São Paulo, sábado, 14 de setembro de 2002

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Gol de placa

As crônicas do tricolor Nelson Rodrigues e do vascaíno Carlos Drummond de Andrade

MILTON MEIRA DO NASCIMENTO

O Profeta Tricolor - Cem Anos de Fluminense
Nelson Rodrigues
Companhia das Letras (0/xx/11/3167-0801)
240 págs., R$ 32,00

Quando É Dia de Futebol
Carlos Drummond de Andrade
Record (0/xx/21/2585-2000)
272 págs., R$ 30,00

 Futebol se joga no estádio?/ Futebol se joga na praia,/ futebol se joga na rua,/ futebol se joga na alma./ A bola é a mesma: forma sacra/ para craques e pernas-de-pau./ Mesma a volúpia de chutar/ na delirante copa-mundo/ ou no árido espaço do morro./ São vôos de estátuas súbitas,/ desenhos feéricos, bailados/ de pés e troncos entrançados./ Instantes lúdicos: flutua/ o jogador, gravado no ar/ -afinal, o corpo triunfante/ da triste lei da gravidade. (Drummond, "Poesia Errante").

Este é o tom de "Quando É Dia de Futebol", com crônicas em prosa e verso, capaz de deixar ligado qualquer torcedor, não muito fanático, como o próprio Drummond, ou fanático como Nelson Rodrigues, que não quer perder nenhum lance da partida ou das arquibancadas ou prefere viajar na imaginação quando seu time perde, mas ele não acredita no que está vendo, porque vê outra coisa. Por isso mesmo, passemos aqui por algumas exortações do "Sermão da Planície". "Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram a entender de futebol, pois deles é o reino da tranquilidade." "Bem-aventurados os que não são cronistas esportivos, pois não carecem de explicar o inexplicável e racionalizar a loucura." "Bem-aventurados os que, depois de escutar este sermão, aplicarem todo o ardor infantil no peito maduro para desejar a vitória do selecionado brasileiro nesta e em todas as futuras Copas do Mundo, como faz o velho sermoneiro desencantado, mas torcedor assim mesmo, pois para o diabo vá a razão quando o futebol invade o coração."
É este o Drummond que chega ao futebol como quem não quisesse nada. Vascaíno comedido, para não ter muitas decepções e que, assim mesmo, imortaliza o futebol em seus versos e prosas e em versiprosas e percebe o seu sentido profundo na alma dos brasileiros. "Dir-se-á que o esporte visa precisamente a suavizar instintos primitivos; sim, mas às vezes vai mais longe e regressa ao primitivismo, com escalas pelo nacionalismo zangado. Os sofrimentos, irritações e depressões que provoca estão longe de ser imaginários, e perturbam nosso já perturbado viver. Somos campeões do mundo, é verdade, mas isso não nos deve torturar mais do que, por exemplo, as misérias do subdesenvolvimento."
Durante e após a Copa de 70, era evidente o uso político da conquista da seleção, e Drummond não deixa passar em branco. E enumera, numa de suas crônicas, os slogans que apareceriam na campanha eleitoral. "Vote na Arena, que conquistou a Taça Jules Rimet para você." "O rei é Pelé, mas o deputado é Mário Nazaré." "Quer o quarto Campeonato? Eleja Raimundo Nonato." Ao citar essas passagens, tenho vontade de não parar mais e continuar contando o que vi, isto é, o que li. Devo lembrar que "Quando É Dia de Futebol" tem prefácio do Edson Arantes, com agradecimento ao poeta pelas crônicas sobre o Pelé. Mas ao Mané ficou a glória de um diamante: "Se há um deus que regula o futebol, esse deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios".
Só as lorpas e os pascácios não percebem que Drummond, como quem não queria nada, foi certamente um dois maiores cronistas de futebol do Brasil sem nunca ter sido. É preciso urgentemente enxergar isso, porque em matéria de futebol "o pior cego é o que só vê a bola", como dizia o nosso maior torcedor de todos os tempos, Nelson Rodrigues, aquele que sempre foi tricolor: "Eu diria que já era Fluminense em vidas passadas, antes, muito antes da presente encarnação".

Profecia de torcedor
No ano do centenário do tricolor das Laranjeiras, a profecia do torcedor fanático vai-se concretizando: "O Fluminense nasceu com a vocação da eternidade. Tudo pode passar, só o tricolor não passará, jamais". Os tormentos dos últimos anos também já estavam previstos pelo profeta. Quando, recentemente, chegou à terceira divisão, em 1998, o Sobrenatural de Almeida e outros espíritos de porco já começavam a dizer que não haveria festa do centenário, porque o time iria acabar antes. Que nada, de campeão da terceirona passou a disputar os primeiros lugares até o ano do centenário, no qual ficará com a taça, erguida por Romário. Quem diz isso é o profeta, que fique bem claro.
As crônicas do Nelson Rodrigues sobre o clube pó-de-arroz carioca são verdadeiras odes aos torcedores, encarnados nesse personagem que não deixou de escrever nem quando estava à beira da morte, após a vitória do seu time sobre o Vasco da Gama, no final de 1980, episódio narrado por Nelson Rodrigues Filho e que fecha essa edição, verdadeiro gol de placa, que bem merecia estar registrado na entrada do Maracanã. Certamente torcedores de outras agremiações vão se irritar, porque o maior cronista de futebol só escreve sobre um time. Mas é isso mesmo: ao imortalizar o tricolor, Nelson imortalizou o futebol e os torcedores que, nas vitórias, "sobem pelas paredes como lagartixas profissionais". Só vêem o que querem, contra tudo e contra todos. Não admitem nenhuma objetividade nem mesmo a do videoteipe, que "é burro".
Essa crônica foi feita após um jogo entre o Fluminense e o Vasco, no qual houve uma pancadaria danada. "Amigos, sempre digo que o videoteipe é burro. Mas, por isso mesmo, vale como a testemunha ideal. Não sei se vocês me entendem. Eis o que eu queria dizer: -uma testemunha, para ser válida, não pode ter imaginação nenhuma. E a burrice do teipe, com a sua chata veracidade, vira qualidade e das mais estimáveis". "Eu estava lá e vi tudo; uma enorme multidão também viu. O diabo é o seguinte: -olho humano tem defeito grave. É inteligente. E mais -há o que eu chamaria de fantasia individual. O homem não vê nada sem lhe acrescentar um retoque qualquer. O conflito de ontem. Cada qual tem a respeito uma imagem pessoal, inalienável e clubística. Pirandello diria: -"A verdade de cada um"." E em dia de Fla-Flu, nem se fala. "Amigos, eis a cidade cálida de Fla-Flu. O sol do clássico total ilumina e, eu quase dizia, incendeia as esquinas e os botecos. É o assunto obrigatório dos berros e dos cochichos. Nos velórios, enquanto os vivos dão palpites sobre o jogo, o defunto amarra a cara, porque não vai domingo ao Maracanã. Tem-se como certo que este Fla-Flu será o maior de todos os tempos."
E o estádio veio abaixo. Aplausos e mais aplausos. Gritos, rojões e, no céu, dois arco-íris, um para o poeta e outro para o dramaturgo, no ano do penta e do centenário do clube que "nasceu com vocação da eternidade".


Milton Meira do Nascimento é professor de filosofia política na USP.



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