São Paulo, sábado, 14 de novembro de 1998

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Exéquias de uma época

AURORA F. BERNARDINI

A sorte do livro "A Casa de Púchkin", de Andrei Bitov (1937), ambientado nos anos 60, mas escrito entre 73-76, parece regida pelo que Walter Benjamin, em seu "Moskauer Tagenbuch", observou ser a característica do fatalismo russo, no qual "nada acontece segundo as expectativas". A começar pelo título, a referência à casa de Púchkin -via epígrafe de Aleksandr Blok- faz imaginar como seria bom se a Academia de Ciências se chamasse Casa de Púchkin, ou seja, se fosse (tivesse sido) um lugar onde se reuniam livremente escritores, pensadores, musicistas etc.
Coisa que, como se sabe, ocorria na casa paterna dos Púchkin, em Moscou, onde seria possível, como neste livro, fruir do requintado alternar-se de citações e alusões literárias, inserir-se em seus volteios, de Tchernitchévski a Turguêniev, passando por Dickens, Liérmontov e Dostoiévski -e voltando novamente a Púchkin, via Tiútchev. Só que a história do livro se desenrola em Leningrado e aí cabe levar a imaginação para São Petersburgo, a cidade onde o emblemático poeta (Púchkin) passou grande parte de sua vida, vindo a morrer, como se sabe, num duelo até hoje pouco esclarecido, em 1837.
Na terceira parte do livro, o narrador, numa das suas sistemáticas intromissões, imaginando um diálogo em que o leitor ressentido reclama do excesso de alegorização, responde: "Vou escrever um romance imenso,/ de muitos tomos, uma Casa-Romance,/ E chamá-la convencionalmente,/ Digamos, Mentira ou Tapeação". Aí, nada mais natural do que achar que, por baixo das alegorias, está a crítica ao sufocante mundo (ainda) socialista onde, entre muitos outros males, "tudo está pronto, tudo está explicado".
Só que o fulcro do livro parece ser outro, e isso vem corroborado pelo título primitivo, que a "Enciclopédia Literária Soviética", de 1987, insiste em manter-lhe, sublinhando seu caráter de romance de formação: "O Jovem Odoievtsev". Trata-se, então, das peripécias de um jovem de sobrenome aristocrático, cuja ascendência nobre -que deveria levá-lo a guardar a honra, manter a palavra, impor-se sobre os mesquinhos etc.- não impediu ao pai dele (a história passa-se em grande parte no meio acadêmico) de desempenhar "um papel definido e pouco honesto: renegar o pai na juventude e, 20 anos depois, conquistar para si a cadeira que era dele, com uma crítica à sua escola" e a ele mesmo, Liova Odoievtsev, de ser vítima do mais indigno dos seres, o pseudo-melhor-amigo Mitichátiev. Sim, isso tudo é verdade, mas, digamos, perifericamente. Ou melhor, para usar a conceituação de outro russo, o crítico Bóris Eichenbaum, no ensaio notável sobre "O. Henry e a Teoria da "Short Story'±" (1927), no qual relata que, no Japão, toda a parte ideológica de "Ressurreição", de Tolstói, é lida como se fosse o "setting": "Em outros solos, aquelas conexões nacionais e históricas originais adquirem um outro sentido e (...) afinal, o que o leitor precisa é ter em mãos um livro absorvente, para uma boa leitura; o interesse pela matéria bruta é apenas do profissional". Uma boa leitura: o encontro de uma realidade que quer ser integrada à realidade do leitor.

A OBRA

A Casa de Púchkin Andrei Bitov Tradução: Paulo Bezerra Record (Tel. 021/585-2000) 416 págs., R$ 38,00



Nesse sentido, por um lado, o centro nevrálgico, o motor do romance e o que ocupa maior número de capítulos na obra de Bitov, é a história do "affaire" do jovem Odoievtsev com a ignóbil Faína, que atrai e trai o jovem herói com um número indefinido de outros, neles incluindo, necessariamente, o seu melhor amigo. História vigorosa de uma paixão ludibriada, que lembra -nos momentos de rejeição- a de Walter Benjamin pela atriz bolchevique Asia Lacis, que o levou à Rússia e a escrever seu já citado "Diário Moscovita". O que impressiona na descrição dessa paixão, e que provavelmente, junto com a já não tão velada crítica aos vícios do regime ora extinto, responsável pelo grande sucesso do livro na Rússia, logo esgotado no original na época da pré-perestroika quando foi publicado, é, além da sutileza das reflexões poético-filosóficas, a atualidade da penetração psicológica. Vejam-se alguns exemplos: "Há alguns anos, ainda tive a oportunidade de ver pela última vez um deles (um antigo "pioneiro'): quarentão, rosto desgastado pela vida, mas que permanecia fiel àquele seu tempo melhor, heróico.(...) Meu deus! Pensei. Como as pessoas acabam apegadas para sempre ao tempo em que eram amadas e, principalmente, em que elas amavam!"; "...os seus pais estavam envelhecidos, ou melhor, estavam atrasados. Isto ele descobriu de repente. Se bem que lhe fosse difícil dizer em que estavam atrasados. Provavelmente na forma. Tinham conceitos já ultrapassados de verdade, mentira e honra, sempre procuravam esconder o que ninguém mais escondia, e assim se expunham".
Por outro lado, porém, mesmo que seja bem captada a pertinência contraditória das várias gerações de russos ao "costume" (contra e/ou a favor das instituições que constituem a tradição) e mesmo que se acene ao fato de que a autoconsciência, enquanto luta entre o "dever" e a inclinação, tal como a via Tolstói (e Hegel, e Descartes, e Kant...) já não é mais algo estável, nem o leitor russo, nem o "ocidental" conseguem entender a que isso se deve. Se isso é atribuível ao conflito das interpretações que, além de modificar sujeito e objeto, acabam modificando a própria noção de verdade e criando dinamicamente outra, esta, por mais relativa que seja -no dizer de H.G. Gadamer, em seu recentemente traduzido "Verdade e Método" (Vozes)-, deveria ter sua sede em certos fatos "privilegiados", cujo modelo seria justamente o da obra de arte. Não há nenhum indício dela, porém, nas variantes da ação em que se desdobra a obra de Bitov, o qual, a certa altura, como que se explica: "Não vamos tornar as coisas precisas. Para nós esta imprecisão é importante como tinta, como uma grandeza fictícia diante da grandeza absoluta da morte".
Curiosamente, e por isso mesmo, numa dessas variantes, o livro descreve as exéquias do avô e acaba com uma alusão ao "Cavaleiro de Bronze", de Púchkin. As exéquias do avô coincidem com as exéquias de uma época que termina, são um corte na história de uma nação e, como quer o cineasta Mikhálkov ("O Sol Enganador"), com seus males e com seus bens, são um fato liquidado. Só que, contrariamente ao "Cavaleiro de Bronze", as experiências dessa época não engendraram nem no narrador nem no leitor, projeções para o futuro. No poema de Púchkin, a rebelião do pobre protagonista Evguêni, cuja namorada morreu afogada na enchente de Petersburgo de 1824, contra a estátua equestre de Pedro, o Grande, que acaba se soltando do pedestal e esmagando o infeliz, pode representar, não só a história que esmaga o homem insignificante, com as suas aspirações subjetivas, mas, profeticamente, o Estado futuro que irá subjugar o indivíduo. Na "Casa de Púchkin", apesar da intenção do protagonista, que teria escrito na sua primeira juventude um ensaio seminal sobre a tradição literária russa, chamado "Os Três Profetas", pressente-se o que termina, não o que se prepara.


Aurora F. Bernardini é professora de literatura russa na USP.



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