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Outra história
JOSÉ CASTILHO MARQUES NETO
Resgatar a memória da esquerda no Brasil é, antes de tudo, contribuir para o preenchimento de
imensas lacunas que ainda persistem e que dificultam o entendimento da história política e social
do país. Felizmente, nos últimos
anos, a recuperação dessa "outra
história" começa a ganhar corpo e
temos tido a oportunidade de conhecer não apenas relatos superficiais, mas análises teóricas consistentes somadas a mergulhos
profundos nas estruturas dos partidos.
O livro de Hersch Basbaum
contribui para essa recuperação
ao complementar a consistente e
deliciosa autobiografia de Leôncio Basbaum, "Uma Vida em Seis
Tempos -Memórias" (1976). Ao
dar publicidade a um conjunto de
cartas de Leôncio, a maioria delas
endereçadas aos dirigentes do
Partido Comunista Brasileiro
(PCB) após sua reorganização em
1943, em pleno período do ufanismo stalinista, Hersch desvenda
meandros da estrutura partidária,
do perfil de seu biografado e de
vários dirigentes históricos como
Luís Carlos Prestes, Diógenes de
Arruda Câmara e Maurício Grabois, entre outros. O livro trabalha aspectos diferentes que se entrelaçam no decorrer da leitura: as
difíceis e contraditórias relações
de Leôncio com o Partido; as mudanças políticas do PCB com a
nova geração de dirigentes; a figura do intelectual revolucionário,
característica dos primeiros anos
da esquerda marxista internacional, que buscava em Marx o instrumental teórico para a transformação social. Esses aspectos são
fartamente comentados pelo autor, com opiniões pessoais e também com esclarecimentos históricos.
Mas o que é mais fascinante nas
cartas, especialmente quando lidas neste desacreditado fim de século, é a recuperação do perfil dos
primeiros militantes comunistas
e de suas convicções profundas
quanto à validade das teorias do
velho bolchevismo, principalmente a teoria do partido revolucionário. A derrocada do eufemisticamente chamado "socialismo real", somada à frustrante
convivência com o desvendamento do terror stalinista denunciado em 1956, dificulta hoje a real
compreensão que as primeiras
gerações de revolucionários após
1917 tinham do mundo em que viviam. Herdeiros diretos da revolução bolchevique, convivendo
com marxistas revolucionários
como Lênin, Trótski, Bukhárin,
os primeiros militantes que formaram o pensamento comunista
no Brasil são formados por homens que viram seu sonho se tornar realidade na URSS, considerada, então, a pátria mãe do socialismo.
Parece ao menos discutível que,
como no subtítulo desta obra,
"História Sincera de um Sonhador", e em outras passagens do livro, devamos insistir em caracterizar esses militantes como "sonhadores". Afinal, será sonhador
o militante convencido pela teoria
do partido revolucionário e de sua
necessária unicidade e função dirigente das massas, isto poucos
anos depois do triunfo bolchevique de outubro de 1917? O espectro desse convencimento intelectual é abrangente e foge dos partidos oficiais e fiéis à Moscou. Encontramos as mesmas posições
naqueles que foram considerados
pelos comunistas como "traidores do proletariado", os trotskistas.
Cartas ao Comitê Central - História
Sincera de um Sonhador
Hersch Wladimir Basbaum
Discurso Editorial (Tel. 0/xx/11/814-5383)
212 págs., R$ 20,00
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Um dos fundadores da "oposição de esquerda" no Brasil, Mário
Pedrosa, afirmou em carta ao
amigo Lívio Xavier, quando aderiu ao PCB em 1926: "Pode haver
o perigo de fazer da revolução um
ideal abstrato, longínquo, transcendente, no plano do espírito e,
para evitar isso, entrei para o Partido". Essa mesma posição persistiu após a ruptura de Pedrosa e
seu grupo com o PCB e se manteve durante toda a existência dessa
primeira geração trotskista, cuja
principal bandeira era, num primeiro período, "reconduzir" o
Partido para sua verdadeira missão e, após o fracasso dessa estratégia, construir um Partido que
pudesse realizar as tarefas revolucionárias que os PCs já não cumpriam.
Também não há sonho, e sim
um raciocínio "realista" de um intelectual engajado no ideal revolucionário, quando, na penúltima
página de "Uma Vida em Seis
Tempos", Leôncio Basbaum comenta sua recusa ao convite, em
1968, para reingressar no PCB.
Afirma literalmente: "O PCB, como o de vários países, da América
e mesmo da Europa, deixara de
ser o instrumento adequado para
a transformação estrutural do
país (....); ele era agora apenas
uma melancólica lembrança do
passado, uma fase da história, já
ultrapassada. A situação presente
está exigindo outros métodos, outra ideologia, outra organização
(....); os caminhos para a revolução brasileira nos oferecem outras
alternativas, sobretudo para
quem tem o espírito alerta e formado dialeticamente. O marxismo-leninismo não é uma bíblia".
Leôncio abandona sua persistência em insistir pelo Partido apenas
quando se convence de que esse já
não era um instrumento adequado para a emancipação social do
país. Em suas "Cartas ao Comitê
Central", sua insistência, aparentemente incompreensível ou supostamente derivada de causas
psicológicas, em colaborar com o
Partido, combater a mediocridade dos dirigentes e, ao mesmo
tempo, ser um instrumento, um
"tarefeiro" da burocracia partidária, só encontra explicação se nos
remetermos às razões mais profundas que fizeram dessa geração
pioneira representante legítima
no Brasil do outubro bolchevique.
Ler o livro de Hersch Basbaum
sobre seu pai não apenas recupera
fragmentos da história da esquerda e da vida de um militante, mas
leva-nos, também, a refletir sobre
a trajetória de homens como
Leôncio Basbaum, intelectuais
marginais ao mundo oficial do saber, defensores sem limites de
suas idéias e conceitos. Provoca,
nas entrelinhas da leitura, temas
muito caros que a hegemonia política via satélite da contemporaneidade procura abjurar: a independência intelectual, a ética, o
compromisso com o pensamento
livre.
José Castilho Marques Neto é professor de
filosofia política na Universidade Estadual
Paulista (Araraquara) e autor de "Solidão Revolucionária - Mário Pedrosa e as Origens do
Trotskismo no Brasil" (Paz & Terra).
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