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A fúria de Camões
PAULO FRANCHETTI
Sete Contos de Fúria
Antonio Vieira
Globo (Tel. 0/xx/11/3767-7889)
177 págs., R$ 23,00
O título deste livro pode levar a engano
sobre o que há nele. É que os conteúdos
afetivos não aparecem ali em estado bruto. A racionalidade não parece prestes a
ceder a um impulso que não pode suportar; nem a superfície da linguagem parece
agitada por alguma intuição terrível. Pelo
contrário, a razão é soberana ao longo do
volume. O trabalho de escrita exibe cuidado construtivo e busca voluntariamente um registro anti-realista, que força às
vezes a chave alegórica. Nas personagens
tampouco há traços comuns de constituição associados à paixão que dá nome ao
conjunto. E mesmo as epígrafes que
abrem o volume e cada um dos contos
sugerem uma escrita da espécie da glosa,
isto é, do desenvolvimento exemplar de
uma frase ou idéia alheia.
A fúria que denomina estas histórias é
de outra ordem. Os contos são vaticínios,
e a referência, num autor português, é explícita: a fúria que Camões pedia para si,
"grande e sonorosa", contraposta à
"frauta ruda" e à "agreste avena". O épico, aliás, é uma denominação que dá conta de importantes características deste livro, quais sejam a elevação da linguagem
e o anseio de universalidade dos temas.
Nesse sentido, adaptando as recusas camonianas, sua narrativa pode ser vista
como um contraponto seja à "agreste
avena" da narrativa centrada nas vicissitudes amorosas ou na apresentação de
uma irredutível individualidade; seja à
flauta rude do neo-realismo, que tem
vendido bem em sua versão suburbana
de testemunho da monstruosidade social.
Neste livro quase não há "interioridades". Tudo é amplamente iluminado, como é próprio da épica, e cada pormenor
remete ao universo dos grandes textos e
temas da tradição ocidental. E os nomes
estranhos, as paisagens exóticas e minimalistas, as situações mais que improváveis combinam-se, numa linguagem ostensivamente trabalhada, para "desrealizar" as cenas e enredos. É certo que a presença de monstros e deuses materializam
o tema do poder desmesurado e da
opressão. Mas como não há, por princípio, representação realista da vida social,
o foco de interesse é a percepção dos intertextos, alusões e símbolos.
A leitura do volume não é, por isso
mesmo, pacífica. As histórias têm um desenvolvimento arrastado, que as faz parecer mais longas do que são. Também é
perturbadora a unidade da linguagem e o
princípio compositivo, que é a repetição,
em variações cumulativas, de uma imagem ou conceito básico. Qualquer que seja o narrador e a situação narrativa, as
frases são sempre cadenciadas (às vezes
em metro regular), a adjetivação é saturada e as comparações e as metáforas descritivas, abundantes.
Do ponto de vista temático, os contos
são ensaios sobre o divino. Melhor dizendo, sobre formas de ocupação, na geografia mental, do lugar reservado à divindade. Esse lugar, subitamente vazio, indignamente preenchido ou em transformação, é o fio que os une. No primeiro deles,
um cientista judeu descobre, por meio de
um supertelescópio, a sombra do cadáver
de Deus, morto ao criar o Universo. No
último, o falo decepado e indestrutível de
Osíris é descoberto no deserto e, após a
tentativa frustrada de um grupo de iniciados, que tenta recompor a integridade
do deus, desaparece nas águas do Nilo. O
nome do primeiro conto é "O Grande Luto". O do último, "A Restituição". Entre
esses dois extremos, estendem-se as modulações do tema da perda e da impossibilidade de substituição do bem perdido.
Na maior parte das histórias, o paganismo fornece a base dos nomes e dos enredos. Delas, a melhor me parece ser "Eôs",
uma versão da fábula grega. Como se sabe, apaixonada pelo jovem, a deusa Aurora obteve de Zeus a imortalidade do
amante, Títonos, esquecendo-se, porém,
de lhe garantir a eterna juventude. Com o
passar do tempo, Títonos reduziu-se a
uma forma encarquilhada e repulsiva,
terminando por metamorfosear-se em
cigarra. Na versão de Vieira, o cenário é
meloso, quase uma recriação olímpica de
Hollywood. O que a redime é a destruição
da verossimilhança.
Exemplos: Eôs negocia com Zeus pelo
telefone (um aparelho modelo belle époque, aliás) o destino de Títonos; este passa suas horas de tédio contemplando fotografias com uma lupa; Zeus, que no
conto se chama Suze, é um inescrupuloso
industrial do ramo das armas de longo alcance; Eôs, em paga do veneno que livrará Títonos da vida eterna, se oferece a Suze como prostituta de luxo, servida por
uma limusine. As quebras de expectativa
não resultam, porém, numa adaptação
modernizadora do mito grego, pois as
tensões produzidas pelos anacronismos
violentos permanecem irresolvidas. Afirma-se assim um intuito de paródia cruel,
que contamina a leitura e justifica o registro algo piegas.
Nos melhores momentos, este livro exibe o brilho intenso de uma ironia refinada e corrosiva. Nos piores, a impotência
da amargura vertida em simbologia mais
ou menos evidente. O tom geral talvez
pudesse ser resumido no título da primeira história, "O Grande Luto". Mas o
desenho do volume, que termina na história do falo de Osíris, bem como o esgar
de riso que se insinua em episódios como
o dos amores de Eôs, mostram que a paixão que preside ao conjunto é um luto específico e mórbido: a melancolia. É dela
que nasce o furor enunciado no título: o
furor frio, lógico e estático, que dá força e
justifica tanto a opacidade da linguagem
ornada e alegórica, que flerta com o
"kitsch", quanto as quebras de verossimilhança, que inviabilizam a leitura realista
ou a ingenuidade reverencial.
Com vários pontos altos, os "Sete Contos de Fúria", entretanto, formam um
conjunto desigual. Se alguns são ótimos,
como "Eôs", outros são apenas razoáveis,
como "Vida e Morte de Argos", que glosa, num enredo plano, o velho tema da
relação homem-poder-máquina num futuro indeterminado. Nesse caso, a ausência de paródia faz com que as características da escrita do autor revertam em saturação simples, gerando desinteresse.
Em suma, este livro de Antonio Vieira
tem um duplo apelo e se move numa zona furta-cor. Se o leitor se aperceber da
natureza da fúria específica que o organiza e atentar para a sua permanente atuação em todos os níveis textuais, não deixará escapar o que há de novo e vivo no
conjunto das histórias. Caso contrário, só
lhe restará recusar a leitura ou então sucumbir à sedução do alegorismo mais ou
menos fácil, que interpela diretamente
uma "natureza humana" sem tempo
nem espaço.
Paulo Franchetti é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas.
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