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O alegorista do absurdo
As inquietantes narrativas de Franz Kafka comentadas pelo escritor Sérgio Sant'Anna
SÉRGIO SANT'ANNA
Narrativas do Espólio
(1914-1924)
Franz Kafka
Tradução: Modesto Carone
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/ 3167-0801)
224 págs., R$ 27,00
Diante de textos tão lapidares, qualitativamente admiráveis e absolutamente
singulares que compõem o volume "Narrativas do Espólio", de Franz Kafka, o resenhista se vê diante de um dilema: o que
dizer desses contos que não seja um discurso empobrecedor daqueles outros
que deram origem à sua análise? Talvez
então se possa ser humilde até o limite do
óbvio: a escrita de Kafka é a única possível para descrever seu universo refratário
a interpretações, principalmente as mais
elementares como a de alegorista do absurdo, já que, além de valer-se de uma lógica elevada ao paroxismo, o autor tcheco
foi infinitamente mais do que o criador
de alegorias ou parábolas.
E seria muito impróprio afirmar que
sua literatura simboliza algo que não se
encontra nela mesma. Por isso será preciso citar fragmentos de suas narrativas algumas vezes nesta resenha.
Como o seu cachorro de "Investigações
de um Cão", peça incluída no presente livro, Kafka escreveu para, sem nunca chegar a conclusões, literalmente investigar
os limites da linguagem e do pensamento
humanos. Curiosamente -e ao contrário dos dois outros que compõem com
ele a excelentíssima trindade moderna,
James Joyce e Marcel Proust- valeu-se,
em tal procedimento, de uma simplicidade sintática e semântica e de uma concisão radicais, mas com isso demonstrando que todas as idéias e significados humanos são absolutamente escorregadios,
não dá para confiar em nada. Idéia essa
que pode ser exemplificada em meia frase do princípio de "Advogado de Defesa"
(um mini "O Processo"): "Não era nada
certo que eu tivesse um defensor, a esse
respeito não podia saber coisa alguma
com precisão...".
De fato, nada se pode saber com precisão nas narrativas de Kafka, nem ele sabia, apenas explorava, para ver onde ia
dar, que era simultaneamente em toda
parte e parte alguma, embora tantas vezes usasse, a par do humor e paradoxos,
um tom categórico para descrever o desamparo, a perdição, o labirinto, como
nesse pequeno trecho de "Sobre a Questão das Leis" (outro mini "O Processo"):
"Nossas leis não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo
de nobres que nos domina. Estamos convencidos de que essas velhas leis são observadas com exatidão...".
Não creio estar exagerando ao chamar
Kafka de comediante, e é quase desnecessário dizer que a grande comédia, mais
sofisticada, tem um tom solene, e por isso
mais hilariante. Uma hilaridade contida,
que nos vai tomando internamente. E um
dos contos mais engraçados desse espólio que o amigo de Kafka, Max Brod, salvou do suicídio literário é "O Casal", que
começa simplesmente assim: "A situação
geral dos negócios é tão ruim que, às vezes, quando nos sobra tempo no escritório, pego eu mesmo a pasta de amostras
para visitar pessoalmente os clientes".
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