São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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Um vasto hospital

GUITA GRIN DEBERT

Com o objetivo de analisar a gênese dos cuidados estatais com a saúde, "A Era do Saneamento" mostra como as políticas sociais diretamente voltadas para a saúde, nas duas últimas décadas da Primeira República, tiveram um papel essencial no aumento do poder de intervenção e coerção do Estado, redefinindo as relações entre o poder central e as unidades da federação e produzindo um novo tipo de consciência da interdependência social.
O sentimento nacional, os ideais de solidariedade e a definição dos deveres do Estado não são apenas impulsionados por projetos políticos, guerras ou revoluções. A consciência da existência de organismos vivos, invisíveis ao olho humano -os micróbios causadores das doenças infecto-contagiosas- foi uma peça importante na descoberta da comunidade nacional e na construção do Estado-nação.
O micróbio causador de epidemias levou as elites a perceber que tinham perdido a imunidade social. O caráter contagioso da doença impõe a necessidade de uma autoridade capaz de agir sobre todo o território nacional e todos os seus habitantes, restringindo liberdades individuais, alterando direitos de propriedade e violando autonomias políticas. A consciência da transmissibilidade da doença exige a ampliação do poder público, de tal modo que os dilemas entre liberdade individual e proteção da comunidade ou entre autonomia e centralização ganham novos sentidos.
As crenças públicas e as políticas sociais não são o resultado mecânico do mau funcionamento da sociedade, mas supõem, para se constituírem como tal, um intenso trabalho de reconhecimento, promoção e inserção de um problema no campo das preocupações sociais do momento. A transformação da saúde num bem público e a criação de arranjos coletivos capazes de garantir a oferta desse bem não são consequências naturais do aumento do número de doentes ou das doenças que assolam o país.
Às mudanças objetivas, sem as quais um problema social não teria sido colocado, soma-se uma empresa de negociação que legitima a transformação de questões que diziam respeito ao indivíduo, à família ou às ações filantrópicas em deveres e obrigações do Estado. Nessa passagem estão envolvidas novas formas de conceber o mundo, de criar poder público e de classificar e dividir os seres humanos.
O livro, nesse sentido, ultrapassa o interesse dos estudiosos das políticas de saúde e orienta o trabalho sobre outras políticas sociais, especialmente as referentes à educação e à previdência social. Uma pesquisa exaustiva e criteriosa documenta a campanha pelo saneamento rural que, nas décadas de 1910 e 1920, busca convencer as elites políticas de que os sertões estão mais próximos e são mais ameaçadores do que se imaginava. Com uma definição essencialmente política dos sertões, os médicos higienistas redescobrem o Brasil, estabelecendo uma equação entre a ausência do poder público e a onipresença das "doenças que pegam", das chamadas grandes endemias rurais.

A Era do Saneamento - As Bases da Política de Saúde Pública no Brasil
Gilberto Hochman Hucitec (Tel. 0/xx/11/543-0653) 262 págs., R$ 22,00



O movimento sanitarista inova quando considera que o Brasil é um país doente ou, nas palavras de Miguel Pereira, "um vasto hospital". Estamos longe do ufanismo nacionalista que via no sertanejo antes de tudo um forte, mas estamos distantes também da visão pessimista dos determinismos climáticos e raciais para explicar as mazelas do país. Para os sanitaristas não é a natureza, mas o governo o responsável pela população atrasada, doente e improdutiva. O país é "um vasto hospital", mas não é um "imenso hospício", como depois reiterou Pereira na convicção de que as providências adequadas, necessárias e urgentes seriam tomadas para modificar o quadro sanitário do país. Os serviços sanitários foram reformulados e ampliados, o que significou aumentar suas atribuições, restritas até então ao Distrito Federal e à defesa sanitária marítima.
"A Era do Saneamento" coloca em cena inúmeros atores que gravitam em torno da questão sanitária, como os círculos médicos, científicos e profissionais, funcionários dos serviços sanitários e intelectuais em geral. Da leitura do livro saímos encantados com muitas das idéias políticas dos personagens que habitaram a era do saneamento e com os esforços que investiram na construção de uma política de saúde.
Contudo, o esforço de mostrar a complexidade da esfera pública, no período, não leva o autor a cair no romantismo anti-republicano ou na crítica ao populismo que se empenha entusiasticamente em mostrar que as formas políticas que antecederam a revolução burguesa na Europa e o getulismo no Brasil -e que foram abruptamente interrompidas por essas manifestações- eram expressão de uma vida intelectual rica, repleta de práticas políticas populares e movimentos sociais promissores em conquistas capazes de levar a uma sociedade mais justa.
Entender como os problemas advindos da consciência da interdependência humana e suas possíveis soluções são ensaiadas não implica considerar que inexistem interesses em jogo. A estatização e a federalização são uma das alternativas entre outras possíveis, e o desafio do livro é entender o modo específico como se dá o encontro dessa consciência com os interesses das elites políticas locais naquela conjuntura.
Ao apresentar o encontro da consciência com os interesses, nas primeiras décadas deste século, este livro rompe com o senso de familiaridade com que tratamos a pobreza, a destituição humana e as obrigações do Estado e faz um convite irrecusável para pensarmos, mediante uma ótica comparativa, nos desafios contemporâneos.


Guita Grin Debert é professora de antropologia na Universidade de Campinas.


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