São Paulo, sábado, 14 de novembro de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice Política habitacional e arquitetura
ABÍLIO GUERRA
O urbanismo habitacional de extrato moderno colocado em prática pelos IAP, baseado em grandes conjuntos habitacionais para locação e equipamentos coletivos anexos, contradiziam a ideologia do Estado Novo, que concebia a família como célula básica da nação e antídoto natural para a promiscuidade moral e agitação política. A casa própria isolada era mais condizente com o populismo de Vargas, afinal a propriedade particular amorteceria o fulgor revolucionário em voga no mundo. Essa ambiguidade, segundo o autor, é derivada de um conjunto de fatores distintos, entre eles a política de investimentos dos IAP, que enxergava nos conjuntos uma maneira de valorizar o patrimônio e obter recursos com os aluguéis. Neste aspecto, é sintomático que as explicações oficiais destaquem o aspecto financeiro em detrimento das inovações do morar inerentes aos conjuntos modernos. Não é de se estranhar que, na mudança para o modelo habitacional pós-64 (casinhas e conjuntos do BNH), estas novidades tenham sido abandonadas sem maiores problemas. As qualidades do livro de Bonduki são imensas. Do ponto de vista estrito da historiografia da arquitetura, ao escavar essa temática inovadora, deixa à vista ricos veios a serem explorados por pesquisas complementares. Em uma visada mais abrangente, o livro relaciona âmbitos diversos da habitação social -sua dimensão humana e coletiva, suas implicações no processo de urbanização de nossas cidades, a importância do fomento e controle estatais, sua relevância como tema para a arquitetura e urbanismo etc. O autor nos desafia à não aceitação passiva -como cidadãos e como arquitetos- do embuste que nos tem sido impingido pelos governantes nas últimas décadas. Esta relação entre a reflexão crítica e a atuação política é característica do próprio autor, ele mesmo um antigo pesquisador acadêmico do problema habitacional e ex-membro de equipe técnica da Secretaria da Habitação da Prefeitura de São Paulo. Na leitura que propomos aqui, estranhamos a recusa de Bonduki em tratar das transformações radicais sofridas através dos tempos pelos conjuntos construídos pelos IAPs. "Por razões que não vêm ao caso desenvolver, a maior parte das propostas mais originais destes conjuntos estudados foram sendo gradativamente desativadas, desmontadas, destruídas." Pensamos que a clara compreensão dessas razões são essenciais para uma reconciliação crítica com esse passado. Vale lembrar que os grandes conjuntos modernos também se deterioraram mesmo nos países mais ricos. As imensas barras modernistas construídas na França e na Alemanha Oriental no segundo pós-guerra passam hoje por intenso processo de remodelagem que propõe, muitas vezes em simultâneo, a construção de equipamentos coletivos inexistentes (completando o projeto moderno inconcluso), o estabelecimento de vínculos com a rua e com a cidade tradicional (contrariando princípios do urbanismo modernista) e a "derrubada" de partes dos edifícios para se obter condomínios mais administráveis (negando um modo de vida coletivo mais radical). Esse "ponto cego" nem de longe invalida a grande contribuição deste livro: a de se colocar como ponto de partida para um debate não apenas entre acadêmicos especialistas, mas também entre arquitetos, urbanistas, políticos e -por que não?- cidadãos comuns, em busca de uma solução concreta para a habitação social. Tal perspectiva nos leva a subscrever a palavra de ordem de Nabil Bonduki: "A recusa em pesquisar, analisar e incluir estas obras, que tem predominado na historiografia oficial da arquitetura moderna brasileira, contribuiu para reforçar o divórcio entre arquitetura e habitação social que predominou a partir de 1964. Resgatar esta memória é fundamental". Abílio Guerra é professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e editor da revista "Oculum". Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
|