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Pares em contradição
PAULO HENRIQUES BRITTO
A poesia de Emily Dickinson (1830-1886) pode ser caracterizada por uma série de pares contraditórios: é imensa e consiste em poemas mínimos; tematiza a eternidade e a morte
por meio de imagens quase sempre extraídas de um cotidiano limitado a uma casa e um jardim; revela forte pendor metafísico e uma visão profundamente cética. Em particular, há
um par de características que constitui um constante desafio
para os tradutores: atendo-se apenas aos recursos mais pobres da versificação inglesa -a forma do hino de igreja (estrofes curtas em que se alternam versos de quatro e três pés,
com rimas imperfeitas)- , Dickinson logra obter efeitos formais de uma sofisticação assombrosa. Como reproduzir tanta riqueza sonora, imagística e intelectual no curto espaço de
duas ou três quadras de versos curtos, principalmente numa
língua prolixa e polissilábica como o português?
É esse o desafio enfrentado por quem se proponha a traduzir Dickinson. Em "Cinquenta Poemas", Isa Mara Lando
adota uma sistemática de trabalho interessante: em cada página temos, em posição de destaque e em letras grandes, o
texto original; na parte inferior da página, num boxe e em letras menores, uma tradução que tenta recriar os efeitos poéticos do original em português e, a seu lado, versões literais dos
trechos em que as exigências da forma levaram a um afastamento maior da letra do texto inglês. Desse modo, a tradutora tem espaço para tomar as liberdades que se fazem necessárias com o fim de elaborar uma versão que seja de fato poética
e ao mesmo tempo oferece ao leitor que não domina o idioma
estrangeiro a possibilidade de recuperar algo mais próximo
ao sentido literal do original.
Um bom exemplo do método está na pág. 58, em que a tradutora enfrenta o que é um dos mais extraordinários poemas
de Dickinson: "I've Seen a Dying Eye". No boxe, à esquerda,
Isa Mara nos apresenta uma bela tradução, em que consegue
captar de modo conciso as nuanças do original, utilizando
uma forma que evoca no português os padrões métrico e rímico da poeta americana. À direita, a tradutora ressalta os
dois pontos em que mais se afasta do inglês -a repetição de
"round and round" no segundo verso e a totalidade do último verso, que dificilmente se deixaria traduzir de modo literal com elegância.
O método tem certas falhas: a coluna direita do boxe só indica o afastamento semântico entre a tradução e o original, porém não acusa algo igualmente importante -a perda da enfática aliteração em /r/ do segundo verso, que Isa Mara não
tenta recuperar em nenhum outro ponto do poema. Seja como for, a idéia de assinalar as passagens em que a tradução
mais se distancia do original me parece louvável e indica uma
postura de honestidade intelectual.
O método, ao criar um espaço especial para ressaltar os desvios de suas versões, dá a entender que a preocupação da tradutora foi respeitar escrupulosamente as exigências formais
do texto poético. Porém isso nem sempre se dá ao longo do livro.
Vejamos o que acontece na tradução de "I Died for Beauty".
O original consiste em estrofes em que se alternam versos de
quatro e três pés, com rimas imperfeitas em "abcb" -o modelo do hino protestante, como já observei acima. Mas a tradução não obedece ao padrão rímico nem à métrica do original. A tradutora optou por um esquema de rimas "aabb" na
primeira e na terceira estrofes, enquanto na segunda rimam
apenas os dois primeiros versos -padrão irregular e pouco
usual.
Cinquenta Poemas - Fifty Poem s
Emily Dickinson
Seleção e tradução: Isa Mara Lando
Alumni Library/Imago (Tel. 0/xx/21/233-7034)
64 págs., R$ 10,00
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Mas é com relação à métrica que as soluções escolhidas me
parecem mais insatisfatórias. Na primeira estrofe da tradução, temos a seguinte estrutura métrica: primeiro verso, 10 sílabas; segundo verso, 7; terceiro verso, 15; quarto verso, 8. Nas
outras estrofes, a situação se repete -a contagem de sílabas
na segunda é 7, 8, 13 e 9; na terceira, 14, 9, 12, 8. Ora, uma estrofe que varia de modo irregular entre 7 e 15 sílabas não segue qualquer padrão métrico reconhecível em português.
Em particular, são problemáticos os versos de 13 a 15, medidas anormalmente longas em português. O primeiro verso da
última estrofe, por exemplo, é um tetrâmetro perfeito; assinalando as sílabas fortes de cada pé com acentos, temos: "And
só, as Kínsmen, mét a Níght" (e não "at Night", como Isa Mara o transcreve). O verso que a ele corresponde na tradução
-"E assim, qual Companheiros, à Noite nos encontrávamos"- não apenas é longo demais como também não apresenta um ritmo que o identifique como parte de um poema
metrificado. Causa estranheza, também, a escolha de "companheiros", uma palavra de quatro sílabas que não corresponde ao sentido de "kinsmen" ("parentes").
Assim, em "I Died for Beauty" -como em outros poemas
de sua antologia-, Isa Mara não cumpre o que promete na
sua nota introdutória: "Nalguma medida, recriar a forma
poética de cada poema original". O leitor fica a desejar que a
tradutora tivesse elaborado melhor essas versões antes de publicá-las -pois suas recriações de "I've Seen a Dying Eye" e
de outros poemas revelam que tem suficiente talento para
empreender uma tradução mais apurada da obra de uma
poeta com quem ela claramente tem afinidade. Tanto esse talento quanto essa afinidade estão em evidência na deliciosa
versão livre (ou "imitação", como diria Robert Lowell) de
"The Dying Need but Little, Dear" que fecha, com chave de
ouro, este pequeno volume.
Paulo Henriques Britto é poeta e tradutor, autor de "Trovar Claro" (Companhia das Letras).
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