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Um vasto hospital
GUITA GRIN DEBERT
Com o objetivo de analisar a gênese dos cuidados estatais
com a saúde, "A Era do Saneamento" mostra como as políticas sociais diretamente voltadas para a saúde, nas duas últimas décadas da Primeira República, tiveram um papel essencial no aumento do poder de intervenção e coerção do
Estado, redefinindo as relações entre o poder central e as
unidades da federação e produzindo um novo tipo de
consciência da interdependência social.
O sentimento nacional, os ideais de solidariedade e a definição dos deveres do Estado não são apenas impulsionados
por projetos políticos, guerras ou revoluções. A consciência da existência de organismos vivos, invisíveis ao olho humano -os micróbios causadores das doenças infecto-contagiosas- foi uma peça importante na descoberta da
comunidade nacional e na construção do Estado-nação.
O micróbio causador de epidemias levou as elites a perceber que tinham perdido a imunidade social. O caráter contagioso da doença impõe a necessidade de uma autoridade
capaz de agir sobre todo o território nacional e todos os
seus habitantes, restringindo liberdades individuais, alterando direitos de propriedade e violando autonomias políticas. A consciência da transmissibilidade da doença exige
a ampliação do poder público, de tal modo que os dilemas
entre liberdade individual e proteção da comunidade ou
entre autonomia e centralização ganham novos sentidos.
As crenças públicas e as políticas sociais não são o resultado mecânico do mau funcionamento da sociedade, mas
supõem, para se constituírem como tal, um intenso trabalho de reconhecimento, promoção e inserção de um problema no campo das preocupações sociais do momento. A
transformação da saúde num bem público e a criação de
arranjos coletivos capazes de garantir a oferta desse bem
não são consequências naturais do aumento do número de
doentes ou das doenças que assolam o país.
Às mudanças objetivas, sem as quais um problema social
não teria sido colocado, soma-se uma empresa de negociação que legitima a transformação de questões que diziam
respeito ao indivíduo, à família ou às ações filantrópicas em
deveres e obrigações do Estado. Nessa passagem estão envolvidas novas formas de conceber o mundo, de criar poder público e de classificar e dividir os seres humanos.
O livro, nesse sentido, ultrapassa o interesse dos estudiosos das políticas de saúde e orienta o trabalho sobre outras
políticas sociais, especialmente as referentes à educação e à
previdência social. Uma pesquisa exaustiva e criteriosa documenta a campanha pelo saneamento rural que, nas décadas de 1910 e 1920, busca convencer as elites políticas de que
os sertões estão mais próximos e são mais ameaçadores do
que se imaginava. Com uma definição essencialmente política dos sertões, os médicos higienistas redescobrem o Brasil, estabelecendo uma equação entre a ausência do poder
público e a onipresença das "doenças que pegam", das chamadas grandes endemias rurais.
A Era do Saneamento - As Bases da Política
de Saúde Pública no Brasil
Gilberto Hochman
Hucitec (Tel. 0/xx/11/543-0653)
262 págs., R$ 22,00
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O movimento sanitarista inova quando considera que o
Brasil é um país doente ou, nas palavras de Miguel Pereira,
"um vasto hospital". Estamos longe do ufanismo nacionalista que via no sertanejo antes de tudo um forte, mas estamos distantes também da visão pessimista dos determinismos climáticos e raciais para explicar as mazelas do país.
Para os sanitaristas não é a natureza, mas o governo o responsável pela população atrasada, doente e improdutiva. O
país é "um vasto hospital", mas não é um "imenso hospício", como depois reiterou Pereira na convicção de que as
providências adequadas, necessárias e urgentes seriam tomadas para modificar o quadro sanitário do país. Os serviços sanitários foram reformulados e ampliados, o que significou aumentar suas atribuições, restritas até então ao
Distrito Federal e à defesa sanitária marítima.
"A Era do Saneamento" coloca em cena inúmeros atores
que gravitam em torno da questão sanitária, como os círculos médicos, científicos e profissionais, funcionários dos
serviços sanitários e intelectuais em geral. Da leitura do livro saímos encantados com muitas das idéias políticas dos
personagens que habitaram a era do saneamento e com os
esforços que investiram na construção de uma política de
saúde.
Contudo, o esforço de mostrar a complexidade da esfera
pública, no período, não leva o autor a cair no romantismo
anti-republicano ou na crítica ao populismo que se empenha entusiasticamente em mostrar que as formas políticas
que antecederam a revolução burguesa na Europa e o getulismo no Brasil -e que foram abruptamente interrompidas por essas manifestações- eram expressão de uma vida
intelectual rica, repleta de práticas políticas populares e
movimentos sociais promissores em conquistas capazes de
levar a uma sociedade mais justa.
Entender como os problemas advindos da consciência da
interdependência humana e suas possíveis soluções são ensaiadas não implica considerar que inexistem interesses
em jogo. A estatização e a federalização são uma das alternativas entre outras possíveis, e o desafio do livro é entender o modo específico como se dá o encontro dessa consciência com os interesses das elites políticas locais naquela
conjuntura.
Ao apresentar o encontro da consciência com os interesses, nas primeiras décadas deste século, este livro rompe
com o senso de familiaridade com que tratamos a pobreza,
a destituição humana e as obrigações do Estado e faz um
convite irrecusável para pensarmos, mediante uma ótica
comparativa, nos desafios contemporâneos.
Guita Grin Debert é professora de antropologia na Universidade de Campinas.
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