São Paulo, sábado, 14 de setembro de 2002

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O alegorista do absurdo

As inquietantes narrativas de Franz Kafka comentadas pelo escritor Sérgio Sant'Anna

SÉRGIO SANT'ANNA

Narrativas do Espólio (1914-1924)
Franz Kafka
Tradução: Modesto Carone
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/ 3167-0801)
224 págs., R$ 27,00

Diante de textos tão lapidares, qualitativamente admiráveis e absolutamente singulares que compõem o volume "Narrativas do Espólio", de Franz Kafka, o resenhista se vê diante de um dilema: o que dizer desses contos que não seja um discurso empobrecedor daqueles outros que deram origem à sua análise? Talvez então se possa ser humilde até o limite do óbvio: a escrita de Kafka é a única possível para descrever seu universo refratário a interpretações, principalmente as mais elementares como a de alegorista do absurdo, já que, além de valer-se de uma lógica elevada ao paroxismo, o autor tcheco foi infinitamente mais do que o criador de alegorias ou parábolas.
E seria muito impróprio afirmar que sua literatura simboliza algo que não se encontra nela mesma. Por isso será preciso citar fragmentos de suas narrativas algumas vezes nesta resenha.
Como o seu cachorro de "Investigações de um Cão", peça incluída no presente livro, Kafka escreveu para, sem nunca chegar a conclusões, literalmente investigar os limites da linguagem e do pensamento humanos. Curiosamente -e ao contrário dos dois outros que compõem com ele a excelentíssima trindade moderna, James Joyce e Marcel Proust- valeu-se, em tal procedimento, de uma simplicidade sintática e semântica e de uma concisão radicais, mas com isso demonstrando que todas as idéias e significados humanos são absolutamente escorregadios, não dá para confiar em nada. Idéia essa que pode ser exemplificada em meia frase do princípio de "Advogado de Defesa" (um mini "O Processo"): "Não era nada certo que eu tivesse um defensor, a esse respeito não podia saber coisa alguma com precisão...".
De fato, nada se pode saber com precisão nas narrativas de Kafka, nem ele sabia, apenas explorava, para ver onde ia dar, que era simultaneamente em toda parte e parte alguma, embora tantas vezes usasse, a par do humor e paradoxos, um tom categórico para descrever o desamparo, a perdição, o labirinto, como nesse pequeno trecho de "Sobre a Questão das Leis" (outro mini "O Processo"): "Nossas leis não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres que nos domina. Estamos convencidos de que essas velhas leis são observadas com exatidão...".
Não creio estar exagerando ao chamar Kafka de comediante, e é quase desnecessário dizer que a grande comédia, mais sofisticada, tem um tom solene, e por isso mais hilariante. Uma hilaridade contida, que nos vai tomando internamente. E um dos contos mais engraçados desse espólio que o amigo de Kafka, Max Brod, salvou do suicídio literário é "O Casal", que começa simplesmente assim: "A situação geral dos negócios é tão ruim que, às vezes, quando nos sobra tempo no escritório, pego eu mesmo a pasta de amostras para visitar pessoalmente os clientes".



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