São Paulo, sábado, 14 de novembro de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice Exéquias de uma época
AURORA F. BERNARDINI
Nesse sentido, por um lado, o centro nevrálgico, o motor do romance e o que ocupa maior número de capítulos na obra de Bitov, é a história do "affaire" do jovem Odoievtsev com a ignóbil Faína, que atrai e trai o jovem herói com um número indefinido de outros, neles incluindo, necessariamente, o seu melhor amigo. História vigorosa de uma paixão ludibriada, que lembra -nos momentos de rejeição- a de Walter Benjamin pela atriz bolchevique Asia Lacis, que o levou à Rússia e a escrever seu já citado "Diário Moscovita". O que impressiona na descrição dessa paixão, e que provavelmente, junto com a já não tão velada crítica aos vícios do regime ora extinto, responsável pelo grande sucesso do livro na Rússia, logo esgotado no original na época da pré-perestroika quando foi publicado, é, além da sutileza das reflexões poético-filosóficas, a atualidade da penetração psicológica. Vejam-se alguns exemplos: "Há alguns anos, ainda tive a oportunidade de ver pela última vez um deles (um antigo "pioneiro'): quarentão, rosto desgastado pela vida, mas que permanecia fiel àquele seu tempo melhor, heróico.(...) Meu deus! Pensei. Como as pessoas acabam apegadas para sempre ao tempo em que eram amadas e, principalmente, em que elas amavam!"; "...os seus pais estavam envelhecidos, ou melhor, estavam atrasados. Isto ele descobriu de repente. Se bem que lhe fosse difícil dizer em que estavam atrasados. Provavelmente na forma. Tinham conceitos já ultrapassados de verdade, mentira e honra, sempre procuravam esconder o que ninguém mais escondia, e assim se expunham". Por outro lado, porém, mesmo que seja bem captada a pertinência contraditória das várias gerações de russos ao "costume" (contra e/ou a favor das instituições que constituem a tradição) e mesmo que se acene ao fato de que a autoconsciência, enquanto luta entre o "dever" e a inclinação, tal como a via Tolstói (e Hegel, e Descartes, e Kant...) já não é mais algo estável, nem o leitor russo, nem o "ocidental" conseguem entender a que isso se deve. Se isso é atribuível ao conflito das interpretações que, além de modificar sujeito e objeto, acabam modificando a própria noção de verdade e criando dinamicamente outra, esta, por mais relativa que seja -no dizer de H.G. Gadamer, em seu recentemente traduzido "Verdade e Método" (Vozes)-, deveria ter sua sede em certos fatos "privilegiados", cujo modelo seria justamente o da obra de arte. Não há nenhum indício dela, porém, nas variantes da ação em que se desdobra a obra de Bitov, o qual, a certa altura, como que se explica: "Não vamos tornar as coisas precisas. Para nós esta imprecisão é importante como tinta, como uma grandeza fictícia diante da grandeza absoluta da morte". Curiosamente, e por isso mesmo, numa dessas variantes, o livro descreve as exéquias do avô e acaba com uma alusão ao "Cavaleiro de Bronze", de Púchkin. As exéquias do avô coincidem com as exéquias de uma época que termina, são um corte na história de uma nação e, como quer o cineasta Mikhálkov ("O Sol Enganador"), com seus males e com seus bens, são um fato liquidado. Só que, contrariamente ao "Cavaleiro de Bronze", as experiências dessa época não engendraram nem no narrador nem no leitor, projeções para o futuro. No poema de Púchkin, a rebelião do pobre protagonista Evguêni, cuja namorada morreu afogada na enchente de Petersburgo de 1824, contra a estátua equestre de Pedro, o Grande, que acaba se soltando do pedestal e esmagando o infeliz, pode representar, não só a história que esmaga o homem insignificante, com as suas aspirações subjetivas, mas, profeticamente, o Estado futuro que irá subjugar o indivíduo. Na "Casa de Púchkin", apesar da intenção do protagonista, que teria escrito na sua primeira juventude um ensaio seminal sobre a tradição literária russa, chamado "Os Três Profetas", pressente-se o que termina, não o que se prepara. Aurora F. Bernardini é professora de literatura russa na USP. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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