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Entre a razão e a fé
A crise da filosofia no século 13
RAUL LANDIM FILHO
Raízes da Modernidade -
Escritos de Filosofia 7
Henrique C. de Lima Vaz
Loyola
(Tel. 0/xx/11/6914-1922)
292 págs., R$ 27,00
Em 23 de maio de 2002 morreu
o padre Henrique Vaz, SJ, certamente o mais importante, produtivo e influente filósofo cristão
brasileiro. No mesmo dia de sua
morte, vinha à luz o que seria o
seu último livro, "Raízes da Modernidade". Em agosto de 2001,
por ocasião da comemoração dos
seus 80 anos, foi reeditado o primeiro livro publicado por H. Vaz
nos idos de 60, "Ontologia e História" (agora fazendo parte da coleção "Escritos de Filosofia 6"),
uma coletânea de artigos que teve
enorme influência sobre uma geração, pois nele se encontram os
célebres textos "Marxismo e Ontologia" e "Cristianismo e Consciência Histórica", além de vários
outros artigos sobre a ontologia
clássica. Apesar da distância no
tempo e na história, esses dois livros, publicados originalmente
em épocas tão diferentes, atestam,
no entanto, a unidade temática da
reflexão de H. Vaz.
Essa unidade poderia ser expressa pela questão que, em "Raízes da Modernidade", é formulada da seguinte maneira: "Como
fazer conviver Fé e Razão na unidade de uma mesma cultura e na
expressão coerente das idéias e
convicções de um mesmo espírito?". Questão central para os filósofos medievais, pois no seu solo
teórico se entrecruzaram elementos da cultura cristã, vindos da patrística, que se harmonizaram ou
se contrapuseram à cultura pagã,
oriunda da razão filosófica grega.
Dessa confluência de culturas heterogêneas brotou a crise do século 13, que contém as sementes da
formação da razão moderna cartesiana e pós-cartesiana.
A razão moderna
"Raízes da Modernidade" é, assim, uma análise histórico-conceitual da gênese da razão moderna. Mas é também uma reconstrução da batalha conceitual travada no século 13 sobre as relações entre saber filosófico e saber
teológico. Ao analisar esse confronto, H. Vaz destaca a posição
original de Tomás de Aquino: a filosofia tomásica harmoniza de
uma maneira coerente discurso
filosófico e discurso teológico e
sobretudo formula uma metafísica cuja originalidade consiste em
deslocar a inteligibilidade última
do ente do plano das essências para o plano do ato de existir (ser). O
abandono da metafísica do ser,
iniciado pela filosofia de Duns
Scot, prosseguido pela filosofia
nominalista de Ockham e pela
metafísica de Suarez, preparou o
advento da razão moderna.
Como é sabido, a crise do século
13 teve como principais protagonistas são Boaventura, Tomás de
Aquino, Siger de Brabant e o bispo de Paris, Etienne Tempier (responsável pelas célebres condenações de 1270 e de 1277, esta incluindo algumas teses tomásicas).
De fato, a crise do século 13 exprime a dificuldade de delimitar do
ponto de vista teológico a função
do discurso filosófico. Ela manifesta de maneira aguda os conflitos de uma cultura que assimilara
e integrara diversas interpretações neoplatônicas à cultura cristã, mas que ainda não conseguira
assimilar a metafísica e a filosofia
natural aristotélica, que parecia se
opor não só ao neoplatonismo,
mas também às concepções cristãs.
Saber autônomo
A partir de 1255, a Faculdade de
Artes (da Universidade de Paris,
que se transformara no principal
centro cultural da cristandade)
incorporou as obras então conhecidas de Aristóteles ao seu currículo obrigatório. De fato, a Faculdade de Artes se transformara
paulatinamente numa autêntica
Faculdade de Filosofia. Ora, um
dos fatos mais significativos dessa
época é que a filosofia passa a ser
considerada por alguns professores da Faculdade de Artes como
um saber autônomo e supremo
quer do ponto de vista da razão
teórica, quer do ponto de vista da
razão prática. Obviamente os termos do problema da relação entre
filosofia e teologia são, então, invertidos: não é mais o saber filosófico, mas é a própria teologia
que deve se justificar como saber.
A relação entre as razões da fé e as
razões filosóficas se torna problemática.
Contra a opinião de alguns dos
professores da Faculdade de Artes, eleva-se são Boaventura, que,
assumindo nessa questão a concepção de santo Agostinho, subordina a filosofia à teologia e põe
em questão a própria autonomia
do saber filosófico. S. Tomás participa desse debate diretamente,
seja escrevendo um opúsculo
"Sobre a Unidade do Intelecto",
em que critica a interpretação que
Averróis dera à tese aristotélica
sobre a unicidade do intelecto
possível (tese que fora assumida
por Siger de Brabant, professor da
Faculdade de Artes), seja escrevendo o opúsculo sobre a "Eternidade do Mundo", em que mostra,
contra Boaventura e seu discípulo, Jean Pecham, que o início temporal do mundo (não a sua contingência) é uma tese que só a fé
pode sustentar e que não pode ser
demonstrada pela razão filosófica.
S.Tomás participa também indiretamente do debate escrevendo vários comentários sobre textos de Aristóteles, pretendendo,
dessa maneira, formular uma interpretação correta da filosofia
aristotélica. Reconhecendo a autonomia do saber filosófico e harmonizando-o com o saber teológico ("já que Deus é a única fonte
das duas ordens de verdade"), s.
Tomás assume uma posição original, diferente da de s. Boaventura e da dos mestres da Faculdade
de Artes.
Segundo H. Vaz, a originalidade
da posição de Tomás de Aquino
na crise do século 13 se apóia em
sua metafísica do ser, que se inspira, em última instância, numa reflexão sobre a noção bíblica de
criação ou mesmo sobre o que foi
denominado por E. Gilson como
a "Metafísica do Êxodo", metafísica extraída da autodefinição bíblica de Deus: "Eu sou o que Eu
sou". Esse parece ser um caso
exemplar "da dialética de fé/ razão": a razão, iluminada pela fé, se
harmoniza com ela dando-lhe
uma maior inteligibilidade e se
enriquecendo com os novos problemas trazidos por ela.
Mas como demonstrar, por métodos estritamente racionais, a tese central da metafísica tomásica
de que o ser é raiz última de inteligibilidade ou que, segundo as
próprias palavras de Tomás, "é o
ato de todos os atos, a perfeição de
todas as perfeições"?
Prolongando e aprofundando
as reflexões de J. Maréchal e conciliando-as com as de E. Gilson,
H. Vaz demonstra que é na afirmação do ato judicativo que se
efetua o conhecimento do ser. De
fato, no ato judicativo (particularmente no juízo existencial) é afirmado que algo é. H. Vaz não justifica em detalhe essa tese de que é
no juízo que se conhece o ser. Ela
foi um dos temas centrais das disputas neotomistas do século 20;
foi intensamente discutida, criticada ou defendida. H. Vaz parece
remeter a justificação dessa tese
ao seu magistral artigo "Tomás de
Aquino: Do Ser ao Absoluto", publicado no livro "Filosofia e Cultura - Escritos de Filosofia 3". No
ato judicativo, graças ao princípio
lógico-ontológico de contradição,
algo é posto como ser. A reflexão
metafísica sobre o ato judicativo
possibilita o reconhecimento de
que o ser é um ato, isto é, é uma
perfeição, e que é também razão
de conhecimento. O ser é, então,
apreendido como ilimitado, o que
permitirá o estudo das relações
entre o Ser Absoluto e os entes finitos.
O ente finito
H. Vaz analisa, em "Raízes da
Modernidade", com invejável
erudição, precisão conceitual e
limpidez de estilo as noções de Ser
Absoluto e de ente finito. Os capítulos dedicados ao estudo do ente
finito são magistrais: o problema
da criação, da composição real no
ente finito de existência (ser) e de
essência, o da noção de participação e o da analogia são abordados
de uma perspectiva histórico-conceitual: as raízes gregas dessas
noções são analisadas, as suas
múltiplas interpretações medievais são mencionadas; finalmente
é formulado um esclarecimento
da questão na perspectiva da filosofia de Tomás de Aquino.
A metafísica do ser tomásica
que afirmara a transcendência do
Ser Absoluto e a sua imanência no
ente finito, conciliando, sob esse
aspecto, saber filosófico e saber
teológico, começa a ser posta em
questão por Duns Scot, que inaugura o que hoje em dia se convencionou chamar de onto-teologia:
a hierarquização ascendente de
perfeição dos entes coroada pelo
ente supremo. A noção de ser, absorvida na noção unívoca de ente,
as teses da distinção real entre essência e existência, a noção de
participação "vertical" são progressivamente postas de lado, o
que prepara o advento da razão
moderna, que substitui a metafísica do ser pela metafísica da subjetividade e, em consequência, a
noção de Ser Absoluto pela de Sujeito Transcendental.
Mesmo quando retoma a questão suscitada pela metafísica do
ser (como tornar inteligível a existência, ou melhor, como equacionar razão e existência?), o que
Descartes, por exemplo, com o
"cogito" tentara fazer, a filosofia
moderna, imanentizando o saber,
rompe com a harmonia entre as
razões da fé e a razão filosófica.
Ela se torna assim a mais contundente crítica da razão medieval,
pois confina o saber nos limites
estritos da razão.
Em "Raízes da Modernidade",
Henrique Vaz nos sugere que
uma reflexão sobre a metafísica
do ser tomásica poderia ajudar o
filósofo, em especial o filósofo
cristão, a romper com o impasse
em que a razão moderna o colocou.
Raul Landim Filho é professor titular de
filosofia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro e autor de "Evidência e Verdade no Sistema Cartesiano" (Loyola).
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