes procedimentos de produção do saber sobre o sexo, torna-se inoperante quando o objeto em questão é a obra de Sade. O erotismo literário do Marquês funda uma terceira categoria de conhecimento que exige uma definição à altura de sua imaginação filosófica. Entre os intérpretes que se lançaram a tal tarefa, Octavio Paz talvez tenha sido o que melhor soube conceituar a singularidade do pensamento sadiano, definindo-o como "fantasia raciocinante".
A expressão não se esgota no achado semântico: ao definir a obra de Sade nesses termos, realçando seu "imenso trabalho especulativo", Paz esclarece as razões de um homem de letras que insistia em se apresentar como filósofo da libertinagem. Trata-se, portanto, de um tema central para o entendimento do projeto sadiano. Ainda que a literatura filosófica tenha sido um gênero praticado por diversos pensadores do século 18, a opção do criador de "Justine" coloca problemas particulares na medida em que a ficção foi sua forma privilegiada de expressão.
Publicado em 1961, o ensaio "Um Mais Além Erótico" participa do grande interesse que Sade suscitou no pensamento europeu a partir do pós-guerra. Paz -que vivera em Paris entre 1945 e 1951- testemunhou de perto a inquietação de uma geração de intelectuais franceses que, abalada com as atrocidades da Segunda Guerra, se via compelida a repensar as bases de um humanismo que a realidade havia colocado em cheque. A filosofia radicalmente anti-humanista do Marquês representava então uma possibilidade de aprofundar a reflexão no sentido de investigar as representações do mal que, expurgadas da cena simbólica, haviam retornado com força assassina na cena histórica.
Por certo, a amizade com Breton, Péret e Bataille contribuiu para que Paz também voltasse sua atenção para um autor que ousara, como nenhum outro, manipular tais representações na tentativa de esclarecer seus fundamentos. Tendo conhecido os livros de Sade por meio dos surrealistas, o escritor mexicano consagrou a ele o poema "O Prisioneiro", cujo tom apologético deixa claras suas afinidades com um grupo que dedicava verdadeiro culto ao "divino marquês". Mas, entre o poema de 1946, que abre esta coletânea, e o longo ensaio de 1961, percebe-se uma significativa mudança: neste, Paz assume um olhar mais atento para as insuportáveis "verdades" enunciadas na obra sadiana, buscando compreender esse "algo mais que ela encerra para além da história, do sexo, da vida e da morte".
Mesmo se considerarmos a extensão e a qualidade da fortuna crítica do Marquês nas últimas três décadas, algumas vertentes exploradas no ensaio ainda mantêm um notável poder de esclarecimento. Entre elas está a idéia de que o sistema libertino "se apresenta como uma pluralidade hostil a toda unidade", o que faz da particularidade seu princípio fundamental. Idéia arriscada, sobretudo por contestar uma série de interpretações, ainda muito em voga nos anos 60, que teimavam em apontar um viés político e ideológico no pensamento do autor de "A Filosofia na Alcova".


Um Mais Além Erótico: Sade
Octavio Paz Tradução: Wladir Dupont Mandarim (Tel. 0/xx/11/839-5500) 128 págs., R$ 15,00



Para fundamentar seu argumento, o ensaísta parte da hipótese de que "o erotismo é o reino da singularidade irrepetível: escapa continuamente à razão e constitui um domínio oscilante, regido pela exceção e pelo capricho". Daí a constatação de que a obra de Sade traduz "a exceção levada ao extremo": nela, "não há espécies, família, gênero, nem, mesmo por acaso, indivíduos (pois o homem muda e seu desejo de hoje nega o de ontem)". Daí também a conclusão de que o propósito sadiano de conhecer o conjunto das paixões sexuais resulta necessariamente numa tarefa infinita. Ora, pondera Paz, se um projeto desse porte tende a se degenerar numa confusão ininteligível que impede o reconhecimento das particularidades, o grande mérito do Marquês foi o de ter resistido à vertigem.
A tese de Paz nos permite deduzir que a opção de Sade pela literatura foi decorrência lógica de sua enorme paciência e de seu obstinado rigor na realização de tal tarefa. Ao deslocar a reflexão filosófica para a alcova libertina, o Marquês foi obrigado a levar em consideração as diferenças, por ínfimas que fossem, entre cada um dos "caprichos da natureza" que fazem parte de seu interminável catálogo. Com isso, ele se viu obrigado igualmente a exceder os limites da filosofia, na certeza de que só a literatura permitiria seu ingresso no domínio ilimitado da imaginação erótica.
A idéia de "fantasia raciocinante" não se justifica, contudo, apenas pelo caráter singular da experiência erótica -é o que sugere Paz num depoimento de 1986, incluído no conjunto de textos que fecha o livro. Passado um quarto de século desde a publicação do primeiro ensaio, o escritor mexicano se distancia ainda mais de suas proposições iniciais, voltando um olhar bem menos benevolente a esse "incômodo interlocutor". Sua visada concentra-se então em outro princípio do sistema libertino, precisamente aquele que traduz "um mais além erótico": a negação universal. Ou, numa só palavra: o Mal.
Ao investigar a exigência de negação que orienta a ficção do Marquês, o autor de "Os Filhos do Barro" mostra uma vez mais o grande pensador que foi. Sem lançar mão de teorias que, a exemplo da psicanálise, reduzem o saber literário a modelos genéricos, o ensaísta parte da obsessão de Sade pelo particular para compreender a convergência entre a fantasia sexual e a crueldade. Atento ao imperativo da diferença na obra sadiana, Paz conclui que o mal só é pensável a partir da mesma lógica da heterogeneidade que governa o domínio do erotismo: "O Mal não postula um princípio único, mas uma dispersão. O Mal não passa disso, miríades de exceções".
Foi preciso aparecer um autor com a ousadia de Sade para reunir definitivamente esses dois continentes cujo único fundamento é a exceção. Ao aceitar o risco de associar a fantasia literária ao raciocínio filosófico, o marquês ficou livre para criar uma "fera pensante", comprometida com a infinita tarefa de dar palavra às particularidades inconfessáveis do homem. Mas foi preciso também que um autor do porte de Octavio Paz reconhecesse a aventura singular desse libertino para descobrir, no corpo da língua, a origem de sua paixão pelo mal: "Dissoluto: amante da morte".


Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade Católica (SP) e autora, entre outros livros, de "Sade - A Felicidade Libertina" (Imago).

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