São Paulo, Sábado, 13 de Novembro de 1999
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Dois estudos recentes sobre Mário de Andrade analisam o prosador-crítico e o crítico-artista
Entre França e Alemanha

SILVIANO SANTIAGO

Duas admiráveis teses de doutorado sobre a obra e o pensamento de Mário Andrade, que tiveram o privilégio do livro. Trata-se de "A Pedra Mágica do Discurso" (em segunda edição, acrescida de três ensaios curtos), da mineira Eneida Maria de Souza, e "Expressão Plástica e Consciência Nacional na Crítica de Mário de Andrade", do gaúcho José Augusto Avancini. Os livros estudam e analisam, respectivamente, o prosador-crítico de "Macunaíma" e o crítico-artista de "Aspectos das Artes Plásticas no Brasil".
São livros "complementares". Esclareço o adjetivo. São complementares não tanto porque o objeto de um difere do outro e ambos os objetos se referem ao mesmo autor. (Para dar continuidade ao raciocínio, tenho de me valer de um conceito de Freud que acabou por se tornar tipicamente andradino: o de "sequestro", que traduz, como nos ensinou Telê Porto Ancona Lopez, o francês "refoulement".) São complementares porque cada livro, à sua maneira, sequestra (recalca) o que no outro é exibido em toda plenitude. A originalidade radical de cada um dos livros vem do modo peculiar como, na leitura do texto andradino, sequestram uma faceta capital do autor.

Cosmopolita e nacionalista
Eneida Maria de Souza teve sua tese orientada por Julia Kristeva, parisiense de origem búlgara, e se vale -para interpretar as frases feitas, adivinhas, jogos de palavras etc., apropriados pelo prosador paulista para compor a sua rapsódia- de conceitos estruturalistas (como o de "rito", tomado a Lévi-Strauss) e pós-estruturalistas (como o de "intertextualidade", ora tomado à própria Kristeva, ora a Derrida, ora a Bakhtine). Mediante esse suplemento crítico-interpretativo, Eneida distanciou-se do que teria sido mais uma leitura imanente de "Macunaíma". Trocado em miúdos, Eneida é sensível ao Mário cosmopolita e francófilo, ao contumaz leitor da revista "L'Esprit Nouveau".
Sucessivas vezes, José Augusto Avancini deixa claro que a sua opção é pelo Mário que se aproxima da cultura alemã. Daquele que escreveu: "Não me parece que haja no mundo atualmente alguém que precise mais que o brasileiro duma base física bem germânica para o espírito". No primeiro quartel deste século, Mário começa a estudar aquela cultura européia, transformando-a em referência e baliza, a fim de ressaltar o incontestável valor artístico do escultor e "arquiteto" Aleijadinho.
Avancini segue escrupulosamente o percurso de Mário pelo barroco nordestino, mineiro e paulista, reencontrando ali "a grande tradição interrompida por um século de supremacia acadêmica francesa, que teria estiolado mais a vontade nacional e rompido, o que era mais grave, o contato com a cultura popular". Avancini cola-se ao texto e ao gosto do crítico paulista, apresentando por isso mesmo uma visão propriamente modernista de Mário. Trocado em miúdos, Avancini é sensível ao Mário "nacionalista pragmático" e germanófilo, ao cultor do expressionismo nas artes plásticas.
Do lado de Eneida, propõe-se uma interpretação suplementar da obra de Mário. Do lado de Avancini, acata-se o resgate de uma autêntica cultura nacional. Cara e coroa (e vice-versa) da preciosa moeda Mário de Andrade. Eneida prioriza os ensinamentos da teoria literária na sua abordagem; ela lê "Macunaíma" por detrás dos ombros do autor. Avancini confina-se aos valores estéticos e sociais estabelecidos pelo crítico de arte; ele lê Mário como se fosse um "voyeur" enjaulado. Não vem ao caso a questão da fidelidade. Cada um o é, complementarmente.

Leituras canônicas
Se, nas referências a sistemas críticos internacionais, a mineira e o gaúcho diferem, se reencontram no entanto na vontade de repensar as leituras canônicas de Mário de Andrade. Eneida parte de -e extrapola- o extraordinário "Roteiro de Macunaíma", de Cavalcanti Proença, e a pioneira análise proppiana feita por Haroldo de Campos em "Morfologia de Macunaíma". Avancini parte de -e enriquece- as magníficas contribuições de Gilda de Mello e Souza ("Vanguarda e Nacionalismo na Década de 20"), Annateresa Fabris ("Mário de Andrade e o Aleijadinho") e Alfredo Bosi ("Moderno e Modernista na Literatura Brasileira").
Bem informado pelos métodos filológicos e estilísticos germânicos e espanhóis, então em vigência na década de 50 no Brasil, Cavalcanti Proença foi responsável por um trabalho pioneiro, e hoje clássico. "Roteiro de Macunaíma" detectava, de maneira sistemática, erudita e arguta, os "empréstimos" (que Eneida vai tratar como "práticas intertextuais") tomados por Mário a inúmeras obras, salientando a originalidade da composição textual modernista.
Eneida afirma que não pretende se deter apenas "na comprovação dos empréstimos". Tentará "estabelecer o diálogo intertextual que aí se produz". Se a perspectiva metodológica influi no resultado alcançado pelos críticos, existe no entanto em ambos o mesmo gosto pelas exegeses minuciosas e rentáveis de passagens curtas do texto andradino.
A delimitação da pesquisa de Eneida ao campo da intertextualidade, obrigou-a a revelar o papel que "roubos" têm na composição de "Macunaíma", alertando-nos para os processos retóricos de que se vale a máquina textual. Daquele conceito se serve para discutir o intrincado problema da originalidade de uma obra cujo destino de "plagiária" tinha sido traçado por Raimundo Moraes, desde a publicação do seu "Dicionário de Cousas da Amazônia" (1931).
Na carta que a ele escreve, Mário diz: "Eu copiei o Brasil, ao menos naquela parte em que me interessava satirizar o Brasil, por meio dele mesmo", e conclui: "Meu nome está na capa do "Macunaíma" e ninguém o pode tirar". Por seu turno, Eneida reafirma que a escrita "inscreve-se sob a marca perversa e inocente do roubo e se despe de todas as insígnias de propriedade".


A Pedra Mágica do Discurso
Eneida Maria de Souza Ed. UFMG (Tel. 0/xx/31/499-4650) 233 págs., R$ 25,00

Expressão Plástica e Consciência Nacional na Crítica de Mário de Andrade
José Augusto Avancini Ed. da Universidade do Rio Grande do Sul (URGS) (Tel. 0/xx/51/224-8821) 221 págs., R$15,00




Uma leitura descentrada
Para que a composição lúdica de "Macunaíma" fosse surpreendida intra e extratextualmente, foi preciso que Eneida recusasse, primeiro, a forma dicionarizada escolhida por Cavalcanti Proença e, em seguida, rejeitasse os pressupostos da leitura unívoca estabelecidos por Propp e operacionalizados por Haroldo de Campos. A leitura morfológica tinha cegado o poeta concreto para a articulação do capítulo 9, "Carta pras Icamiabas". Para ele, tratava-se de "um capítulo autônomo dentro do livro e ornamental".
Ao abandonar a leitura morfológica e adentrar-se pelos labirintos de uma leitura descentrada, Eneida coloca como "referência" não mais o combate entre o herói e o gigante Piaimã, mas o pacto e o desentendimento entre Macunaíma e Vei, a Sol. A principal qualidade do nosso herói -a astúcia- é um "indecidível". Tanto o leva à vitória sobre o gigante, quanto o conduz à safadeza, como no momento em que acredita poder quebrar a palavra dada a Vei e sair-se duplamente vitorioso. Vei pontua com a sua palavra o texto: "Pois se você (Macunaíma) tivesse me obedecido casava com uma das minhas filhas e havia de ser sempre moço e bonito. Agora você fica pouco tempo moço tal-qualmente os outros homens...". Macunaíma tenta reagir: "Si eu soubesse...". Interfere uma vez mais Vei: "O "si eu soubesse" é santo que nunca valeu pra ninguém, meus cuidados! Você é que é é muito safadinho, isso sim!".
Na composição da rapsódia é esse jogo entre significados dentro do mesmo significante que articula de forma não-linear o que se acreditou ser "dois movimentos sucessivos" do texto andradino. A astúcia de Macunaíma estava sendo dada como equivalente à "metis" dos gregos (ver Detienne-Vernant, "Mythes et Pensée Chez les Grecs"). A astúcia é a arma do fraco contra o forte e é o apego indiscriminado às facilidades do presente e a incapacidade de medir as consequências futuras de um ato. O herói é herói e é "sujo" e é mortal.

Pensamento em lascas
Se Eneida trabalha com a tradição crítica brasileira pelo modo da ruptura, José Augusto Avancini a trabalha pelo modo do enriquecimento. Uma desconstrói, o outro acumula. Não há descaminhos maiores entre as propostas metodológicas e analíticas de Avancini e as dos seus ilustres predecessores, já citados, a que se somam Lourival Gomes Machado, Leon Kossovitch e João Luís Lafetá. Não fosse ele um doutorando da Universidade de São Paulo e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros. Há na sua tese, isso sim, uma tentativa de açambarcar as potencialidades do objeto de pesquisa, trazendo para a discussão um amálgama infinito de textos de crítica de arte, assinados por Mário de Andrade. Ele vai tentar, inspirando-se em Gilda de Mello e Souza, "ordenar o pensamento em lascas de Mário de Andrade sobre arte".
Nesse sentido, destacam-se no livro, pela originalidade e acerto da leitura e pela minúcia de detalhes, dois conjuntos de textos andradinos, cada um organizado em torno de uma reflexão maior. O primeiro conjunto de textos é estudado no terceiro capítulo e se situa em torno dos quatro artigos sobre "A Arte Religiosa no Brasil", que escreveu em 1920 para a "Revista do Brasil", e ainda não recolhidos em livro. A exegese desses artigos do jovem Mário serve a Avancini para solidificar o trabalho dos críticos que têm chamado a atenção "para a associação que Mário fez entre o barroco e o expressionismo (germânico) e deste com o nacionalismo como maneira que encontrou para formar uma base teórica explicativa da cultura brasileira que, segundo nosso crítico, não se encaixava nos moldes clássicos latino-mediterrâneos".
O segundo conjunto é estudado no segundo capítulo e gira em torno do "Curso de Filosofia e História da Arte", ministrado em 1938 na Universidade do Distrito Federal. Os principais temas deste conjunto foram, num primeiro momento: "Que é a arte, a criação artística, a obra de arte e em que esta implica o artefazer (amor ao artesanato), o papel do artista na sociedade, sua formação geral e seu preparo técnico, que leva Mário a discutir a questão da técnica". E num segundo momento: "A discussão dos conceitos de Sentimento crítico e Expressão estética, complementados pelo conceito de Inacabado".
Talvez pudessem ser melhor trabalhadas algumas excelentes sugestões que estão no livro de Avancini. Destaco uma delas. No momento em que fala que a crítica de arte de Mário teve "como modelos Aleijadinho, Portinari e Lasar Segall", acrescenta logo depois: "Talvez essa escolha de Mário marque claramente os limites do seu conhecimento artístico, que eram profundos em música, mas algo deficientes nas artes visuais, tanto por formação quanto por opção".
Se somamos Clovis Graciano a Portinari, se a eles somamos o fato de que a germanofilia artística servia como antídoto para a supremacia acadêmica francesa no Brasil, e se, finalmente, a esses dois dados somamos ainda o fato de a tese ter sido orientada por Otília Arantes, não seria o caso de lamentar a ausência, como contraponto, da figura e das idéias de Mário Pedrosa, o autor de "Da Missão Francesa: Seus Obstáculos Políticos"? Não teria sido interessante estabelecer paralelos entre o Aleijadinho e a Missão Francesa, os dois "começos" para a modernidade artística brasileira, segundo um e o outro Mário? Não seria o caso de deixar dialogar o ausente Pedrosa com o presente Lasar Segall ? Não teria sido útil deixar esses dois antiimperialistas convictos, mas tementes do nacionalismo, dialogarem com os "nacionalistas pragmáticos" de que Mário é o melhor teórico e representante? Ficam perguntas e mais uma sugestão.


Silviano Santiago é escritor e crítico literário, autor, entre outros livros, do romance "De Cócoras" (Rocco) e do livro de ensaios "Uma Literatura nos Trópicos" (a segunda edição será publicada em breve).


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