São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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Outra história

JOSÉ CASTILHO MARQUES NETO

Resgatar a memória da esquerda no Brasil é, antes de tudo, contribuir para o preenchimento de imensas lacunas que ainda persistem e que dificultam o entendimento da história política e social do país. Felizmente, nos últimos anos, a recuperação dessa "outra história" começa a ganhar corpo e temos tido a oportunidade de conhecer não apenas relatos superficiais, mas análises teóricas consistentes somadas a mergulhos profundos nas estruturas dos partidos.
O livro de Hersch Basbaum contribui para essa recuperação ao complementar a consistente e deliciosa autobiografia de Leôncio Basbaum, "Uma Vida em Seis Tempos -Memórias" (1976). Ao dar publicidade a um conjunto de cartas de Leôncio, a maioria delas endereçadas aos dirigentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) após sua reorganização em 1943, em pleno período do ufanismo stalinista, Hersch desvenda meandros da estrutura partidária, do perfil de seu biografado e de vários dirigentes históricos como Luís Carlos Prestes, Diógenes de Arruda Câmara e Maurício Grabois, entre outros. O livro trabalha aspectos diferentes que se entrelaçam no decorrer da leitura: as difíceis e contraditórias relações de Leôncio com o Partido; as mudanças políticas do PCB com a nova geração de dirigentes; a figura do intelectual revolucionário, característica dos primeiros anos da esquerda marxista internacional, que buscava em Marx o instrumental teórico para a transformação social. Esses aspectos são fartamente comentados pelo autor, com opiniões pessoais e também com esclarecimentos históricos.
Mas o que é mais fascinante nas cartas, especialmente quando lidas neste desacreditado fim de século, é a recuperação do perfil dos primeiros militantes comunistas e de suas convicções profundas quanto à validade das teorias do velho bolchevismo, principalmente a teoria do partido revolucionário. A derrocada do eufemisticamente chamado "socialismo real", somada à frustrante convivência com o desvendamento do terror stalinista denunciado em 1956, dificulta hoje a real compreensão que as primeiras gerações de revolucionários após 1917 tinham do mundo em que viviam. Herdeiros diretos da revolução bolchevique, convivendo com marxistas revolucionários como Lênin, Trótski, Bukhárin, os primeiros militantes que formaram o pensamento comunista no Brasil são formados por homens que viram seu sonho se tornar realidade na URSS, considerada, então, a pátria mãe do socialismo.
Parece ao menos discutível que, como no subtítulo desta obra, "História Sincera de um Sonhador", e em outras passagens do livro, devamos insistir em caracterizar esses militantes como "sonhadores". Afinal, será sonhador o militante convencido pela teoria do partido revolucionário e de sua necessária unicidade e função dirigente das massas, isto poucos anos depois do triunfo bolchevique de outubro de 1917? O espectro desse convencimento intelectual é abrangente e foge dos partidos oficiais e fiéis à Moscou. Encontramos as mesmas posições naqueles que foram considerados pelos comunistas como "traidores do proletariado", os trotskistas.

Cartas ao Comitê Central - História Sincera de um Sonhador
Hersch Wladimir Basbaum
Discurso Editorial (Tel. 0/xx/11/814-5383)
212 págs., R$ 20,00



Um dos fundadores da "oposição de esquerda" no Brasil, Mário Pedrosa, afirmou em carta ao amigo Lívio Xavier, quando aderiu ao PCB em 1926: "Pode haver o perigo de fazer da revolução um ideal abstrato, longínquo, transcendente, no plano do espírito e, para evitar isso, entrei para o Partido". Essa mesma posição persistiu após a ruptura de Pedrosa e seu grupo com o PCB e se manteve durante toda a existência dessa primeira geração trotskista, cuja principal bandeira era, num primeiro período, "reconduzir" o Partido para sua verdadeira missão e, após o fracasso dessa estratégia, construir um Partido que pudesse realizar as tarefas revolucionárias que os PCs já não cumpriam.
Também não há sonho, e sim um raciocínio "realista" de um intelectual engajado no ideal revolucionário, quando, na penúltima página de "Uma Vida em Seis Tempos", Leôncio Basbaum comenta sua recusa ao convite, em 1968, para reingressar no PCB. Afirma literalmente: "O PCB, como o de vários países, da América e mesmo da Europa, deixara de ser o instrumento adequado para a transformação estrutural do país (....); ele era agora apenas uma melancólica lembrança do passado, uma fase da história, já ultrapassada. A situação presente está exigindo outros métodos, outra ideologia, outra organização (....); os caminhos para a revolução brasileira nos oferecem outras alternativas, sobretudo para quem tem o espírito alerta e formado dialeticamente. O marxismo-leninismo não é uma bíblia". Leôncio abandona sua persistência em insistir pelo Partido apenas quando se convence de que esse já não era um instrumento adequado para a emancipação social do país. Em suas "Cartas ao Comitê Central", sua insistência, aparentemente incompreensível ou supostamente derivada de causas psicológicas, em colaborar com o Partido, combater a mediocridade dos dirigentes e, ao mesmo tempo, ser um instrumento, um "tarefeiro" da burocracia partidária, só encontra explicação se nos remetermos às razões mais profundas que fizeram dessa geração pioneira representante legítima no Brasil do outubro bolchevique.
Ler o livro de Hersch Basbaum sobre seu pai não apenas recupera fragmentos da história da esquerda e da vida de um militante, mas leva-nos, também, a refletir sobre a trajetória de homens como Leôncio Basbaum, intelectuais marginais ao mundo oficial do saber, defensores sem limites de suas idéias e conceitos. Provoca, nas entrelinhas da leitura, temas muito caros que a hegemonia política via satélite da contemporaneidade procura abjurar: a independência intelectual, a ética, o compromisso com o pensamento livre.


José Castilho Marques Neto é professor de filosofia política na Universidade Estadual Paulista (Araraquara) e autor de "Solidão Revolucionária - Mário Pedrosa e as Origens do Trotskismo no Brasil" (Paz & Terra).


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