São Paulo, sábado, 14 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O alegorista

E, nessa visita, o personagem-narrador não só tentará vender os seus produtos a um cliente gravemente enfermo em sua casa como o seu discurso comercial se dará no quarto de tal senhor, que chega a morrer, falsamente, e por fim se recolhe ao leito com o filho adulto, também doente. Não fosse uma questão cronológica, alguém mais abusado poderia até dizer que outro grande comediante judeu, Groucho Marx, em algumas de suas falas mais características, apesar de todo os seus excessos, teria sido influenciado por Kafka.
Foi ainda com um particularíssimo senso de humor, e com muita brevidade, que o escritor abordou também os mitos, como Prometeu (que ele acabou por reduzir ao vazio dos rochedos) e Posêidon. Quanto a este, não escapou ao tema da burocracia, tão íntimo de Kafka: "Posêidon estava sentado à sua escrivaninha e fazia contas. A administração de todas as águas dava-lhe um trabalho interminável".
Entre as peças maiores do volume lá está a digressão superlógica, surreal-expressionista, "Durante a Construção da Muralha da China", muralha essa que poderá também servir, desconfia-se, como modelo para as fundações da Torre de Babel. "A muralha que não forma nem mesmo um círculo, mas uma espécie de um quarto ou metade de um círculo, deveria oferecer os alicerces de uma torre? Isso só poderia ser entendido no sentido espiritual."
Do mesmo conto podemos tirar outras amostras para uma lógica divergente, singularíssima, parabólica ao avesso. Quase koans, que podem levar à iluminação, mais para Lao Tse do que para Mao Tse: "Tente com todas as forças entender as determinações do comando, mas até um certo limite, depois pare de pensar"; ou: "Nós, os chineses, possuímos certas instituições populares e estatais de uma clareza sem par, e outras, por seu turno, de uma falta de clareza única".
Entre as 31 histórias do livro, algumas vão integrar o bestiário tão caro a Kafka e, nessa linha, "Investigações de um Cão" talvez seja um dos contos mais perfeitos do autor e um dos seus mais herméticos, a narrativa na primeira pessoa desse cão que procura inutilmente na ciência respostas para as suas inquietações. E, sendo um dos textos que menos se podem reduzir a significados, é um dos que mais contêm significados possíveis, todos os significados, aliás, e há algo de desolada e demasiadamente humano, tragicômico, nesse cachorro solene, parente em primeiro grau do macaco que se transforma em ser humano em "Um Relatório para uma Academia", incluído no livro "Um Médico Rural", também lançado pela Companhia das Letras e com a mesma irretocável tradução de Modesto Carone.
Desconcertante, talvez até em se tratando de Kafka, é o conto "Blumfeld, um Solteirão de Meia-Idade", em que o personagem do título, que reflete sobre as vantagens e desvantagens de vir a possuir um cachorro de estimação, vê seu lar invadido por duas persecutórias bolinhas de celulóide, das quais consegue livrar-se com muita dificuldade para ir trabalhar. Evidentemente, apesar de ser um pecado falar em qualquer simbolismo, há uma evidente conexão, afinidade, entre essas bolinhas invasivas e a vida de solteirão de Blumfeld, seu trabalho de burocrata numa fábrica de peças de roupa, infernizado por dois aprendizes. E o conto termina num perfeito anticlímax, como que desfalece.
Mas deverá esta resenha terminar, se não com uma espécie de clímax, com um destaque, uma referência a um conto, que é um dos episódios da literatura de Kafka em que o aparentemente empedernido autor mais parece baixar a guarda para introduzir algo bem próximo do que se convencionou chamar de sentimentos, emoções. Trata-se de "Um Cruzamento", história em que o personagem-narrador herdou de seu pai um animal de estimação, metade gatinho, metade cordeiro, que, às vezes, farejando e deslizando entre as pernas do seu dono, "quase se quer, ainda por cima, um cachorro". E um dia, indo o protagonista mal nos negócios, sentado, em casa, na cadeira de balanço, o animal no colo, ao baixar a vista, nota que dos pêlos imensos de sua barba gotejam lágrimas. "Eram minhas, eram dele? Será que aquele gato com alma de cordeiro tinha também ambições humanas?"
Há em "Um Cruzamento" uma melancolia, uma pungência que pode ser vista como a própria condição da existência da perspectiva de Kafka, e para a qual nem mesmo um ato de misericórdia se torna possível: "Talvez uma solução para esse animal fosse a faca do açougueiro, mas tenho de recusá-la por ser ele uma herança minha. É necessário, pois, que o alento do animal desapareça espontaneamente, por mais que me fite com sensatos olhos humanos que incitam um ato de sensatez".


Sérgio Sant'Anna é escritor, autor, entre outros livros, de "Um Crime Delicado" (Companhia das Letras).



Texto Anterior: O alegorista do absurdo
Próximo Texto: Dialética e experiência
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.