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Historiadoras analisam obra de André Rebouças e Luiz Gama
Dois intelectuais emblemáticos
MARCO AURÉLIO NOGUEIRA
Não é de hoje que os pesquisadores constatam que o Brasil do
século 19 se caracterizava por
uma efervescente vida política e
intelectual. Eram poucos os que
pensavam o país e os que conseguiam transitar com independência, imunes ao poder. Os "outsiders" seguiam pelas bordas do
sistema, afrontando-o com língua
ferina e destemor.
Os mais talentosos não esperavam muita coisa da sociedade da
época. Intuíam que estava "estragada" pela escravidão, os séculos
de colonialismo, os obstáculos
geopolíticos que dificultavam a
unidade do povo e a própria articulação das forças sociais. Por isso, muitos esperavam que o Estado -o Imperador- liderasse a
construção do país e a reforma da
vida nacional. Obrigados a assimilar a preeminência do Estado
como alavanca do progresso, radicais e liberais ficavam isolados
das bases sociais em que poderiam fincar suas bandeiras. Nem
todos resistiam.
Do ano passado para cá, dois livros em particular dedicaram-se a
manter vivo esse fascínio do século 19. Comprometidos com programas de trabalho singulares e
distintos entre si, ambos convergem para uma mesma estratégia:
buscam apoio em personagens
fortes, emblemáticos, que caminhavam nos limites do possível,
para desvendar a época, suas características constitutivas, cultura
e chances históricas.
Engenheiro e abolicionista
O primeiro é muito mais do que
um ensaio biográfico sobre essa
extraordinária figura pública, André Rebouças, engenheiro empreendedor, abolicionista radical,
homem fértil de idéias, que no último quarto do século passado
brilhou na cena nacional. É um
estudo sobre três amigos que pensaram o Brasil, bateram-se apaixonadamente por seus projetos e
deslizaram para o ostracismo:
André Rebouças (1838-1898), Alfredo Taunay (1843-1899) e Joaquim Nabuco (1849-1910).
Em suas pesquisas, Maria Alice
Rezende de Carvalho encontrou,
em meio às páginas do "Registro
de Correspondência", de Rebouças, um curioso desenho, datado
de 1891. Trata-se de um triângulo
equilátero, sob cujos vértices estão escritos os nomes e os partidos de Nabuco (liberal), Taunay
(conservador) e do próprio Rebouças, sem qualquer designação
partidária.
Tênues linhas pontilhadas partem de cada um dos ângulos e desenvolvem um movimento de
convergência, sugerindo a figura
de uma pirâmide, encimada por
um discreto "D. Pedro 2º". Uma
descoberta e tanto, sobretudo
porque o desenho aposta num
ideal de equilíbrio, como se as diferenças profundas que separavam aqueles intelectuais fossem,
não um entrave, mas um fator
mesmo de integração, indispensável para se reformar o país. Estudando o diálogo entre os amigos intelectuais, Maria Alice descobre a presença de três particulares projetos de modernização: "o
Rinnovamento, concebido na
chave ideal de uma Inglaterra "espiritualizada", a civilização imperial, inspirada na França napoleônica, a América a que só se chega
pelo Estado".
"O Quinto Século" nos oferece
um imponente painel intelectual
da época e apresenta, em detalhe,
a natureza singular de André Rebouças. Nesse sentido, é um estudo sobre inflexões, crises e decepções. Tanto quanto Nabuco, Rebouças se confundirá e perderá
força ao perceber que sua trajetória pessoal não encontraria mais
chão social para se completar. A
tensão entre seu interesse individual (suas convicções) e os rumos
da realidade social promoverá
tanto um reajuste na sua visão de
futuro quanto um radical afastamento (físico e intelectual) do
país. Irá do abolicionismo antioligárquico e empreendedor para a
letargia política monarquista
após a República, quando finalmente "desiste" do país.
O escravo e o doutor
Já Elciene Azevedo realizou um
movimento algo distinto. Centrou-se num "mito", numa figura
quase épica, legendária na crônica
e mesmo na historiografia dedicada ao período: um negro que, antes da Abolição, havia se transformado em personalidade, em "notável cidadão", em unanimidade
por todos admirada. Em "Orfeu
de Carapinha" a historiadora procura explorar as tensões entre o
homem e o mito para entender a
dinâmica da época. Elciene não se
satisfaz com a exaltação costumeira da figura de Luiz Gama, o
negro abolicionista e republicano
que enfrentou "seu destino de escravo revertendo-o em luta contra a escravidão". Abre-se para a
busca das "dimensões ambíguas e
por vezes contraditórias de sua
atuação", procurando explorar ao
máximo o fato mesmo de um negro ter penetrado com êxito (e de
modo contestador) aquele mundo branco e senhorial.
O Quinto Século: André
Rebouças e a Construção
do Brasil
Maria Alice Rezende de Carvalho
Revan (Tel. 0/xx/21/502-7495)
256 págs., R$ 29,00
Orfeu de Carapinha - A
Trajetória de Luiz Gama
na Imperial Cidade de São
Paulo
Elciene Azevedo
Ed. da Unicamp
(Tel. 0/xx/ 19/788-1098)
280 págs., R$ 14,50
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Luiz Gama se presta como poucos a essa operação. Filho de um
fidalgo português com uma quitandeira africana, nasceu como
homem livre na cidade de Salvador, em 1830. Aos dez anos, foi
vendido como escravo pelo próprio pai e enviado a São Paulo, onde conseguiu a simpatia e proteção de alguns poderosos. Alfabetizou-se, tornou-se funcionário
público, vinculou-se ao republicanismo paulista, arriscou-se como poeta satírico e, acima de tudo, adquiriu na prática todo o conhecimento jurídico necessário
para advogar "gratuitamente em
favor de todas as causas de liberdade", particularmente dos escravos.
Deixou de ser "um pobre negro
esfarrapado e descalço" para se
tornar um "doutor", infiltrando-se pelas brechas do sistema. Mostrando surpreendente habilidade
para estabelecer relações com os
mais diversos setores da sociedade paulistana, irá se revelar um
causídico incansável e vitorioso.
A forma "passiva", isto é, sem
rupturas fortes e sem maior mobilização popular, adquirida pela
longa crise da monarquia, se viabilizou e deu sentido à trajetória
de Luiz Gama, complicou os sonhos "americanistas" de Rebouças e as idéias reformadoras de
Nabuco. Ambos tiveram de aceitar as convenções imperiais, fato
que significará uma derrota para
Rebouças, que não se dava com a
política, mas será visto por Nabuco como a possibilidade mesma
de uma vitória, ensejando sua conhecida opção pelo abolicionismo pragmático.
Após a Abolição, Rebouças e
Nabuco tentaram substituir o dinamismo anterior, deslocando a
luta para horizontes mais largos
(a democracia rural, a reforma social, a federação, a reorganização
política e administrativa do Império). Imaginavam, com isso, proteger a monarquia, aprofundar a
modernização do país e viabilizar
seus projetos pessoais. Não obtiveram êxito algum, como se sabe.
A Abolição seria "fraca", ajudaria
a impulsionar a República e não
se articularia com qualquer outro
movimento reformador, para o
qual, aliás, não existiam nem uma
sociedade civil nem uma cultura
cidadã.
Ambos terminarão os dias angustiados com a "falta" de um
país. Diferentemente da de Nabuco (que morrerá prestando serviços à República que tanto combatera), a inflexão de Rebouças não
foi suave. Conteve uma dimensão
dramática e uma crise existencial:
as derrotas pessoais e a impossibilidade de encontrar um encaixe
na ordem republicana, dadas as
lealdades acumuladas com o imperador, acabarão por ser amplificadas. Seu salto para a morte, de
um penhasco na ilha da Madeira,
por onde andava em exílio voluntário, em maio de 1898, seria emblemático da tragédia pessoal inerente àquela inflexão.
Luiz Gama, por sua vez, morreu
sem ter podido ver quer a natureza e os efeitos da Abolição pela
qual tanto se empenhou, quer a
instalação e o funcionamento real
do regime republicano. Talvez tenha com isso sido poupado de
uma imensa frustração. De qualquer modo, não é despropositado
pensar que, se não tivesse desaparecido tão cedo (em 1882, por
uma crise de diabetes), teria encontrado intactas as condições
objetivas nas quais amarrar a continuidade de suas lutas e de seu
programa político.
De um modo ou de outro, esses
fascinantes intelectuais do século
19 anteciparam muitos dos dilemas nacionais e expuseram a céu
aberto vários dos eixos com os
quais construir, nas específicas
condições dos trópicos de passado colonial, um país moderno,
forte na economia, socialmente
justo e democrático. São, por isso,
atualíssimos.
Marco Aurélio Nogueira é professor de política na Universidade Estadual Paulista
(Unesp).
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