São Paulo, sábado, 14 de setembro de 2002

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Retrato do crítico jovem

Formação do crítico literário Antonio Candido

SERGIO MICELI

Textos de Intervenção
Antonio Candido Vinicius Dantas (org.)
Bibliografia de Antonio Candido
Vinicius Dantas
Duas Cidades/Editora 34
(Tel. 0/xx/ 11/3816-6777)
272 págs. (vol. 1), 392 págs. (vol. 2)
R$ 54,00 (caixa com os dois volumes)

Sugiro que se leiam os textos desta coletânea em sequência cronológica, buscando um apanhado das atividades de Antonio Candido em cada conjuntura de vida e trabalho. O intuito é deslindar com nitidez os contornos de sua munição crítica ao longo dos anos 40 e 50, momento decisivo de formação do crítico literário, para cujo entendimento os trabalhos agora coligidos trazem subsídios provocativos. Esse recorte se justifica ainda pelo fato de quase 60% dos textos se enquadrarem nessa etapa probatória.
Antonio Candido tinha 24 anos ao iniciar seu rodapé literário na paulistana "Folha da Manhã", em janeiro de 1943. Havia concluído o curso de ciências sociais no ano anterior, pela Universidade de São Paulo, quando se tornou primeiro assistente na cadeira de sociologia 2, a convite do titular Fernando de Azevedo. Naquele ano de 1942, a morte do pai, médico, apressou o jovem bacharel a tomar uma decisão que o tirou em definitivo do que parecia até então indeterminado: abandona o quinto e último ano da Faculdade de Direito. Nesse passo, ele fizera o primeiro descarte importante, desistira da carreira liberal tradicional em favor das incertezas de uma aventura intelectual.
Já em 1945, apesar de não ter ganhado o concurso para a cadeira de literatura brasileira, a aprovação lhe garantiu o título de livre-docente com a tese "Introdução ao Método Crítico de Sílvio Romero", publicada no mesmo ano; somente em 1954 defenderia o doutorado em sociologia com a tese "Os Parceiros do Rio Bonito", que demorou dez anos para sair em livro. A partir de 1958, a opção definitiva pela literatura levou-o a aceitar o posto de professor de literatura brasileira na Faculdade de Assis, no interior do Estado.
Esse vaivém de compromissos demarca os problemas de fundo com que teve de lidar nessa fase definidora de seu trabalho intelectual, dividido entre a sociologia e a literatura, sentindo-se preso às obrigações de sua posição docente sem querer prejudicar a visibilidade no campo literário. Ressalto as atribulações desses anos de formação, como que pulsando em surdina na trama textual, porque estão entranhadas nos artigos ora divulgados. Essa dupla lealdade intelectual e disciplinar aflora amiúde no teor substantivo de sua produção como crítico literário na imprensa. Até o feitio assumidamente sociológico de sua atitude, ou então as invectivas de indignação política contra as elites nativas, são traços reveladores dos dilemas com os quais devia estar se havendo.

Mutações do ideário crítico
Ao convidar o leitor a essa volta no tempo, queria focalizar a unicidade de pontos de vista, reconhecível desde o início, para que apreendêssemos as mutações de fundo assumidas por Candido, quer em relação à interpretação da obra literária, tão evidente, por exemplo, nos registros cambiantes por que vão passando as noções de contexto e mimese, quer no tocante à adoção, em sua prática como crítico militante, de critérios extra-literários de todo cabíveis. Para tanto, a marca temporal garante um engate firme, tanto dos ligamentos quanto das descontinuidades entre postura conceitual e prática analítica.
Assim, poder-se-ia entender os textos teóricos à luz das análises de poesia do mesmo período, incluídas no bloco seguinte, o que deixaria o leitor convencido de uma ligação orgânica entre doutrina e exegese. Contudo, o caminho certeiro seria testar tal coerência por meio das resenhas de obras de ficção, ausentes aqui, tendo sido reunidas pelo autor em "Brigada Ligeira", seu livro de estréia em 1945. Ainda que as notações sobre poesia possam sinalizar maior aderência aos fundamentos de sua postura crítica, as apreciações entusiastas dos romancistas brasileiros da época -Clarice Lispector, Ciro dos Anjos, José Lins do Rego, Jorge Amado e Érico Veríssimo, em especial os dois últimos- mobilizam parâmetros não enunciados no paradigma norteador.
Nesses casos, o crítico se mostra receptivo às circunstâncias mutantes do mercado editorial, em pleno estouro da literatura de ficção, às exigências de uma camada emergente de leitores, antenado às condições prevalecentes naquela etapa expansiva do sistema literário. Até mesmo a preferência de Candido em recolher as resenhas sobre ficção brasileira contemporânea, inclusive de autores que eram os carros-chefes em termos de vendas, demonstra a sensibilidade aguçada do jovem crítico para as tendências dominantes do período. Tais incursões eram temperadas por uma persistente pontuação política de esquerda, num aceno explícito de conversa com o ideário desses escritores.
Em meio ao balanço do primeiro ano de crítica, Candido procura esclarecer sua concepção da obra literária, a ênfase no condicionamento em desfavor da "essência", para retomar o linguajar da época: "Descobrir aquilo que condiciona é explicar a razão e a natureza do fenômeno da duração artística". Portanto, ao reiterar que o condicionante social e histórico, longe de ser a moldura da literatura, constitui "a própria substância da sua realidade artística", ele estaria tomando posição diante de um estado da vida cultural no qual a literatura desempenhava um papel de protagonista. Mesmo que nada disso se aplique ao presente, persistem os riscos de anacronismo quando se tenta ajuizar certos fundamentos desatando-os do viveiro circundante, daí a vantagem do lembrete genético.
Ao estrear como crítico regular no "Diário de S. Paulo", em setembro de 1945, Candido virou de ponta-cabeça sua acepção de contexto e, por conseguinte, o modo de enxergar a majestade da obra literária, isto é, "a magnífica especificidade graças à qual toda obra de valor é literária antes de ser sociológica ou política ou interessada ou desinteressada". Oito anos depois, já docente de literatura, ele se mostra mais inclinado a burilar os parâmetros da apreciação literária, num esforço de amoldá-los à variedade da experiência humana. Decerto adotou tal viés no sentido de reagir à extremada politização do debate literário naquele momento.

O contexto e a obra
As duas versões da análise em torno do romance "O Cortiço", de Aluísio Azevedo, textos fortes desta coletânea, propiciam um equacionamento inspirado das mediações entre o contexto e a obra, ensaio geral do que serão os estudos esplêndidos de Candido no futuro. Já se pode detectar aí o rendimento de algumas idéias-chave do paradigma interpretativo da maturidade. Em lugar dos riscos reducionistas de privilegiar qualquer dos termos -contexto e obra- , Candido nomeia alguns processos pelos quais o elemento social se transfigura em "fator de condição da estrutura", fazendo incidir o nervo da análise sobre a forma "como verdadeira manifestação do social na obra".
O artigo "Euclides da Cunha, Sociólogo" (1947) oferece indicações palpáveis dessa tensão criativa de Candido, a essa altura ainda hesitante entre fazer sociologia ou crítica literária. O texto inteiro se arma como se o ensaísta quisesse pôr à prova o grau de acerto sociológico de "Os Sertões", ora tentando averiguar a presença de conceitos e influências no esquema explicativo de Euclides, ora cobrando o fato de ele não atender aos padrões então vigentes de rigor científico por estar ancorado em vertentes teóricas superadas. Não obstante, e a despeito das bobeadas de Euclides como sociólogo, Candido procura resgatar a interpretação euclidiana pela criatividade excepcional e pelos lampejos visionários.
Aliás, não deve ter sido fácil essa reconversão do manancial sociológico recém-absorvido em estofo de uma crítica literária inovadora. Sem falar na ginástica para se livrar da terminologia cientificista, adquirida na década e meia de convívio com os mestres estrangeiros. Conforme sugerem as alterações de percurso no plano disciplinar e as mutações no arcabouço do trabalho crítico, tenho a impressão de que, pelo menos até meados dos anos 50, a que corresponde, salvo engano, à defesa do doutorado em sociologia (1954), Candido continuou indeciso sobre que rumo tomar.
A leitura de "Os Parceiros do Rio Bonito" comprova o investimento considerável despendido pelo autor na feitura do trabalho: período espichado de um trabalho de campo no capricho; montagem de uma argumentação bem urdida, original e um bocado dissonante do culturalismo raso dos estudos de comunidade em voga, fazendo confluir águas de muitas nascentes; narrativa primorosa, em cujo ritmo maneiro se mesclam à perfeição componentes descritivos e inflexões interpretativas. Talvez o jovem Candido não tivesse mudado de rota se a recepção ao trabalho tivesse sido um pouco menos reticente por parte dos colegas e contemporâneos. Pelo que consta, ele próprio teria ficado inseguro quanto aos avanços obtidos.
Além de haver postergado a publicação da tese até 1964, Candido modificou os termos com que havia justificado o objeto e os resultados da monografia, talvez no intuito de torná-la mais compatível com o seu itinerário de crítico literário. Todavia, o segundo momento dessa virada disciplinar e intelectual prende-se ao projeto do que viria a ser a obra "Formação da Literatura Brasileira". Candido vislumbrou nessa encomenda do editor Martins a oportunidade rara que lhe permitiria aplicar a bagagem de um enfoque sócio-político a materiais literários, derivando desse embate uma leitura vigorosa do arcadismo e do romantismo em termos de sua contribuição, na linguagem, no repertório de idéias, na expressividade, para a construção da nacionalidade.
Era um adeus em grande estilo à sociologia, agora de certo modo deglutida em outra paragem, e o marco inaugural de um estilo inédito de exercer o ofício de crítico e historiador da literatura. Ainda que não quisesse continuar sociólogo, o Candido, homem feito, deve ter-se dado conta de que não era mais possível assumir a nova identidade intelectual e profissional sem romper com a pasmaceira da chamada crítica imanente.

Reminiscências
Outra série marcante na coletânea abrange os relatos memorialísticos, mistura saborosa de autobiografia encabulada, depoimento e documento de época, os quais me lembraram de imediato o tom afetuoso e cortante de "Teresina", um "capolavoro" do autor. O retrato cubista de Fernando de Azevedo, a começar pela troça hierárquica do título, "Doutor Fernando" (1994), faz justiça à grandeza de sua atuação como liderança educacional, em contraste com a acanhada estatura intelectual, dando a ver como se ia constituindo na prática a experiência acadêmica, os entreveros entre catedrático e assistentes, as reações corajosas à intromissão política na universidade, num relato que vai se compondo por adendos à maneira de um mexe-mexe.
"Duas Heroínas" (1984) homenageia ex-escravas que conheceu quando menino na cidade mineira de Cássia: são figuras voluntariosas, que expressam as energias represadas de um povo sofrido e castigado, capazes de peitar as piores vicissitudes para levarem a cabo seus projetos -a construção de uma igreja e o revide por uma desfeita, na contramão dos interesses dominantes. Dito assim, de enfiada, perde-se muito da verve dos causos, do cantabile jeitoso com que encadeia incidentes triviais, história, emoções embargadas, cumplicidade, lenda e tirada moral. "Adoniran Barbosa" (1975), codinome de João Rubinato, é uma evocação de São Paulo entre as guerras, da metrópole erguida pelos imigrantes, na qual o ensaísta pontua os ingredientes populares que nutrem a língua ítalo-brasileira dessa paulistana "antivoz rouca".
Vinicius Dantas, o organizador de ambos os volumes, merece nota dez pelos acertos do projeto e pela excelência do trabalho crítico empreendido. Os critérios de seleção e organização dos textos revelam domínio do assunto; as apresentações se destacam pela medida certa de opinião e discernimento político; o aparato crítico pode ser ilustrado por notas de rodapé primorosas, juntando evidências pertinentes, a ponta do iceberg de uma cuidadosa pesquisa de fontes. Mas seu melhor contributo é fazer ler e matutar a respeito da obra e da trajetória intelectual do mestre de todos nós, em especial daqueles do contra, que nele têm buscado inspiração para identificar causas pelas quais valha a pena ser a favor.


Sergio Miceli é professor titular de sociologia na USP e autor, entre outros livros, de "Intelectuais à Brasileira" (Companhia das Letras).



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