São Paulo, sábado, 14 de setembro de 2002

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Entre a razão e a fé

A crise da filosofia no século 13

RAUL LANDIM FILHO

Raízes da Modernidade -
Escritos de Filosofia 7
Henrique C. de Lima Vaz
Loyola
(Tel. 0/xx/11/6914-1922)
292 págs., R$ 27,00

Em 23 de maio de 2002 morreu o padre Henrique Vaz, SJ, certamente o mais importante, produtivo e influente filósofo cristão brasileiro. No mesmo dia de sua morte, vinha à luz o que seria o seu último livro, "Raízes da Modernidade". Em agosto de 2001, por ocasião da comemoração dos seus 80 anos, foi reeditado o primeiro livro publicado por H. Vaz nos idos de 60, "Ontologia e História" (agora fazendo parte da coleção "Escritos de Filosofia 6"), uma coletânea de artigos que teve enorme influência sobre uma geração, pois nele se encontram os célebres textos "Marxismo e Ontologia" e "Cristianismo e Consciência Histórica", além de vários outros artigos sobre a ontologia clássica. Apesar da distância no tempo e na história, esses dois livros, publicados originalmente em épocas tão diferentes, atestam, no entanto, a unidade temática da reflexão de H. Vaz.
Essa unidade poderia ser expressa pela questão que, em "Raízes da Modernidade", é formulada da seguinte maneira: "Como fazer conviver Fé e Razão na unidade de uma mesma cultura e na expressão coerente das idéias e convicções de um mesmo espírito?". Questão central para os filósofos medievais, pois no seu solo teórico se entrecruzaram elementos da cultura cristã, vindos da patrística, que se harmonizaram ou se contrapuseram à cultura pagã, oriunda da razão filosófica grega. Dessa confluência de culturas heterogêneas brotou a crise do século 13, que contém as sementes da formação da razão moderna cartesiana e pós-cartesiana.

A razão moderna
"Raízes da Modernidade" é, assim, uma análise histórico-conceitual da gênese da razão moderna. Mas é também uma reconstrução da batalha conceitual travada no século 13 sobre as relações entre saber filosófico e saber teológico. Ao analisar esse confronto, H. Vaz destaca a posição original de Tomás de Aquino: a filosofia tomásica harmoniza de uma maneira coerente discurso filosófico e discurso teológico e sobretudo formula uma metafísica cuja originalidade consiste em deslocar a inteligibilidade última do ente do plano das essências para o plano do ato de existir (ser). O abandono da metafísica do ser, iniciado pela filosofia de Duns Scot, prosseguido pela filosofia nominalista de Ockham e pela metafísica de Suarez, preparou o advento da razão moderna.
Como é sabido, a crise do século 13 teve como principais protagonistas são Boaventura, Tomás de Aquino, Siger de Brabant e o bispo de Paris, Etienne Tempier (responsável pelas célebres condenações de 1270 e de 1277, esta incluindo algumas teses tomásicas). De fato, a crise do século 13 exprime a dificuldade de delimitar do ponto de vista teológico a função do discurso filosófico. Ela manifesta de maneira aguda os conflitos de uma cultura que assimilara e integrara diversas interpretações neoplatônicas à cultura cristã, mas que ainda não conseguira assimilar a metafísica e a filosofia natural aristotélica, que parecia se opor não só ao neoplatonismo, mas também às concepções cristãs.

Saber autônomo
A partir de 1255, a Faculdade de Artes (da Universidade de Paris, que se transformara no principal centro cultural da cristandade) incorporou as obras então conhecidas de Aristóteles ao seu currículo obrigatório. De fato, a Faculdade de Artes se transformara paulatinamente numa autêntica Faculdade de Filosofia. Ora, um dos fatos mais significativos dessa época é que a filosofia passa a ser considerada por alguns professores da Faculdade de Artes como um saber autônomo e supremo quer do ponto de vista da razão teórica, quer do ponto de vista da razão prática. Obviamente os termos do problema da relação entre filosofia e teologia são, então, invertidos: não é mais o saber filosófico, mas é a própria teologia que deve se justificar como saber. A relação entre as razões da fé e as razões filosóficas se torna problemática.
Contra a opinião de alguns dos professores da Faculdade de Artes, eleva-se são Boaventura, que, assumindo nessa questão a concepção de santo Agostinho, subordina a filosofia à teologia e põe em questão a própria autonomia do saber filosófico. S. Tomás participa desse debate diretamente, seja escrevendo um opúsculo "Sobre a Unidade do Intelecto", em que critica a interpretação que Averróis dera à tese aristotélica sobre a unicidade do intelecto possível (tese que fora assumida por Siger de Brabant, professor da Faculdade de Artes), seja escrevendo o opúsculo sobre a "Eternidade do Mundo", em que mostra, contra Boaventura e seu discípulo, Jean Pecham, que o início temporal do mundo (não a sua contingência) é uma tese que só a fé pode sustentar e que não pode ser demonstrada pela razão filosófica.
S.Tomás participa também indiretamente do debate escrevendo vários comentários sobre textos de Aristóteles, pretendendo, dessa maneira, formular uma interpretação correta da filosofia aristotélica. Reconhecendo a autonomia do saber filosófico e harmonizando-o com o saber teológico ("já que Deus é a única fonte das duas ordens de verdade"), s. Tomás assume uma posição original, diferente da de s. Boaventura e da dos mestres da Faculdade de Artes.
Segundo H. Vaz, a originalidade da posição de Tomás de Aquino na crise do século 13 se apóia em sua metafísica do ser, que se inspira, em última instância, numa reflexão sobre a noção bíblica de criação ou mesmo sobre o que foi denominado por E. Gilson como a "Metafísica do Êxodo", metafísica extraída da autodefinição bíblica de Deus: "Eu sou o que Eu sou". Esse parece ser um caso exemplar "da dialética de fé/ razão": a razão, iluminada pela fé, se harmoniza com ela dando-lhe uma maior inteligibilidade e se enriquecendo com os novos problemas trazidos por ela.
Mas como demonstrar, por métodos estritamente racionais, a tese central da metafísica tomásica de que o ser é raiz última de inteligibilidade ou que, segundo as próprias palavras de Tomás, "é o ato de todos os atos, a perfeição de todas as perfeições"?
Prolongando e aprofundando as reflexões de J. Maréchal e conciliando-as com as de E. Gilson, H. Vaz demonstra que é na afirmação do ato judicativo que se efetua o conhecimento do ser. De fato, no ato judicativo (particularmente no juízo existencial) é afirmado que algo é. H. Vaz não justifica em detalhe essa tese de que é no juízo que se conhece o ser. Ela foi um dos temas centrais das disputas neotomistas do século 20; foi intensamente discutida, criticada ou defendida. H. Vaz parece remeter a justificação dessa tese ao seu magistral artigo "Tomás de Aquino: Do Ser ao Absoluto", publicado no livro "Filosofia e Cultura - Escritos de Filosofia 3". No ato judicativo, graças ao princípio lógico-ontológico de contradição, algo é posto como ser. A reflexão metafísica sobre o ato judicativo possibilita o reconhecimento de que o ser é um ato, isto é, é uma perfeição, e que é também razão de conhecimento. O ser é, então, apreendido como ilimitado, o que permitirá o estudo das relações entre o Ser Absoluto e os entes finitos.

O ente finito
H. Vaz analisa, em "Raízes da Modernidade", com invejável erudição, precisão conceitual e limpidez de estilo as noções de Ser Absoluto e de ente finito. Os capítulos dedicados ao estudo do ente finito são magistrais: o problema da criação, da composição real no ente finito de existência (ser) e de essência, o da noção de participação e o da analogia são abordados de uma perspectiva histórico-conceitual: as raízes gregas dessas noções são analisadas, as suas múltiplas interpretações medievais são mencionadas; finalmente é formulado um esclarecimento da questão na perspectiva da filosofia de Tomás de Aquino.
A metafísica do ser tomásica que afirmara a transcendência do Ser Absoluto e a sua imanência no ente finito, conciliando, sob esse aspecto, saber filosófico e saber teológico, começa a ser posta em questão por Duns Scot, que inaugura o que hoje em dia se convencionou chamar de onto-teologia: a hierarquização ascendente de perfeição dos entes coroada pelo ente supremo. A noção de ser, absorvida na noção unívoca de ente, as teses da distinção real entre essência e existência, a noção de participação "vertical" são progressivamente postas de lado, o que prepara o advento da razão moderna, que substitui a metafísica do ser pela metafísica da subjetividade e, em consequência, a noção de Ser Absoluto pela de Sujeito Transcendental.
Mesmo quando retoma a questão suscitada pela metafísica do ser (como tornar inteligível a existência, ou melhor, como equacionar razão e existência?), o que Descartes, por exemplo, com o "cogito" tentara fazer, a filosofia moderna, imanentizando o saber, rompe com a harmonia entre as razões da fé e a razão filosófica. Ela se torna assim a mais contundente crítica da razão medieval, pois confina o saber nos limites estritos da razão.
Em "Raízes da Modernidade", Henrique Vaz nos sugere que uma reflexão sobre a metafísica do ser tomásica poderia ajudar o filósofo, em especial o filósofo cristão, a romper com o impasse em que a razão moderna o colocou.


Raul Landim Filho é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Evidência e Verdade no Sistema Cartesiano" (Loyola).



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