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Enigmas da civilização
MARCOS FLAMÍNIO PERES
Gonçalves Dias na Amazônia
Josué Montello (org.)
Academia Brasileira de Letras (Tel. 0/xx/21/2524-8230).
206 págs., preço não-definido.
"Gonçalves Dias na Amazônia" reúne relatórios e apontamentos do poeta maranhense (1823-1864) que permitem iluminar facetas praticamente ignoradas de sua obra -a do educador e a do etnógrafo. Coletânea de textos destinados
prioritariamente a uso prático -como o levantamento do estado da educação ou das potencialidades econômicas da região mais remota do império-, o livro fornece indícios para
compreender o projeto civilizatório da então jovem nação e,
ao mesmo tempo, suas contradições.
No primeiro dos textos, quando escreve como "visitador
das escolas do Solimões", chega a parecer quase inacreditável,
hoje, que o mais aclamado poeta brasileiro da época tenha se
disposto a subir o rio em um paquete a vapor e a entrar mata
adentro com o único objetivo de avaliar a situação da instrução primária nas comunidades ribeirinhas e mais entranhadas -e sem ter aceito a gratificação a que tinha direito.
Membro ativo do Instituto Histórico e Geográfico, Gonçalves Dias partilhava do projeto mais amplo, empreendido pelo
Segundo Império, de consolidar o jovem país, pois, se o estatuto de Estado independente já fora reconhecido no exterior,
restava a imensa tarefa de incorporar à "civilização" os rincões mais afastados. Porém, mais do que implantar valores ou
uma ética, civilizar adquiria um significado urgente e concreto, que era o de expandir e firmar o português como língua
corrente, e, para isso, a educação exercia papel estratégico.
Essa não era uma atividade nova para o poeta, que, nomeado por dom Pedro 2º, já havia percorrido, entre 1854 e 1858,
Portugal, Bélgica, França e Alemanha com o objetivo de realizar um estudo comparativo entre seus sistemas educacionais,
buscando tirar proveito do que pudesse ser aplicado aqui.
De volta ao Brasil e já tendo presenciado então o que havia
de mais avançado sobre o tema à época, Gonçalves Dias lamenta, em seu relatório de 1861, o estado de abandono da instrução primária pelas freguesias por onde passa. Mas, em
uma mostra de independência que o caracterizou por toda a
vida, ele irá atribuir esse fracasso, por vias indiretas, à incapacidade do tal projeto civilizatório de partir de bases reais.
Assim, criticando a falta de alunos na freguesia de Coari, o
poeta isenta parcialmente o professor responsável, pois
"ocorre que, sendo já tão mal remunerados os professores
primários, quando se lhes não façam seus pagamentos em
dia, não se poderá com justiça exigir deles muita pontualidade e exatidão". Atribui o fracasso também ao "hábito e gosto
da vida errante, que é o mal da população indígena do Amazonas", sempre em busca da pesca abundante. Em uma frase
em que demonstra percepção aguda das limitações que as
contingências socioeconômicas impunham ao projeto civilizatório, ele diagnostica que "a canoa, sim, essa é sua verdadeira propriedade; móvel, como ela, o índio continua o seu viver
instável".
Já o "Relatório de Produtos Naturais e Industriais", também
de 1861, é fruto do trabalho de uma comissão designada pelo
governo imperial para recolher e catalogar objetos da região
amazônica, com vista a expô-los nas Províncias.
É de destacar o relatório do primeiro-tenente Rufino Luís
Tavares, a quem foi atribuída a descrição das "madeiras e
acessórios de navegação". Já então, quando a ecologia era
uma questão ainda não formulada, Tavares criticava o método de extração de madeira, "o pior possível": "Cortam um
pau para dele se tirar duas falcas (...). Em uma palavra, o machado destruidor e a incúria a nada respeitam".
Um aspecto importante e perceptível em certas passagens
do relatório do poeta, que respondia pela seção de etnografia,
é a transição abrupta do registro científico para o poético,
quando descreve, entre os objetos que coligiu, um cetro de
plumas: "Foram precisos três séculos para que a lança colossal dos velhos e antigos tuxauas se convertesse em uma haste
emplumada e sem préstimo. O chefe [..." era o que tinha direito de caminhar dianteiro na guerra, hoje é o corifeu das damas selvagens".
O livro conclui com o "Diário da Viagem ao Rio Negro",
transcrito por Lúcia Miguel Pereira e publicado pela primeira
vez como anexo a seu "A Vida de Gonçalves Dias", de 1943.
A bela edição de "Gonçalves Dias na Amazônia" teria muito
a ganhar se trouxesse um pequeno e precioso documento, a
carta datada de 20/12/1861 dirigida ao amigo Antônio
Henriques Leal. Embora a "Introdução", a cargo de Josué
Montello, traga pequenos trechos, o documento, também escrito quando da viagem ao Norte do país, irá se revelar central
para esclarecer a tensão entre o belo e sublime na obra do poeta mais complexo do romantismo brasileiro.
Marcos Flamínio Peres é editor-adjunto do Mais!.
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