São Paulo, sábado, 14 de novembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Política habitacional e arquitetura

ABÍLIO GUERRA

"Construir habitações econômicas é fazer, ao mesmo tempo e necessariamente, urbanismo."

O segundo turno da recente eleição para governador de São Paulo teve como duelistas dois candidatos antípodas. A história política, o trato da coisa pública, a ética (ou falta dela), o comprometimento com a democracia, os valores em geral, enfim, tudo indica uma diferença absoluta entre Covas e Maluf, o que até explica o surpreendente apoio de correntes políticas adversárias ao vencedor.
Infelizmente, as políticas habitacionais implementadas por ambos, à frente dos governos do Estado e da Prefeitura Municipal, igualam-se nos erros crassos e na carência de qualidades elementares. Os conjuntos habitacionais de interesse social construídos pela Prefeitura (Cingapura) e pelo Estado (CDHU) estão em total sintonia com o marketing político imperante no Brasil desde a eleição de Collor à Presidência, em que slogans e logotipos substituem o discurso político articulado e passam ao largo de qualidades ambientais e urbanísticas, também elas de responsabilidade do poder constituído.
É a partir desse quadro que apresentamos a epígrafe do artigo para reflexão. A frase pode ser encontrada, com pequenas variações, em escritos de diversos arquitetos modernos europeus da primeira metade deste século. O advento da grande metrópole e da sociedade de massas mudou de maneira irreversível a escala dos problemas urbanos. Contra o aparente caos do crescimento desordenado, foram propostos sucedâneos diversos pelos mestres do movimento moderno, sendo consensual a constatação que parte substancial dos problemas urbanos se relacionava às péssimas condições habitacionais a que estava submetida a quase totalidade da classe trabalhadora. Solucionar o problema habitacional, nesse sentido, seria fazer "necessariamente" urbanismo.
Nossa epígrafe, contudo, não é de autoria de Walter Gropius, Le Corbusier, Hannes Meyer ou outro arquiteto ilustre. Ela está registrada em um documento burocrático do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (Iapi), datado de 1940. Quem a garimpou e reproduziu foi o arquiteto Nabil Bonduki, autor de significativo levantamento e reflexão sobre a conformação da questão habitacional no interior de nossos órgãos públicos após a Revolução de 30. A sintonia entre o Relatório do Iapi e o pensamento urbanístico moderno europeu, segundo o autor, aponta para um corpo técnico muito bem preparado, cuja atuação, não fossem as contradições estruturais do Governo Vargas, poderia ter redundado em uma política habitacional mais coesa e duradoura.
Os IAP constituíram-se como um dos mais importantes braços da política varguista de cooptação da classe trabalhadora. Organizado por categorias acabaram atuando também na área habitacional, um claro desvio de seus objetivos originais. Essa atuação nunca chegou de fato a ganhar a dimensão necessária para equacionar o problema habitacional da população em geral, pois tinha uma abrangência restrita ao atender apenas os trabalhadores sindicalizados, uma distorção autoritária do Estado de Bem-Estar Social que não foi sanada nem mesmo após a democratização do pós-guerra.
Se a quantidade e, fundamentalmente, a falta de continuidade e especificidade eram aspectos problemáticos, a política habitacional dos IAP alcançou uma qualidade inédita, abrigando em seus quadros excelentes arquitetos e um corpo técnico sofisticado, aberto à experimentação e à inovação. O autor faz questão de apontar o quanto a historiografia brasileira se esqueceu desses arquitetos, entre os quais brilharam, por exemplo, Carlos Frederico Ferreira e Attílio Corrêa Lima.

A OBRA
Origens da Habitação Social no Brasil Nabil Bonduki Estação Liberdade/Fapesp (Tel. 011/38240020) 344 págs., R$ 30,00



O urbanismo habitacional de extrato moderno colocado em prática pelos IAP, baseado em grandes conjuntos habitacionais para locação e equipamentos coletivos anexos, contradiziam a ideologia do Estado Novo, que concebia a família como célula básica da nação e antídoto natural para a promiscuidade moral e agitação política. A casa própria isolada era mais condizente com o populismo de Vargas, afinal a propriedade particular amorteceria o fulgor revolucionário em voga no mundo. Essa ambiguidade, segundo o autor, é derivada de um conjunto de fatores distintos, entre eles a política de investimentos dos IAP, que enxergava nos conjuntos uma maneira de valorizar o patrimônio e obter recursos com os aluguéis. Neste aspecto, é sintomático que as explicações oficiais destaquem o aspecto financeiro em detrimento das inovações do morar inerentes aos conjuntos modernos. Não é de se estranhar que, na mudança para o modelo habitacional pós-64 (casinhas e conjuntos do BNH), estas novidades tenham sido abandonadas sem maiores problemas.
As qualidades do livro de Bonduki são imensas. Do ponto de vista estrito da historiografia da arquitetura, ao escavar essa temática inovadora, deixa à vista ricos veios a serem explorados por pesquisas complementares. Em uma visada mais abrangente, o livro relaciona âmbitos diversos da habitação social -sua dimensão humana e coletiva, suas implicações no processo de urbanização de nossas cidades, a importância do fomento e controle estatais, sua relevância como tema para a arquitetura e urbanismo etc. O autor nos desafia à não aceitação passiva -como cidadãos e como arquitetos- do embuste que nos tem sido impingido pelos governantes nas últimas décadas. Esta relação entre a reflexão crítica e a atuação política é característica do próprio autor, ele mesmo um antigo pesquisador acadêmico do problema habitacional e ex-membro de equipe técnica da Secretaria da Habitação da Prefeitura de São Paulo.
Na leitura que propomos aqui, estranhamos a recusa de Bonduki em tratar das transformações radicais sofridas através dos tempos pelos conjuntos construídos pelos IAPs. "Por razões que não vêm ao caso desenvolver, a maior parte das propostas mais originais destes conjuntos estudados foram sendo gradativamente desativadas, desmontadas, destruídas." Pensamos que a clara compreensão dessas razões são essenciais para uma reconciliação crítica com esse passado. Vale lembrar que os grandes conjuntos modernos também se deterioraram mesmo nos países mais ricos. As imensas barras modernistas construídas na França e na Alemanha Oriental no segundo pós-guerra passam hoje por intenso processo de remodelagem que propõe, muitas vezes em simultâneo, a construção de equipamentos coletivos inexistentes (completando o projeto moderno inconcluso), o estabelecimento de vínculos com a rua e com a cidade tradicional (contrariando princípios do urbanismo modernista) e a "derrubada" de partes dos edifícios para se obter condomínios mais administráveis (negando um modo de vida coletivo mais radical).
Esse "ponto cego" nem de longe invalida a grande contribuição deste livro: a de se colocar como ponto de partida para um debate não apenas entre acadêmicos especialistas, mas também entre arquitetos, urbanistas, políticos e -por que não?- cidadãos comuns, em busca de uma solução concreta para a habitação social. Tal perspectiva nos leva a subscrever a palavra de ordem de Nabil Bonduki: "A recusa em pesquisar, analisar e incluir estas obras, que tem predominado na historiografia oficial da arquitetura moderna brasileira, contribuiu para reforçar o divórcio entre arquitetura e habitação social que predominou a partir de 1964. Resgatar esta memória é fundamental".


Abílio Guerra é professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e editor da revista "Oculum".



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.