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Retrato do crítico jovem
Formação do crítico literário Antonio Candido
SERGIO MICELI
Textos de Intervenção
Antonio Candido
Vinicius Dantas (org.)
Bibliografia de Antonio
Candido
Vinicius Dantas
Duas Cidades/Editora 34
(Tel. 0/xx/ 11/3816-6777)
272 págs. (vol. 1), 392 págs. (vol. 2)
R$ 54,00 (caixa com os dois volumes)
Sugiro que se leiam os textos desta coletânea em sequência cronológica, buscando um apanhado das atividades de
Antonio Candido em cada conjuntura
de vida e trabalho. O intuito é deslindar
com nitidez os contornos de sua munição crítica ao longo dos anos 40 e 50, momento decisivo de formação do crítico
literário, para cujo entendimento os trabalhos agora coligidos trazem subsídios
provocativos. Esse recorte se justifica
ainda pelo fato de quase 60% dos textos
se enquadrarem nessa etapa probatória.
Antonio Candido tinha 24 anos ao iniciar seu rodapé literário na paulistana
"Folha da Manhã", em janeiro de 1943.
Havia concluído o curso de ciências sociais no ano anterior, pela Universidade
de São Paulo, quando se tornou primeiro assistente na cadeira de sociologia 2, a
convite do titular Fernando de Azevedo.
Naquele ano de 1942, a morte do pai,
médico, apressou o jovem bacharel a tomar uma decisão que o tirou em definitivo do que parecia até então indeterminado: abandona o quinto e último ano
da Faculdade de Direito. Nesse passo, ele
fizera o primeiro descarte importante,
desistira da carreira liberal tradicional
em favor das incertezas de uma aventura
intelectual.
Já em 1945, apesar de não ter ganhado
o concurso para a cadeira de literatura
brasileira, a aprovação lhe garantiu o título de livre-docente com a tese "Introdução ao Método Crítico de Sílvio Romero", publicada no mesmo ano; somente em 1954 defenderia o doutorado
em sociologia com a tese "Os Parceiros
do Rio Bonito", que demorou dez anos
para sair em livro. A partir de 1958, a opção definitiva pela literatura levou-o a
aceitar o posto de professor de literatura
brasileira na Faculdade de Assis, no interior do Estado.
Esse vaivém de compromissos demarca os problemas de fundo com que teve
de lidar nessa fase definidora de seu trabalho intelectual, dividido entre a sociologia e a literatura, sentindo-se preso às
obrigações de sua posição docente sem
querer prejudicar a visibilidade no campo literário. Ressalto as atribulações desses anos de formação, como que pulsando em surdina na trama textual, porque
estão entranhadas nos artigos ora divulgados. Essa dupla lealdade intelectual e
disciplinar aflora amiúde no teor substantivo de sua produção como crítico literário na imprensa. Até o feitio assumidamente sociológico de sua atitude, ou
então as invectivas de indignação política contra as elites nativas, são traços reveladores dos dilemas com os quais devia estar se havendo.
Mutações do ideário crítico
Ao convidar o leitor a essa volta no
tempo, queria focalizar a unicidade de
pontos de vista, reconhecível desde o início, para que apreendêssemos as mutações de fundo assumidas por Candido,
quer em relação à interpretação da obra
literária, tão evidente, por exemplo, nos
registros cambiantes por que vão passando as noções de contexto e mimese,
quer no tocante à adoção, em sua prática
como crítico militante, de critérios extra-literários de todo cabíveis. Para tanto, a marca temporal garante um engate
firme, tanto dos ligamentos quanto das
descontinuidades entre postura conceitual e prática analítica.
Assim, poder-se-ia entender os textos
teóricos à luz das análises de poesia do
mesmo período, incluídas no bloco seguinte, o que deixaria o leitor convencido de uma ligação orgânica entre doutrina e exegese. Contudo, o caminho certeiro seria testar tal coerência por meio das
resenhas de obras de ficção, ausentes
aqui, tendo sido reunidas pelo autor em
"Brigada Ligeira", seu livro de estréia em
1945. Ainda que as notações sobre poesia
possam sinalizar maior aderência aos
fundamentos de sua postura crítica, as
apreciações entusiastas dos romancistas
brasileiros da época -Clarice Lispector,
Ciro dos Anjos, José Lins do Rego, Jorge
Amado e Érico Veríssimo, em especial
os dois últimos- mobilizam parâmetros não enunciados no paradigma norteador.
Nesses casos, o crítico se mostra receptivo às circunstâncias mutantes do mercado editorial, em pleno estouro da literatura de ficção, às exigências de uma camada emergente de leitores, antenado às
condições prevalecentes naquela etapa
expansiva do sistema literário. Até mesmo a preferência de Candido em recolher as resenhas sobre ficção brasileira
contemporânea, inclusive de autores
que eram os carros-chefes em termos de
vendas, demonstra a sensibilidade aguçada do jovem crítico para as tendências
dominantes do período. Tais incursões
eram temperadas por uma persistente
pontuação política de esquerda, num
aceno explícito de conversa com o ideário desses escritores.
Em meio ao balanço do primeiro ano
de crítica, Candido procura esclarecer
sua concepção da obra literária, a ênfase
no condicionamento em desfavor da
"essência", para retomar o linguajar da
época: "Descobrir aquilo que condiciona é explicar a razão e a natureza do fenômeno da duração artística". Portanto,
ao reiterar que o condicionante social e
histórico, longe de ser a moldura da literatura, constitui "a própria substância
da sua realidade artística", ele estaria tomando posição diante de um estado da
vida cultural no qual a literatura desempenhava um papel de protagonista. Mesmo que nada disso se aplique ao presente, persistem os riscos de anacronismo
quando se tenta ajuizar certos fundamentos desatando-os do viveiro circundante, daí a vantagem do lembrete genético.
Ao estrear como crítico regular no
"Diário de S. Paulo", em setembro de
1945, Candido virou de ponta-cabeça
sua acepção de contexto e, por conseguinte, o modo de enxergar a majestade
da obra literária, isto é, "a magnífica especificidade graças à qual toda obra de valor é literária antes de ser sociológica
ou política ou interessada ou desinteressada". Oito anos depois, já docente de literatura, ele se mostra mais inclinado a
burilar os parâmetros da apreciação literária, num esforço de amoldá-los à variedade da experiência humana. Decerto
adotou tal viés no sentido de reagir à extremada politização do debate literário
naquele momento.
O contexto e a obra
As duas versões da análise em torno
do romance "O Cortiço", de Aluísio Azevedo, textos fortes desta coletânea, propiciam um equacionamento inspirado
das mediações entre o contexto e a obra,
ensaio geral do que serão os estudos esplêndidos de Candido no futuro. Já se
pode detectar aí o rendimento de algumas idéias-chave do paradigma interpretativo da maturidade. Em lugar dos
riscos reducionistas de privilegiar qualquer dos termos -contexto e obra- ,
Candido nomeia alguns processos pelos
quais o elemento social se transfigura
em "fator de condição da estrutura", fazendo incidir o nervo da análise sobre a
forma "como verdadeira manifestação
do social na obra".
O artigo "Euclides da Cunha, Sociólogo" (1947) oferece indicações palpáveis
dessa tensão criativa de Candido, a essa
altura ainda hesitante entre fazer sociologia ou crítica literária. O texto inteiro
se arma como se o ensaísta quisesse pôr
à prova o grau de acerto sociológico de
"Os Sertões", ora tentando averiguar a
presença de conceitos e influências no
esquema explicativo de Euclides, ora cobrando o fato de ele não atender aos padrões então vigentes de rigor científico
por estar ancorado em vertentes teóricas
superadas. Não obstante, e a despeito
das bobeadas de Euclides como sociólogo, Candido procura resgatar a interpretação euclidiana pela criatividade excepcional e pelos lampejos visionários.
Aliás, não deve ter sido fácil essa reconversão do manancial sociológico recém-absorvido em estofo de uma crítica
literária inovadora. Sem falar na ginástica para se livrar da terminologia cientificista, adquirida na década e meia de convívio com os mestres estrangeiros. Conforme sugerem as alterações de percurso
no plano disciplinar e as mutações no arcabouço do trabalho crítico, tenho a impressão de que, pelo menos até meados
dos anos 50, a que corresponde, salvo
engano, à defesa do doutorado em sociologia (1954), Candido continuou indeciso sobre que rumo tomar.
A leitura de "Os Parceiros do Rio Bonito" comprova o investimento considerável despendido pelo autor na feitura do
trabalho: período espichado de um trabalho de campo no capricho; montagem
de uma argumentação bem urdida, original e um bocado dissonante do culturalismo raso dos estudos de comunidade em voga, fazendo confluir águas de
muitas nascentes; narrativa primorosa,
em cujo ritmo maneiro se mesclam à
perfeição componentes descritivos e inflexões interpretativas. Talvez o jovem
Candido não tivesse mudado de rota se a
recepção ao trabalho tivesse sido um
pouco menos reticente por parte dos colegas e contemporâneos. Pelo que consta, ele próprio teria ficado inseguro
quanto aos avanços obtidos.
Além de haver postergado a publicação da tese até 1964, Candido modificou
os termos com que havia justificado o
objeto e os resultados da monografia,
talvez no intuito de torná-la mais compatível com o seu itinerário de crítico literário. Todavia, o segundo momento
dessa virada disciplinar e intelectual
prende-se ao projeto do que viria a ser a
obra "Formação da Literatura Brasileira". Candido vislumbrou nessa encomenda do editor Martins a oportunidade rara que lhe permitiria aplicar a bagagem de um enfoque sócio-político a materiais literários, derivando desse embate uma leitura vigorosa do arcadismo e
do romantismo em termos de sua contribuição, na linguagem, no repertório
de idéias, na expressividade, para a construção da nacionalidade.
Era um adeus em grande estilo à sociologia, agora de certo modo deglutida em
outra paragem, e o marco inaugural de
um estilo inédito de exercer o ofício de
crítico e historiador da literatura. Ainda
que não quisesse continuar sociólogo, o
Candido, homem feito, deve ter-se dado
conta de que não era mais possível assumir a nova identidade intelectual e profissional sem romper com a pasmaceira
da chamada crítica imanente.
Reminiscências
Outra série marcante na coletânea
abrange os relatos memorialísticos, mistura saborosa de autobiografia encabulada, depoimento e documento de época, os quais me lembraram de imediato o
tom afetuoso e cortante de "Teresina",
um "capolavoro" do autor. O retrato cubista de Fernando de Azevedo, a começar pela troça hierárquica do título,
"Doutor Fernando" (1994), faz justiça à
grandeza de sua atuação como liderança
educacional, em contraste com a acanhada estatura intelectual, dando a ver
como se ia constituindo na prática a experiência acadêmica, os entreveros entre
catedrático e assistentes, as reações corajosas à intromissão política na universidade, num relato que vai se compondo
por adendos à maneira de um mexe-mexe.
"Duas Heroínas" (1984) homenageia
ex-escravas que conheceu quando menino na cidade mineira de Cássia: são figuras voluntariosas, que expressam as
energias represadas de um povo sofrido
e castigado, capazes de peitar as piores
vicissitudes para levarem a cabo seus
projetos -a construção de uma igreja e
o revide por uma desfeita, na contramão
dos interesses dominantes. Dito assim,
de enfiada, perde-se muito da verve dos
causos, do cantabile jeitoso com que encadeia incidentes triviais, história, emoções embargadas, cumplicidade, lenda e
tirada moral. "Adoniran Barbosa"
(1975), codinome de João Rubinato, é
uma evocação de São Paulo entre as
guerras, da metrópole erguida pelos imigrantes, na qual o ensaísta pontua os ingredientes populares que nutrem a língua ítalo-brasileira dessa paulistana "antivoz rouca".
Vinicius Dantas, o organizador de ambos os volumes, merece nota dez pelos
acertos do projeto e pela excelência do
trabalho crítico empreendido. Os critérios de seleção e organização dos textos
revelam domínio do assunto; as apresentações se destacam pela medida certa
de opinião e discernimento político; o
aparato crítico pode ser ilustrado por
notas de rodapé primorosas, juntando
evidências pertinentes, a ponta do iceberg de uma cuidadosa pesquisa de fontes. Mas seu melhor contributo é fazer
ler e matutar a respeito da obra e da trajetória intelectual do mestre de todos
nós, em especial daqueles do contra, que
nele têm buscado inspiração para identificar causas pelas quais valha a pena ser a favor.
Sergio Miceli é professor titular de sociologia na
USP e autor, entre outros livros, de "Intelectuais à
Brasileira" (Companhia das Letras).
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