São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 2004

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PÉROLAS BARROCAS

O passado paulista colonial

TEXTO JEAN GALARD

Há livros que são publicados no momento oportuno, ainda que não possam ser suspeitos de oportunismo. A obra erudita e bem ilustrada que acaba de aparecer sobre o patrimônio religioso paulista chega evidentemente na data mais favorável: sua leitura é obrigatória para qualquer espírito curioso, desejoso de celebrar como se deve o 450º aniversário da cidade de São Paulo e de se instruir sobre a história do Estado do mesmo nome. O interesse pelo passado paulista, nesse livro, se acha de algum modo duplicado pela referência à empreitada conduzida por Mário de Andrade em 1937 sobre o mesmo assunto. Uma dupla memória nos é assim oferecida. De um lado, a memória das igrejas e das capelas do período colonial: o trabalho de precisa restituição histórica de Percival Tirapeli é aqui completado, apoiado e vivificado pelas esplêndidas fotografias de Manoel Nunes da Silva. Mas o livro também faz justiça à intensa atividade pioneira desenvolvida por Mário de Andrade para inventariar o patrimônio paulista: a campanha de 1937 é não somente lembrada num capítulo especial, mas periodicamente evocada graças às fotografias tiradas por Germano Graeser, sob a direção de Mário. É comovente encontrar, lado a lado, clichês de duas fotografias mostrando o mesmo monumento com 65 anos de intervalo, por exemplo a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Itanhaém. O livro de Tirapeli dá a impressão de uma memória de duplo ou triplo foco, que visa ao mesmo tempo um passado muito longínquo, imagens relativamente antigas (há fotos de Militão Augusto de Azevedo e até pinturas de Benedito Calixto de Jesus) assim como eventuais lembranças pessoais, poderosamente reavivadas pela arte de Manoel Nunes da Silva A obra se compõe de três partes. A primeira é uma seqüência de capítulos temáticos, que se lêem facilmente de modo contínuo. A segunda, a mais volumosa, é destinada antes a uma consulta intermitente: é uma série de itinerários pelos quais o leitor pode se pôr no encalço de Mário de Andrade, escolhendo percorrer o litoral paulista, revisitar as igrejas da capital ou seguir os caminhos dos jesuítas. A terceira parte contém uma extensa bibliografia, notícias sobre alguns artistas paulistas, um glossário de termos artísticos e religiosos, uma cronologia dos acontecimentos históricos. É aqui que seria mais fácil salientar algumas lacunas, se quiséssemos temperar os elogios que o conjunto do livro merece. As biografias dos "artistas coloniais" são apenas quatro, e uma delas concerne a Miguel Arcanjo Benício de Assunção Dutra, que nasceu em 1810 e que portanto só é "colonial" por uma estranha extensão desse termo. A cronologia talvez devesse incluir um maior número de fatos históricos não religiosos e, enfim, um mapa do Estado de São Paulo, e até mesmo planos de certas cidades teriam sido úteis para certos leitores. A segunda parte concilia a circulação geográfica do passeante e a exposição inteligível da história. É de notar que a abundante documentação histórica oferecida engloba ao mesmo tempo indicações eruditas sobre o passado longínquo e informações sobre as adições, as reformas ou as restaurações posteriores ou recentes. Na primeira parte, os capítulos sucessivos se encadeiam com uma agradável mistura de necessidade e imprevisto. As exposições de certo modo "obrigatórias" (arquitetura paulista, retábulos coloniais, esculturas, pinturas) se alternam com páginas mais inesperadas (sobre o processo de povoamento no Estado de São Paulo, sobre o levantamento feito por Mário de Andrade, sobre a monografia que este escreveu sobre o padre Jesuíno do Monte Carmelo, sobre os manuscritos musicais de Mogi das Cruzes). Essa feliz diversidade deriva do lugar que Tirapeli soube deixar para seus colegas pesquisadores: Murilo Marx sobre urbanismo, Regis Duprat e Machado Neto sobre música, entre outros. Pode causar espanto ver um livro consagrado em princípio ao barroco e ao rococó avançar tão longe no século 19 e mesmo no 20, até anexar a Sé atual de São Paulo (por uma espécie de castigo por essa audácia, a visão geral que é dada acrobaticamente do interior do monumento é a única foto realmente malsucedida do volume). A gente chega a se perguntar, mais uma vez, se essas noções de "barroco" e de "rococó" se reportam a períodos históricos, delimitados por datas relativamente precisas, ou se qualificam estilos, suscetíveis de ressurgir não importa em que momento. O livro de Tirapeli não se demora nessas questões. Não se pergunta, por exemplo, quais são os componentes essenciais do estado de espírito barroco ou quais os traços fundamentais da visão rococó do mundo. Mais ainda: "Igrejas Paulistas" nos poupa das clássicas comparações entre as diversas famílias barrocas. O barroco paulista não é longamente posto em paralelo com seus homônimos português, baiano, mineiro etc. Este livro parece não ter necessidade de fazer valer seu objeto definindo sua (abstrata) originalidade. É um grande progresso em relação àquilo que Lucio Costa, por exemplo, dizia em 1941. Nessa época, parecia necessário sustentar que os retábulos paulistas não são simples cópias inábeis, mas contam entre "as mais antigas e autênticas expressões conhecidas de arte brasileira". Para melhor defender as obras paulistas, que arriscavam parecer um pouco austeras em contraposição à maior parte das obras luso-brasileiras da época colonial, Lucio Costa propunha chamar as primeiras de "brasileiras" e as outras de "portuguesas do Brasil". Hoje, para fazer admirar uma forma de arte, já não é indispensável denegrir uma outra. Além disso, as categorias estilísticas se tornaram cada vez mais finas. Elas se tornaram mais complexas de modo a permitir um melhor acesso à singularidade de cada obra, ao passo que houve um tempo em que a análise das obras singulares servia para construir a definição de um estilo. Progresso do positivismo? Triunfo do nominalismo? Ou ingresso da história da arte na idade da maturidade?


JEAN GALARD é ensaísta e autor de, entre outros livros, "A Beleza do Gesto" (Edusp). Tradução de Franklin de Mattos

Igrejas Paulistas Percival Tirapeli Ed. Unesp/ Imprensa Oficial (Tel. 0/11/3242-7171) 372 págs. R$ 160,00



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