São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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É traduzido no Brasil Yves Bonnefoy, o maior poeta francês contemporâneo
O que não podem dizer as palavras

JOÃO MOURA JR.

Nascido em 24 de junho de 1923, Yves Bonnefoy é comumente considerado o maior poeta francês contemporâneo. O fato de não ter sido traduzido antes no Brasil talvez se deva à dificuldade que sua poesia impõe a uma primeira aproximação. Dificuldade essa que não tem origem no vocabulário ou na sintaxe. Bonnefoy se utiliza de preferência da ordem direta, e seu léxico se resume às "mesmas vinte palavras", como diria João Cabral (não sobre ele, é claro, que não deve despertar muito interesse no poeta de "Anti-Char").
Ela se origina em seu próprio projeto poético. Cada um de seus livros constitui o teatro -para usarmos o título do poema de abertura do primeiro deles, "Do Movimento e da Imobilidade de Douve", de 1953- em que se dramatizam as diversas etapas da busca daquilo que para Bonnefoy seria a presença do ser anterior à palavra. Para atingir essa presença é necessária uma batalha sem tréguas contra o conceito, que, segundo o poeta, ao invés de revelar o real, estende sobre ele um véu ainda mais espesso.
Mesmo o estado de alerta constante contra as artimanhas do conceito ou da idéia (o único poema anterior a "Douve" incluído por Bonnefoy no volume "Poèmes", de 1978, que reúne seus quatro primeiros livros, se chama justamente "Anti-Platão") não garante porém a palpabilidade do real -a sua presença- na escrita. Essa presença é por definição fugaz, efêmera, e pode se materializar ou não a cada investida. Daí que, como escreve Georges Poulet, toda a sua obra poética "se coloque sob a dependência de ocasiões súbitas e inesperadas". A esses momentos privilegiados corresponde o que Bonnefoy chama de "lugares verdadeiros" ("vrais lieux"), propícios ao afloramento do ser. O principal agente encadeador de tal afloramento na escrita é a imagem, que em sua precariedade e estranheza se opõe à solidificação do conceito.

Tradição pós-mallarmaica
A dimensão espaço-temporal está sintetizada numa metáfora-chave que percorre a obra, a de limiar, que dá inclusive título ao quarto volume de poesia de Bonnefoy, "Na Ilusão do Limiar", de 1975, constituído por um único, longo poema. E determina em certo sentido sua própria concepção de poesia, como se depreende deste trecho de um livro de 1993, "Remarques sur le Dessin": "E poesia, é o que se torna a palavra quando formos capazes de não esquecer que existe um ponto, em muitas palavras, em que elas têm contato, apesar de tudo, com o que não podem dizer".
Não é difícil perceber o quanto essa concepção de poesia tem os pés fincados numa certa tradição poética francesa moderna, pós-mallarmaica, à qual Bonnefoy se opõe veementemente: a da hipertrofia do signo em detrimento daquilo que ele supostamente deveria significar. Um dos seus tradutores norte-americanos -e também autor de um livro importante sobre sua poética-, John Naughton, resume assim a questão: "Muito da ênfase na poesia francesa inspirada por Mallarmé tem sido posta na idéia de ausência: o reconhecimento da abolição fatal do significado pelo significante, a sensação de que a "verdadeira vida" está alhures e de que o uso que a sociedade faz da linguagem é uma corrupção irremediável; a convicção de que a missão do poeta é, pois, "dar um sentido mais puro às palavras da tribo" e assim permitir, por intermédio de uma fala poética rarefeita, o acesso ao mundo verdadeiro, ideal, comparado ao qual o triste lugar em que enlanguescemos é um empobrecimento lamentável regido pelo caos e pelo acaso".
Reclamando-se de uma linhagem que vem de Baudelaire e de Rimbaud, poetas que inscreveram o efêmero, o transitório, no cerne mesmo de sua obra, se Bonnefoy resgata Mallarmé por ter, segundo ele, reconhecido o fracasso de sua pretensão a salvar o ser pela poesia, ou seja, ter reconhecido, a partir do "Coup de Dés", que "celebrou esse irremediável", o fato de não se poder "escapar pela palavra ao nada que deglute as coisas", sua visão do discípulo Valéry é impiedosa: "Ele se compraz num mundo de essências onde nada nasce ou morre, onde as coisas perduram sem acidente, com o risco de não serem verdadeiramente, simples pinturas ligeiras sobre a opacidade de uma noite". O que não deixa de ser irônico, pois Bonnefoy foi o primeiro poeta depois de Valéry, cujos cursos frequentou em 1944, a ocupar uma cadeira no Collège de France, sucedendo a Roland Barthes.

Falhas graves
Pelo tecido intrincado de cada um de seus livros individualmente e do conjunto de sua obra, fica claro que Bonnefoy é um poeta que perde quando antologiado. A decisão de tradutor e editor de publicarem num único volume praticamente a totalidade de sua poesia não poderia portanto ser mais acertada e é digna de admiração.

Obra Poética
Yves Bonnefoy Tradução: Mário Laranjeira Iluminuras (Tel. 0/xx/11/3068-9433) 448 págs., R$ 39,00



O volume sólido e resistente, agradável de manusear, e contendo o texto original dos poemas, reproduzido fielmente em rodapé para viabilizar uma edição que de outro modo se tornaria impraticável, merece os maiores elogios. A tradução, porém, tem infelizmente falhas graves, o que demonstra que nem sempre o bom conhecimento da língua-fonte -de que ninguém pode duvidar no caso de Mário Laranjeira, experiente professor de francês da Universidade de São Paulo- é sinônimo de boa tradução. Para que essa afirmação não pareça leviana, cabe demonstrá-la.
Já na primeira parte de "Teatro", o poema que abre "Do Movimento e da Imobilidade de Douve", nos deparamos com uma interpretação, para dizer o mínimo, problemática, dada ao último verso ("...ô plus belle/ Que la foudre, quand elle tache les vitres blanches de ton sang"). Mário Laranjeira o traduz por: "Do que o raio, quando mancha as vidraças brancas com teu sangue", eliminando uma ambiguidade que, para ser mantida, bastaria que se conservasse o "de" do original no lugar do "com" escolhido pelo tradutor.
Tanto mais que foi o que fizeram outros tradutores de Bonnefoy, como os espanhóis Carlos Piera e Enrique Moreno Castillo. Este chama inclusive a atenção, no prólogo à antologia do poeta francês que organizou, para a "ambiguidade sintática, já que a frase pode ser entendida de duas maneiras: "mancha com teu sangue as vidraças" ou "mancha as vidraças de teu sangue'". Esta última, aliás, foi a interpretação que deu ao verso o poeta norte-americano Galway Kinnell, numa tradução revista por Bonnefoy: "Than the lightning, when it stains the white windowpanes of you blood". Afinal, o crítico Jean-Pierre Richard, num ensaio pioneiro de 1961 sobre o autor, já apontava para essa identificação do sangue com a vidraça no que ele chamou de um "delírio do aneurisma".
Talvez seja esse horror à ambiguidade que faça com que o tradutor use frequentemente como transitivos indiretos verbos que são transitivos diretos ("Vidraça feliz a que rasga a unha solar", "Ente desfeito a que compõe o ente invencível", "Implacável corisco a que o nada suporta" etc.). Seja como for, ele é coerente com um certo "parti pris" conservador sobre o que seja poesia a orientar a tradução, como quando Mário Laranjeira parece preferir sistematicamente a ordem inversa da oração, sendo que quase sempre Bonnefoy emprega a direta.
É claro que em certos casos tais inversões se justificam por necessidades de métrica, mas em muitos outros isso não acontece (seja dito aqui que, se a inversão operada no título original do segundo livro de poemas do autor, "Hier Régnant Désert", que na tradução se torna "Reinante Ontem Deserto", soa estranha à primeira vista, ela se explica por tratar-se do primeiro hemistíquio de um alexandrino).

Devoções do poeta
Um erro de compreensão que poderia perfeitamente ter sido sanado com a consulta a traduções anteriores, como as de Galway Kinnell e Moreno Castillo já citadas, prejudica a tradução de todo um belo poema, "Devoção", publicado originalmente num livro de ensaios, "L'Improbable"! Trata-se de uma vasta enumeração de coisas que foram importantes para o poeta no decorrer de sua vida e às quais ele declara devoção, numa espécie de ladainha, cujo tom encantatório parece visar a aflorar-lhes a presença no poema. Assim, em lugar de "Nas urtigas e nas pedras.// Nas "matemáticas severas". Nos trens mal iluminados de cada noite. Nas ruas de neve sob a estrela sem limite", deve-se ler: "Às urtigas e às pedras.// Às "matemáticas severas"..." etc., o poema todo constituindo uma espécie de longo complemento ao título.
Há ainda alguns "cochilos" que, num profissional experiente como Mário Laranjeira, só uma leitura apressada do original explicaria, como a tradução de "sauvais" ("salvavas") por "sabias" ("savais") ou a de "alarmes" ("alarmes") por "lágrimas" ("larmes"), ambas num mesmo poema, "A Lâmpada, O Adormecido", de "Pedra Escrita". Por fim, algumas gralhas e erros de revisão comprometem a edição, como a repetição de um pequeno trecho no prefácio que Yves Bonnefoy escreveu especialmente para ela ou o adjetivo "maciço" grafado duas vezes "massiço" num dos poemas intitulados "Uma Pedra", também de "Pedra Escrita".


João Moura Jr. é poeta e jornalista.


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