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VOZES DISSONANTES
A correspondência de três figuras do modernismo
TEXTO LAURA DE MELLO E SOUZA
O companheiro de uma senhora de meia idade -21
anos os separavam- se apaixona pela jovem filha de
uma prima-irmã dela. A família se escandaliza, muita
intriga se tece, os amigos se calam, o casal antigo se desfaz e o novo se casa.
Cinqüenta anos depois, a filha do homem, então já
morto, e da jovem, que agora é uma senhora de idade,
resolve, não sem muita hesitação, publicar as cartas
que, num curto espaço de tempo -entre 1950 e 1952-,
a senhora sexagenária e a moça de 20 e poucos anos enviaram ao amor comum, escritor e jornalista conhecido
na São Paulo da época.
As cartas ficaram todo esse tempo guardadas: primeiro, numa gaveta, que a filha, então menina de 8 anos,
abria de quando em quando e lia a prestação, sem entender direito quem eram aquelas pessoas e o que elas
tinham a ver com a sua própria vida; depois, com as coisas da filha, já herdeira do acervo do pai, que doou a arquivos e instituições culturais sem ter coragem, contudo, de nele incluir aquelas poucas cartas, íntimas demais. Ainda menina, chegou a ficar indecisa sobre qual
das duas protagonistas seria sua mãe verdadeira.
Um dia o pai contou o que ela já descobrira -que tivera outra mulher antes da
mãe-, mas nunca nenhum dos dois
chegou a falar das cartas. As do pai haviam sido destruídas, e as escritas pelas
duas mulheres devem ter, originalmente,
sido em número maior do que as que
agora se publicam em "Aí Vai Meu Coração": pelo menos as da jovem, pois, ao final de cada carta, pedia que o amado lhe
desse um fim ("rasgue logo a carta";
"não se esqueça de rasgar esta; você já
rasgou as outras?").
Nas várias acepções da palavra, as três
personagens dessa história de novela
não eram comuns. A velha senhora era
Tarsila do Amaral, que em 1950 -quando começam as cartas- achava-se envolvida na montagem da exposição organizada por Lourival Gomes Machado
e que a consagrou como uma das grandes expressões da pintura brasileira de
todos os tempos. O homem era Luís
Martins, responsável por uma coluna
muito lida de "O Estado de S. Paulo" e
membro dos círculos intelectuais mais
sofisticados da cidade. A jovem, Ana Maria Coelho de Freitas, era uma viúva da
alta burguesia paulista, que depois viria,
por sua vez, a ser escritora.
O cenário também era incomum: a família das duas primas, Tarsila e Ana Maria, era das mais tradicionais e aristocráticas de São Paulo, e o antepassado de
ambas -avô da mais velha, bisavô da
mais moça- era um legendário José Estanislau do Amaral, chamado de "o milionário" na "Genealogia Paulista", de
Silva Leme, "grande cafeicultor e senhor
de escravos" que "colecionava fazendas
como outros colecionam livros, objetos
de arte ou caixas de fósforos".
Com base nas cartas, entrevê-se como
as elites paulistas arruinadas pela crise
do café ainda conservavam traços da doce vida e como ainda era estreito o laço
entre a aristocracia do dinheiro ou nascimento e a do espírito. Tanto Tarsila
quanto sua prima Lúcia, mãe de Ana
Maria, eram proprietárias de fazendas
no interior paulista -restos do esplendor passado, decadentes, hipotecadas,
mas podendo chegar aos 900 alqueires.
Nelas passavam férias, recebiam amigos,
tomavam banho de piscina, visitavam-se
de trole e promoviam cavalgadas para os
convidados.
Por "Santa Teresa do Alto", a fazenda
de Tarsila, passaram, sós ou com as famílias, Carlos Lacerda, Bruno Giorgi, Sérgio
Milliet, Paulo Mendes de Almeida, Flávio
de Carvalho, Arnaldo Pedroso d'Horta,
Noêmia Mourão e Di Cavalcanti, que ali
pintou algumas de suas boas telas, como
"Nascimento de Vênus" e "Ciganos".
As cartas correspondem a três blocos:
1) cartas escritas por Tarsila entre o fim
de 1950 e o início de 1951, quando Luís
Martins viajava pela Europa e ela intuía
que o romance terminava; 2) cartas escritas por Tarsila e por Ana Maria a Luís
Martins no início de 1952, quando o romance da última com o companheiro da
prima já estava adiantado e haviam decidido se casar secretamente; 3) cartas de
Ana Maria durante o segundo semestre
de 1952, quando o plano do casamento
secreto fracassara por responsabilidade
sua e ela ensaiava uma reaproximação.
A linguagem dominante na correspondência é muito simples, e os sentimentos
em turbilhão são expostos de forma comedida, ao menos para a sensibilidade
de hoje, afeita a expressões mais exacerbadas. As de Luís, que desapareceram,
talvez tivessem teor diferente, e a filha reconhece que, no caso, o silêncio a que se
viu condenado o pai acabou sendo melhor: "Meu pai passou por vários momentos de desespero ao longo daqueles
dois anos. Primeiro, consumido pela culpa e por não saber como terminar seu relacionamento com Tarsila -ocasião em
que chegou a cogitar suicídio; depois, pelas acusações que a família de minha mãe
lhe fez. E pessoas desesperadas tendem a
escrever coisas constrangedoras demais
para ser publicadas".
TESTEMUNHOS DE ÉPOCA
A história toda revela, por um lado, a mesquinhez, o moralismo e o preconceito burgueses e, por outro, a retidão excepcional
dos três protagonistas. Havia elementos
de sobra para um folhetim barato ou um
desfecho trágico, mas ele foi surpreendentemente normal: a família ultrajada
pelo escândalo -os "Amarais", que se
fecharam em bloco tanto contra a jovem
transgressora quanto contra Tarsila, que
pelo comportamento pouco convencional já havia sofrido o suficiente em suas
garras- em parte se reconciliou e conviveu de modo pacífico até que a morte separou a maior parte dela.
Minha formação impede que eu opine
sobre o sentido literário dessas cartas,
mas considero que, em outro plano,
"Aqui Vai Meu Coração" levanta duas
ordens de questões, ambas da maior relevância. Primeiro, as cartas são um testemunho de época precioso, sobretudo
num país onde a documentação privada
é escassíssima. Um dos expoentes da história da vida privada, o francês Philippe
Ariès, lembrou que os protestantes são
mais afeitos a escrever diários, ecoando,
talvez, a necessidade dos exames de
consciência.
Filhos de uma tradição diversa, católica, os portugueses em geral e os brasileiros em particular têm pouca documentação de natureza privada -seja por a
destruírem, seja porque não a produzem. Diários e cartas são um prato cheio
para o historiador: sem eles, fica difícil
estudar a privacidade, o espaço doméstico, a vida amorosa e familiar de outrora.
As três personagens destas cartas viveram numa época em que o universo
mental e as sensibilidades não acompanharam as mudanças cada vez mais rápidas provocadas pelos avanços da modernização. "Que significa ser moderno? A
resposta disso é a coisa mais complicada
deste mundo", lembra Mário de Andrade na epígrafe escolhida para abrir "Aqui
Vai Meu Coração". A modernista Tarsila, já separada de Luís Martins, pedia que
ele escrevesse ao administrador da fazenda Santa Teresa do Alto e se mostrasse satisfeito com o bom andamento dos
trabalhos rurais: "Isso me dá autoridade
e prestígio perante eles. Não sou uma
mulher abandonada perante eles. Depois
venderei a fazenda e as notícias que corram sobre nossa vida". Ana Maria, moça
criada de modo profundamente convencional, teve que travar uma batalha comovente contra os próprios valores para
seguir o que ditava o coração. Na mesma
época, Luís Martins escrevia numa de
suas crônicas de jornal que "o amor jamais é culpado, pois ninguém ama porque quer, mas impelido pela fatalidade".
A segunda ordem de questões diz respeito à maneira como Ana Luisa Martins, a filha, enfrentou assunto tão espinhoso e produziu um livro que, em si,
tem interesse e luz própria. Sem suas intervenções, ficaria difícil entender as cartas, que não constituem propriamente
um "corpus" coeso, mas fragmentos de
três dolorosas crises pessoais. Ordenando a correspondência de modo cronológico, entremeou-a com trechos da autobiografia e de algumas das crônicas de
Luís Martins escritas no período, dando
voz à personagem para a qual convergiam as paixões, mas que o destino quis
que ficasse sem testemunho escrito.
LIVRO HETERODOXO
Além disso,
Ana Luisa se colocou dentro de uma trama que acontecera quando ela ainda não
era nascida, mas cuja memória impregnou-lhe a infância e a adolescência. Acabou escrevendo um livro que é também
de história: heterodoxo, mas sugestivo,
composto por vozes dissonantes, suportes variados e muita criatividade.
Por fim, há uma questão maior com a
qual Ana Luisa se debateu o tempo todo,
e que é talvez o nervo do livro: que direito
temos de publicar documentos -pois,
hoje, é isso que são estas cartas- que deveriam ter sido destruídos, de desobedecer determinações das pessoas que nos
são caras? Se contou com a aprovação da
mãe, Ana Luisa jamais poderá, como
confessa, saber se o pai e Tarsila "teriam
gostado de ver sua intimidade assim devassada", e sua consciência se reconforta
quando pensa no "que eles nos deixaram
por escrito, guardado em envelopes,
bem organizado e protegido das traças,
numa gaveta a ser aberta um dia por seus
sobreviventes".
Sempre haverá quem a recrimine. Mas
se tudo é documento, a história, por tudo
o que se disse acima, só pode agradecer.
LAURA DE MELLO E SOUZA é professora de
história na USP e autora, entre outros livros, de
"Norma e Conflito" (UFMG).
Aí Vai Meu Coração Ana Luisa Martins (org.)
Planeta (Tel. 0/xx/11/3088-2588)
245 págs. R$ 65,00
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