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É traduzido no Brasil Yves Bonnefoy, o maior poeta francês contemporâneo
O que não podem dizer as palavras
JOÃO MOURA JR.
Nascido em 24 de junho de 1923,
Yves Bonnefoy é comumente
considerado o maior poeta francês contemporâneo. O fato de não
ter sido traduzido antes no Brasil
talvez se deva à dificuldade que
sua poesia impõe a uma primeira
aproximação. Dificuldade essa
que não tem origem no vocabulário ou na sintaxe. Bonnefoy se utiliza de preferência da ordem direta, e seu léxico se resume às "mesmas vinte palavras", como diria
João Cabral (não sobre ele, é claro,
que não deve despertar muito interesse no poeta de "Anti-Char").
Ela se origina em seu próprio
projeto poético. Cada um de seus
livros constitui o teatro -para
usarmos o título do poema de
abertura do primeiro deles, "Do
Movimento e da Imobilidade de
Douve", de 1953- em que se dramatizam as diversas etapas da
busca daquilo que para Bonnefoy
seria a presença do ser anterior à
palavra. Para atingir essa presença é necessária uma batalha sem
tréguas contra o conceito, que, segundo o poeta, ao invés de revelar
o real, estende sobre ele um véu
ainda mais espesso.
Mesmo o estado de alerta constante contra as artimanhas do
conceito ou da idéia (o único poema anterior a "Douve" incluído
por Bonnefoy no volume "Poèmes", de 1978, que reúne seus
quatro primeiros livros, se chama
justamente "Anti-Platão") não
garante porém a palpabilidade do
real -a sua presença- na escrita. Essa presença é por definição
fugaz, efêmera, e pode se materializar ou não a cada investida. Daí
que, como escreve Georges Poulet, toda a sua obra poética "se coloque sob a dependência de ocasiões súbitas e inesperadas". A esses momentos privilegiados corresponde o que Bonnefoy chama
de "lugares verdadeiros" ("vrais
lieux"), propícios ao afloramento
do ser. O principal agente encadeador de tal afloramento na escrita é a imagem, que em sua precariedade e estranheza se opõe à
solidificação do conceito.
Tradição pós-mallarmaica
A dimensão espaço-temporal
está sintetizada numa metáfora-chave que percorre a obra, a de limiar, que dá inclusive título ao
quarto volume de poesia de Bonnefoy, "Na Ilusão do Limiar", de
1975, constituído por um único,
longo poema. E determina em
certo sentido sua própria concepção de poesia, como se depreende
deste trecho de um livro de 1993,
"Remarques sur le Dessin": "E
poesia, é o que se torna a palavra
quando formos capazes de não
esquecer que existe um ponto, em
muitas palavras, em que elas têm
contato, apesar de tudo, com o
que não podem dizer".
Não é difícil perceber o quanto
essa concepção de poesia tem os
pés fincados numa certa tradição
poética francesa moderna, pós-mallarmaica, à qual Bonnefoy se
opõe veementemente: a da hipertrofia do signo em detrimento daquilo que ele supostamente deveria significar. Um dos seus tradutores norte-americanos -e também autor de um livro importante sobre sua poética-, John
Naughton, resume assim a questão: "Muito da ênfase na poesia
francesa inspirada por Mallarmé
tem sido posta na idéia de ausência: o reconhecimento da abolição
fatal do significado pelo significante, a sensação de que a "verdadeira vida" está alhures e de que o
uso que a sociedade faz da linguagem é uma corrupção irremediável; a convicção de que a missão
do poeta é, pois, "dar um sentido
mais puro às palavras da tribo" e
assim permitir, por intermédio de
uma fala poética rarefeita, o acesso ao mundo verdadeiro, ideal,
comparado ao qual o triste lugar
em que enlanguescemos é um
empobrecimento lamentável regido pelo caos e pelo acaso".
Reclamando-se de uma linhagem que vem de Baudelaire e de
Rimbaud, poetas que inscreveram o efêmero, o transitório, no
cerne mesmo de sua obra, se Bonnefoy resgata Mallarmé por ter,
segundo ele, reconhecido o fracasso de sua pretensão a salvar o
ser pela poesia, ou seja, ter reconhecido, a partir do "Coup de
Dés", que "celebrou esse irremediável", o fato de não se poder "escapar pela palavra ao nada que
deglute as coisas", sua visão do
discípulo Valéry é impiedosa:
"Ele se compraz num mundo de
essências onde nada nasce ou
morre, onde as coisas perduram
sem acidente, com o risco de não
serem verdadeiramente, simples
pinturas ligeiras sobre a opacidade de uma noite". O que não deixa
de ser irônico, pois Bonnefoy foi o
primeiro poeta depois de Valéry,
cujos cursos frequentou em 1944,
a ocupar uma cadeira no Collège
de France, sucedendo a Roland
Barthes.
Falhas graves
Pelo tecido intrincado de cada
um de seus livros individualmente e do conjunto de sua obra, fica
claro que Bonnefoy é um poeta
que perde quando antologiado. A
decisão de tradutor e editor de
publicarem num único volume
praticamente a totalidade de sua
poesia não poderia portanto ser
mais acertada e é digna de admiração.
Obra Poética
Yves Bonnefoy
Tradução: Mário Laranjeira
Iluminuras (Tel. 0/xx/11/3068-9433)
448 págs., R$ 39,00
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O volume sólido e resistente,
agradável de manusear, e contendo o texto original dos poemas,
reproduzido fielmente em rodapé
para viabilizar uma edição que de
outro modo se tornaria impraticável, merece os maiores elogios.
A tradução, porém, tem infelizmente falhas graves, o que demonstra que nem sempre o bom
conhecimento da língua-fonte
-de que ninguém pode duvidar
no caso de Mário Laranjeira, experiente professor de francês da
Universidade de São Paulo- é sinônimo de boa tradução. Para
que essa afirmação não pareça leviana, cabe demonstrá-la.
Já na primeira parte de "Teatro", o poema que abre "Do Movimento e da Imobilidade de Douve", nos deparamos com uma interpretação, para dizer o mínimo,
problemática, dada ao último verso ("...ô plus belle/ Que la foudre,
quand elle tache les vitres blanches de ton sang"). Mário Laranjeira o traduz por: "Do que o raio,
quando mancha as vidraças brancas com teu sangue", eliminando
uma ambiguidade que, para ser
mantida, bastaria que se conservasse o "de" do original no lugar
do "com" escolhido pelo tradutor.
Tanto mais que foi o que fizeram outros tradutores de Bonnefoy, como os espanhóis Carlos
Piera e Enrique Moreno Castillo.
Este chama inclusive a atenção,
no prólogo à antologia do poeta
francês que organizou, para a
"ambiguidade sintática, já que a
frase pode ser entendida de duas
maneiras: "mancha com teu sangue as vidraças" ou "mancha as vidraças de teu sangue'". Esta última, aliás, foi a interpretação que
deu ao verso o poeta norte-americano Galway Kinnell, numa tradução revista por Bonnefoy:
"Than the lightning, when it
stains the white windowpanes of
you blood". Afinal, o crítico Jean-Pierre Richard, num ensaio pioneiro de 1961 sobre o autor, já
apontava para essa identificação
do sangue com a vidraça no que
ele chamou de um "delírio do
aneurisma".
Talvez seja esse horror à ambiguidade que faça com que o tradutor use frequentemente como
transitivos indiretos verbos que
são transitivos diretos ("Vidraça
feliz a que rasga a unha solar",
"Ente desfeito a que compõe o ente invencível", "Implacável corisco a que o nada suporta" etc.). Seja como for, ele é coerente com
um certo "parti pris" conservador
sobre o que seja poesia a orientar
a tradução, como quando Mário
Laranjeira parece preferir sistematicamente a ordem inversa da
oração, sendo que quase sempre
Bonnefoy emprega a direta.
É claro que em certos casos tais
inversões se justificam por necessidades de métrica, mas em muitos outros isso não acontece (seja
dito aqui que, se a inversão operada no título original do segundo
livro de poemas do autor, "Hier
Régnant Désert", que na tradução
se torna "Reinante Ontem Deserto", soa estranha à primeira vista,
ela se explica por tratar-se do primeiro hemistíquio de um alexandrino).
Devoções do poeta
Um erro de compreensão que
poderia perfeitamente ter sido sanado com a consulta a traduções
anteriores, como as de Galway
Kinnell e Moreno Castillo já citadas, prejudica a tradução de todo
um belo poema, "Devoção", publicado originalmente num livro
de ensaios, "L'Improbable"! Trata-se de uma vasta enumeração
de coisas que foram importantes
para o poeta no decorrer de sua
vida e às quais ele declara devoção, numa espécie de ladainha,
cujo tom encantatório parece visar a aflorar-lhes a presença no
poema. Assim, em lugar de "Nas
urtigas e nas pedras.// Nas "matemáticas severas". Nos trens mal
iluminados de cada noite. Nas
ruas de neve sob a estrela sem limite", deve-se ler: "Às urtigas e às
pedras.// Às "matemáticas severas"..." etc., o poema todo constituindo uma espécie de longo
complemento ao título.
Há ainda alguns "cochilos" que,
num profissional experiente como Mário Laranjeira, só uma leitura apressada do original explicaria, como a tradução de "sauvais" ("salvavas") por "sabias"
("savais") ou a de "alarmes"
("alarmes") por "lágrimas" ("larmes"), ambas num mesmo poema, "A Lâmpada, O Adormecido", de "Pedra Escrita". Por fim,
algumas gralhas e erros de revisão
comprometem a edição, como a
repetição de um pequeno trecho
no prefácio que Yves Bonnefoy
escreveu especialmente para ela
ou o adjetivo "maciço" grafado
duas vezes "massiço" num dos
poemas intitulados "Uma Pedra",
também de "Pedra Escrita".
João Moura Jr. é poeta e jornalista.
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