São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 2004

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VOZES DISSONANTES

A correspondência de três figuras do modernismo

TEXTO LAURA DE MELLO E SOUZA

O companheiro de uma senhora de meia idade -21 anos os separavam- se apaixona pela jovem filha de uma prima-irmã dela. A família se escandaliza, muita intriga se tece, os amigos se calam, o casal antigo se desfaz e o novo se casa.
Cinqüenta anos depois, a filha do homem, então já morto, e da jovem, que agora é uma senhora de idade, resolve, não sem muita hesitação, publicar as cartas que, num curto espaço de tempo -entre 1950 e 1952-, a senhora sexagenária e a moça de 20 e poucos anos enviaram ao amor comum, escritor e jornalista conhecido na São Paulo da época.
As cartas ficaram todo esse tempo guardadas: primeiro, numa gaveta, que a filha, então menina de 8 anos, abria de quando em quando e lia a prestação, sem entender direito quem eram aquelas pessoas e o que elas tinham a ver com a sua própria vida; depois, com as coisas da filha, já herdeira do acervo do pai, que doou a arquivos e instituições culturais sem ter coragem, contudo, de nele incluir aquelas poucas cartas, íntimas demais. Ainda menina, chegou a ficar indecisa sobre qual das duas protagonistas seria sua mãe verdadeira.
Um dia o pai contou o que ela já descobrira -que tivera outra mulher antes da mãe-, mas nunca nenhum dos dois chegou a falar das cartas. As do pai haviam sido destruídas, e as escritas pelas duas mulheres devem ter, originalmente, sido em número maior do que as que agora se publicam em "Aí Vai Meu Coração": pelo menos as da jovem, pois, ao final de cada carta, pedia que o amado lhe desse um fim ("rasgue logo a carta"; "não se esqueça de rasgar esta; você já rasgou as outras?"). Nas várias acepções da palavra, as três personagens dessa história de novela não eram comuns. A velha senhora era Tarsila do Amaral, que em 1950 -quando começam as cartas- achava-se envolvida na montagem da exposição organizada por Lourival Gomes Machado e que a consagrou como uma das grandes expressões da pintura brasileira de todos os tempos. O homem era Luís Martins, responsável por uma coluna muito lida de "O Estado de S. Paulo" e membro dos círculos intelectuais mais sofisticados da cidade. A jovem, Ana Maria Coelho de Freitas, era uma viúva da alta burguesia paulista, que depois viria, por sua vez, a ser escritora. O cenário também era incomum: a família das duas primas, Tarsila e Ana Maria, era das mais tradicionais e aristocráticas de São Paulo, e o antepassado de ambas -avô da mais velha, bisavô da mais moça- era um legendário José Estanislau do Amaral, chamado de "o milionário" na "Genealogia Paulista", de Silva Leme, "grande cafeicultor e senhor de escravos" que "colecionava fazendas como outros colecionam livros, objetos de arte ou caixas de fósforos". Com base nas cartas, entrevê-se como as elites paulistas arruinadas pela crise do café ainda conservavam traços da doce vida e como ainda era estreito o laço entre a aristocracia do dinheiro ou nascimento e a do espírito. Tanto Tarsila quanto sua prima Lúcia, mãe de Ana Maria, eram proprietárias de fazendas no interior paulista -restos do esplendor passado, decadentes, hipotecadas, mas podendo chegar aos 900 alqueires. Nelas passavam férias, recebiam amigos, tomavam banho de piscina, visitavam-se de trole e promoviam cavalgadas para os convidados. Por "Santa Teresa do Alto", a fazenda de Tarsila, passaram, sós ou com as famílias, Carlos Lacerda, Bruno Giorgi, Sérgio Milliet, Paulo Mendes de Almeida, Flávio de Carvalho, Arnaldo Pedroso d'Horta, Noêmia Mourão e Di Cavalcanti, que ali pintou algumas de suas boas telas, como "Nascimento de Vênus" e "Ciganos". As cartas correspondem a três blocos: 1) cartas escritas por Tarsila entre o fim de 1950 e o início de 1951, quando Luís Martins viajava pela Europa e ela intuía que o romance terminava; 2) cartas escritas por Tarsila e por Ana Maria a Luís Martins no início de 1952, quando o romance da última com o companheiro da prima já estava adiantado e haviam decidido se casar secretamente; 3) cartas de Ana Maria durante o segundo semestre de 1952, quando o plano do casamento secreto fracassara por responsabilidade sua e ela ensaiava uma reaproximação. A linguagem dominante na correspondência é muito simples, e os sentimentos em turbilhão são expostos de forma comedida, ao menos para a sensibilidade de hoje, afeita a expressões mais exacerbadas. As de Luís, que desapareceram, talvez tivessem teor diferente, e a filha reconhece que, no caso, o silêncio a que se viu condenado o pai acabou sendo melhor: "Meu pai passou por vários momentos de desespero ao longo daqueles dois anos. Primeiro, consumido pela culpa e por não saber como terminar seu relacionamento com Tarsila -ocasião em que chegou a cogitar suicídio; depois, pelas acusações que a família de minha mãe lhe fez. E pessoas desesperadas tendem a escrever coisas constrangedoras demais para ser publicadas".

TESTEMUNHOS DE ÉPOCA
A história toda revela, por um lado, a mesquinhez, o moralismo e o preconceito burgueses e, por outro, a retidão excepcional dos três protagonistas. Havia elementos de sobra para um folhetim barato ou um desfecho trágico, mas ele foi surpreendentemente normal: a família ultrajada pelo escândalo -os "Amarais", que se fecharam em bloco tanto contra a jovem transgressora quanto contra Tarsila, que pelo comportamento pouco convencional já havia sofrido o suficiente em suas garras- em parte se reconciliou e conviveu de modo pacífico até que a morte separou a maior parte dela. Minha formação impede que eu opine sobre o sentido literário dessas cartas, mas considero que, em outro plano, "Aqui Vai Meu Coração" levanta duas ordens de questões, ambas da maior relevância. Primeiro, as cartas são um testemunho de época precioso, sobretudo num país onde a documentação privada é escassíssima. Um dos expoentes da história da vida privada, o francês Philippe Ariès, lembrou que os protestantes são mais afeitos a escrever diários, ecoando, talvez, a necessidade dos exames de consciência. Filhos de uma tradição diversa, católica, os portugueses em geral e os brasileiros em particular têm pouca documentação de natureza privada -seja por a destruírem, seja porque não a produzem. Diários e cartas são um prato cheio para o historiador: sem eles, fica difícil estudar a privacidade, o espaço doméstico, a vida amorosa e familiar de outrora. As três personagens destas cartas viveram numa época em que o universo mental e as sensibilidades não acompanharam as mudanças cada vez mais rápidas provocadas pelos avanços da modernização. "Que significa ser moderno? A resposta disso é a coisa mais complicada deste mundo", lembra Mário de Andrade na epígrafe escolhida para abrir "Aqui Vai Meu Coração". A modernista Tarsila, já separada de Luís Martins, pedia que ele escrevesse ao administrador da fazenda Santa Teresa do Alto e se mostrasse satisfeito com o bom andamento dos trabalhos rurais: "Isso me dá autoridade e prestígio perante eles. Não sou uma mulher abandonada perante eles. Depois venderei a fazenda e as notícias que corram sobre nossa vida". Ana Maria, moça criada de modo profundamente convencional, teve que travar uma batalha comovente contra os próprios valores para seguir o que ditava o coração. Na mesma época, Luís Martins escrevia numa de suas crônicas de jornal que "o amor jamais é culpado, pois ninguém ama porque quer, mas impelido pela fatalidade". A segunda ordem de questões diz respeito à maneira como Ana Luisa Martins, a filha, enfrentou assunto tão espinhoso e produziu um livro que, em si, tem interesse e luz própria. Sem suas intervenções, ficaria difícil entender as cartas, que não constituem propriamente um "corpus" coeso, mas fragmentos de três dolorosas crises pessoais. Ordenando a correspondência de modo cronológico, entremeou-a com trechos da autobiografia e de algumas das crônicas de Luís Martins escritas no período, dando voz à personagem para a qual convergiam as paixões, mas que o destino quis que ficasse sem testemunho escrito.

LIVRO HETERODOXO
Além disso, Ana Luisa se colocou dentro de uma trama que acontecera quando ela ainda não era nascida, mas cuja memória impregnou-lhe a infância e a adolescência. Acabou escrevendo um livro que é também de história: heterodoxo, mas sugestivo, composto por vozes dissonantes, suportes variados e muita criatividade. Por fim, há uma questão maior com a qual Ana Luisa se debateu o tempo todo, e que é talvez o nervo do livro: que direito temos de publicar documentos -pois, hoje, é isso que são estas cartas- que deveriam ter sido destruídos, de desobedecer determinações das pessoas que nos são caras? Se contou com a aprovação da mãe, Ana Luisa jamais poderá, como confessa, saber se o pai e Tarsila "teriam gostado de ver sua intimidade assim devassada", e sua consciência se reconforta quando pensa no "que eles nos deixaram por escrito, guardado em envelopes, bem organizado e protegido das traças, numa gaveta a ser aberta um dia por seus sobreviventes". Sempre haverá quem a recrimine. Mas se tudo é documento, a história, por tudo o que se disse acima, só pode agradecer.


LAURA DE MELLO E SOUZA é professora de história na USP e autora, entre outros livros, de "Norma e Conflito" (UFMG).

Aí Vai Meu Coração Ana Luisa Martins (org.) Planeta (Tel. 0/xx/11/3088-2588) 245 págs. R$ 65,00



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