São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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Historiadoras analisam obra de André Rebouças e Luiz Gama
Dois intelectuais emblemáticos

MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

Não é de hoje que os pesquisadores constatam que o Brasil do século 19 se caracterizava por uma efervescente vida política e intelectual. Eram poucos os que pensavam o país e os que conseguiam transitar com independência, imunes ao poder. Os "outsiders" seguiam pelas bordas do sistema, afrontando-o com língua ferina e destemor.
Os mais talentosos não esperavam muita coisa da sociedade da época. Intuíam que estava "estragada" pela escravidão, os séculos de colonialismo, os obstáculos geopolíticos que dificultavam a unidade do povo e a própria articulação das forças sociais. Por isso, muitos esperavam que o Estado -o Imperador- liderasse a construção do país e a reforma da vida nacional. Obrigados a assimilar a preeminência do Estado como alavanca do progresso, radicais e liberais ficavam isolados das bases sociais em que poderiam fincar suas bandeiras. Nem todos resistiam.
Do ano passado para cá, dois livros em particular dedicaram-se a manter vivo esse fascínio do século 19. Comprometidos com programas de trabalho singulares e distintos entre si, ambos convergem para uma mesma estratégia: buscam apoio em personagens fortes, emblemáticos, que caminhavam nos limites do possível, para desvendar a época, suas características constitutivas, cultura e chances históricas.

Engenheiro e abolicionista
O primeiro é muito mais do que um ensaio biográfico sobre essa extraordinária figura pública, André Rebouças, engenheiro empreendedor, abolicionista radical, homem fértil de idéias, que no último quarto do século passado brilhou na cena nacional. É um estudo sobre três amigos que pensaram o Brasil, bateram-se apaixonadamente por seus projetos e deslizaram para o ostracismo: André Rebouças (1838-1898), Alfredo Taunay (1843-1899) e Joaquim Nabuco (1849-1910).
Em suas pesquisas, Maria Alice Rezende de Carvalho encontrou, em meio às páginas do "Registro de Correspondência", de Rebouças, um curioso desenho, datado de 1891. Trata-se de um triângulo equilátero, sob cujos vértices estão escritos os nomes e os partidos de Nabuco (liberal), Taunay (conservador) e do próprio Rebouças, sem qualquer designação partidária.
Tênues linhas pontilhadas partem de cada um dos ângulos e desenvolvem um movimento de convergência, sugerindo a figura de uma pirâmide, encimada por um discreto "D. Pedro 2º". Uma descoberta e tanto, sobretudo porque o desenho aposta num ideal de equilíbrio, como se as diferenças profundas que separavam aqueles intelectuais fossem, não um entrave, mas um fator mesmo de integração, indispensável para se reformar o país. Estudando o diálogo entre os amigos intelectuais, Maria Alice descobre a presença de três particulares projetos de modernização: "o Rinnovamento, concebido na chave ideal de uma Inglaterra "espiritualizada", a civilização imperial, inspirada na França napoleônica, a América a que só se chega pelo Estado".
"O Quinto Século" nos oferece um imponente painel intelectual da época e apresenta, em detalhe, a natureza singular de André Rebouças. Nesse sentido, é um estudo sobre inflexões, crises e decepções. Tanto quanto Nabuco, Rebouças se confundirá e perderá força ao perceber que sua trajetória pessoal não encontraria mais chão social para se completar. A tensão entre seu interesse individual (suas convicções) e os rumos da realidade social promoverá tanto um reajuste na sua visão de futuro quanto um radical afastamento (físico e intelectual) do país. Irá do abolicionismo antioligárquico e empreendedor para a letargia política monarquista após a República, quando finalmente "desiste" do país.

O escravo e o doutor
Já Elciene Azevedo realizou um movimento algo distinto. Centrou-se num "mito", numa figura quase épica, legendária na crônica e mesmo na historiografia dedicada ao período: um negro que, antes da Abolição, havia se transformado em personalidade, em "notável cidadão", em unanimidade por todos admirada. Em "Orfeu de Carapinha" a historiadora procura explorar as tensões entre o homem e o mito para entender a dinâmica da época. Elciene não se satisfaz com a exaltação costumeira da figura de Luiz Gama, o negro abolicionista e republicano que enfrentou "seu destino de escravo revertendo-o em luta contra a escravidão". Abre-se para a busca das "dimensões ambíguas e por vezes contraditórias de sua atuação", procurando explorar ao máximo o fato mesmo de um negro ter penetrado com êxito (e de modo contestador) aquele mundo branco e senhorial.

O Quinto Século: André Rebouças e a Construção do Brasil
Maria Alice Rezende de Carvalho Revan (Tel. 0/xx/21/502-7495) 256 págs., R$ 29,00

Orfeu de Carapinha - A Trajetória de Luiz Gama na Imperial Cidade de São Paulo
Elciene Azevedo Ed. da Unicamp (Tel. 0/xx/ 19/788-1098) 280 págs., R$ 14,50



Luiz Gama se presta como poucos a essa operação. Filho de um fidalgo português com uma quitandeira africana, nasceu como homem livre na cidade de Salvador, em 1830. Aos dez anos, foi vendido como escravo pelo próprio pai e enviado a São Paulo, onde conseguiu a simpatia e proteção de alguns poderosos. Alfabetizou-se, tornou-se funcionário público, vinculou-se ao republicanismo paulista, arriscou-se como poeta satírico e, acima de tudo, adquiriu na prática todo o conhecimento jurídico necessário para advogar "gratuitamente em favor de todas as causas de liberdade", particularmente dos escravos.
Deixou de ser "um pobre negro esfarrapado e descalço" para se tornar um "doutor", infiltrando-se pelas brechas do sistema. Mostrando surpreendente habilidade para estabelecer relações com os mais diversos setores da sociedade paulistana, irá se revelar um causídico incansável e vitorioso.
A forma "passiva", isto é, sem rupturas fortes e sem maior mobilização popular, adquirida pela longa crise da monarquia, se viabilizou e deu sentido à trajetória de Luiz Gama, complicou os sonhos "americanistas" de Rebouças e as idéias reformadoras de Nabuco. Ambos tiveram de aceitar as convenções imperiais, fato que significará uma derrota para Rebouças, que não se dava com a política, mas será visto por Nabuco como a possibilidade mesma de uma vitória, ensejando sua conhecida opção pelo abolicionismo pragmático.
Após a Abolição, Rebouças e Nabuco tentaram substituir o dinamismo anterior, deslocando a luta para horizontes mais largos (a democracia rural, a reforma social, a federação, a reorganização política e administrativa do Império). Imaginavam, com isso, proteger a monarquia, aprofundar a modernização do país e viabilizar seus projetos pessoais. Não obtiveram êxito algum, como se sabe. A Abolição seria "fraca", ajudaria a impulsionar a República e não se articularia com qualquer outro movimento reformador, para o qual, aliás, não existiam nem uma sociedade civil nem uma cultura cidadã.
Ambos terminarão os dias angustiados com a "falta" de um país. Diferentemente da de Nabuco (que morrerá prestando serviços à República que tanto combatera), a inflexão de Rebouças não foi suave. Conteve uma dimensão dramática e uma crise existencial: as derrotas pessoais e a impossibilidade de encontrar um encaixe na ordem republicana, dadas as lealdades acumuladas com o imperador, acabarão por ser amplificadas. Seu salto para a morte, de um penhasco na ilha da Madeira, por onde andava em exílio voluntário, em maio de 1898, seria emblemático da tragédia pessoal inerente àquela inflexão.
Luiz Gama, por sua vez, morreu sem ter podido ver quer a natureza e os efeitos da Abolição pela qual tanto se empenhou, quer a instalação e o funcionamento real do regime republicano. Talvez tenha com isso sido poupado de uma imensa frustração. De qualquer modo, não é despropositado pensar que, se não tivesse desaparecido tão cedo (em 1882, por uma crise de diabetes), teria encontrado intactas as condições objetivas nas quais amarrar a continuidade de suas lutas e de seu programa político.
De um modo ou de outro, esses fascinantes intelectuais do século 19 anteciparam muitos dos dilemas nacionais e expuseram a céu aberto vários dos eixos com os quais construir, nas específicas condições dos trópicos de passado colonial, um país moderno, forte na economia, socialmente justo e democrático. São, por isso, atualíssimos.


Marco Aurélio Nogueira é professor de política na Universidade Estadual Paulista (Unesp).


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