|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O mundo de cabeça para baixo
BENEDITO NUNES
Depois da morfologia de
Wölflin, já se poderia
afirmar a existência de
um estilo barroco,
oposto ao clássico, ambos correspondendo a distintos modos de
visualidade plástica. Com Werner
Weisbach, o barroco se estendeu
como estilo artístico ao movimento de Contra-Reforma, preponderantemente jesuítico, que lhe foi
correlato do ponto de vista cultural. Extrapolada, então, do espaço
das igrejas ao espaço circundante,
dos templos à corte, da paisagem
ao vestuário, dos palácios aos jardins e parques, das festas aos préstitos triunfais, mediante o viés da
cultura, a mesma arte do Setecentos passou a ser concebida como
estilo de vida, a serviço de Deus ou
da Igreja, em benefício do fortalecimento do dogma, da autoridade
eclesiástica e do poder real. Tornava-se patente, na passagem do
conceito morfológico ao conceito
estilístico do barroco, a função
ideológica dessa arte, ou seja, a
sua instrumentalidade político-social durante o período de sua
vigência.
"A Cultura do Barroco" reúne,
num estudo abrangente, talvez o
mais completo até essa data, em
torno de tal instrumentalidade
político-social, os aspectos todos,
artísticos e culturais, as formas da
arte e as expressões sociais ou coletivas, característicos do período.
Com isso, a noção anterior de estilo de vida é transposta à pauta histórica e periodológica de um estilo
de época. Que diferença faz? Talvez seja a primeira mais orgânica e
o segundo mais integrativo daqueles aspectos antes mencionados, dentro de um marco cronológico definido -entre 1600 a
1670 ou 1680-, à história e à sociedade européia em sobressalto
no século 17. É só a partir da segunda metade deste que a difusão
da idéia copernicana, pondo-nos
diante do infinito, de "uma região etérea imensa", da qual
Giordano Bruno já falara, produziria o primeiro grande trauma do
homem ocidental, mistura de um
sentimento de desamparo e de
abandono com a exaltação da
subjetividade.
Mas Maravall não começa por
esse trauma; começa pelo abalo
terreno da ordem econômica, que
desloca pequenos proprietários
empobrecidos, sob o azorrague de
preços altíssimos, do campo para
a cidade. A ameaça de ruína se
conjuga à inquietante mudança de
atitudes e valores, pondo em risco
a estabilidade da monarquia e da
autoridade da Igreja, na Espanha
como na França. Essa conjunção é
tanto mais ameaçadora quanto se
faz acompanhar da consciência da
ruína e da capacidade que o homem tem para interferir no estado
do mundo. Não fosse assim, a palavra "crise", egressa dos estudos
médicos para assinalar o momento agudo das disfunções orgânicas, não teria subido à cena verbal
da época, na qual, também, o termo "revolução" ingressava no
rol dos proeminentes "idola fori". Haveria, então, forças liberadoras individuais prontas a sapar
a pirâmide monárquico-senhorial- eclesiástica. Pois, se a crise está na boca de todos, a agitação não
demora a surgir. A pirâmide exerce o poder repressor. Punir é razão de Estado. Não foi Quevedo
preso? Não eram os atores e homossexuais policiados e reprimidos, as primeiras vozes femininas
exprobadas, os bandoleiros caçados, a Inquisição sempre alerta?
Mas os repressores se sentiriam
inseguros: a população aumentava, cresciam a delinquência e o
teatro, havia gente demais nas cidades, as pessoas já tinham deixado de se conhecer entre si, o mercado oferecia produtos novos, até
roupas manufaturadas.
Portanto não bastaria somente
reprimir. Os poderosos, monarcas com suas coroas, senhores
com seus privilégios, que não
eram mais guerreiros, e a Igreja,
com a sua solidariedade prestada
a ambos, também precisariam de
enlear, seduzir, conquistar, persuadir os subversivos potenciais a
lhe permanecerem fiéis, submissos, dóceis ao regime consagrado.
Sem o mecanismo de contenção,
de desvio e também -por que
não dizê-lo?- de sublimação da
latente, explosiva rebeldia, que resultava do emprego de todo um
aparato de convencimento, o barroco seria ininteligível como estilo
de uma época de crise. Se a crise
indica o seu despontar, o interesse
do Estado em aplacá-la moveria
os recursos culturais disponíveis
em proveito da integração social
ameaçada para manter, sob controle, os transbordamentos prejudicais da ação humana, jamais de
todo esconjurados. Já que não é
possível extirpá-los, convém dirigi-los numa outra direção pela
técnica do desvio ou proporcionar-lhes objetivos elevados, sublimados, à altura da empinada onda sediciosa. O barroco cumpriria
essa função direcional.
Cultura sublimada é cultura dirigida por regras táticas de conduta, que permitem manobrá-la; havendo regras, a primeira das quais
a prudência, existiria uma regulação técnica do agir que atua desde
o pensar. O barroco é pragmático;
importam-lhe os efeitos a produzir. Quer dizer que os poderosos
se empenham em formar uma
mentalidade da qual também participam. Mas o que vai à frente, a
capciosa artimanha do poder ou a
mentalidade que nela já tomara
forma? As ideologias não precisam ser conscientes; as instituições lhes fornecem os meios de
atuar. Escreve-se poesia sob encomenda; as Academias acabam de
abrir suas portas. E não só as Academias; também os escritos já são
obras de impacto, que não convocam mais do que o gosto, afecção
da sensibilidade, destinando-se,
além de ensinar, a comover e a deleitar ou, mais precisamente, a comover e deleitar para ensinar. Decerto que a produção aqui aumentou como nos demais setores; manufaturam-se roupas e poemas
para um maior consumo, que rebaixa a qualidade do produto aumentando-lhe a quantidade para
um maior número de pessoas. No
"vulgo" se ergue a enorme, massiva, cabeça do "público", agente
ativo e passivo das festas que complementam a produção literária e
artística.
Embora em estreita conexão
com o campo, a cultura, assim dimensionada, cresce nas e com as
grandes cidades, puxada, sobretudo, pelo teatro, que ganha a máxima liberdade de invenção. Todos
os caprichos são admitidos, todas
as novidades toleradas, contanto
que não passem do palco à sociedade. Os bufões têm a palavra livre, a toda hora, diante dos reis. E
o mundo mesmo é uma bufoneria
que, "de cabeça para baixo", se
assemelha a um teatro, se não a
um labirinto, de difícil saída, onde, com as guerras de religião e
depois delas, imperam a crueldade e a violência. Só poderia ser
pessimista, com a tônica da melancolia, sintoma de desencanto e
atestação da fugacidade de tudo,
dos azares da fortuna, irmã gêmea
do jogo, o ânimo desse mundo revirado, que passara a conhecer as
leis galileanas do movimento, penhor tanto de eterna mudança
quanto da caducidade e do declínio.
A OBRA
A Cultura do Barroco
José Antonio Maravall
Tradução: Silvana Garcia
Edusp/Imprensa Oficial (Tel. 011/818-4156)
424 págs., R$ 30,00
|
Dentro desse quadro histórico,
social e psicológico, caberiam os
recursos constitutivos da arte barroca -a exuberância e o inacabamento, o antitetismo e a suspensão, a procura do obscuro e do difícil, que condizem com o efeito
máximo buscado e requerem o
exercício dos "heróicos furores".
De qualquer modo, essas técnicas
superlativas facilitam o arrebatamento do leitor e do espectador,
posto fora de si, e assim despossuído de sua alma pela onda emocional provocada que o envolve.
Os recursos artísticos desatam as
molas psicológicas mais íntimas,
vulnerando o indivíduo, à mercê
de forças externas que o controlam. A cultura barroca que os canaliza é uma cultura alienante. "A
base para que a cultura barroca
possa ser uma cultura dirigida se
encontra no fato de ser fundamentalmente uma cultura de alienação". Confirma-o a institucionalização da festa, que mais diretamente a ligava ao sistema social
e "aos meios de integração nos
quais se apoiava a monarquia barroca". Até na discussão, peculiar
ao período, sobre se era ao desenho ou à cor que caberia o primado na pintura, invocava-se, como
superioridade da última, sua aptidão para revelar os movimentos
da alma e, portanto, para exteriorizar-lhe as motivações internas,
psicológicas. Barroco é igual a dirigismo eficaz, solerte, que mantém o desejo do novo sob a rédea
curta de uma ideologia, não apenas conservadora, mas também
reacionária. A reação se empenha
em cercear, se não em estiolar, as
sementes do mundo moderno,
em pleno processo de germinação.
Afinal, para usarmos uma antiga
terminologia da lógica, no conceito de barroco, elaborado por Maravall, a "extensão" mínima, relativa a um período determinado,
contrasta com a "compreensão"
máxima, que excede essa delimitação. Como estilo de época, aplica-se à totalidade do que aparece
nessa fase, entre 1600 e 1670 ou 80.
Sua abrangência é tão traiçoeira
como a de quaisquer outros conceitos meta-históricos, a exemplo
das "almas" de Spengler ou das
"sociedades" de Toynbee, que
estão em alguns casos aquém e,
em outros, além dos grandes e
complexos conjuntos a que se
aplicam. Se tudo é barroco nesse
período, o estilo, em vez de preponderante, é dominante; e se é
dominante, avulta como
"mens", como "espírito" de
época, muito acima da atuação
dos móveis ideológicos que o teriam impulsionado. Por outro lado, a noção de ideologia utilizada
é dúbia. Às vezes parece que se
trata de uma ideologia "primária" que as classes dominantes secretam de si mesmas; outras vezes, parece que estamos lidando
com uma ideologia secundária,
voluntária, forjada por um acordo
entre a monarquia, a nobreza e as
altas hierarquias eclesiásticas.
Sendo mínima a extensão e máxima a compreensão do conceito,
o barroco teria que ser onímodo e,
por isso, abrangendo o não-barroco em seu âmbito e antecipando-se, sob tantos aspectos, ao moderno. Um desses aspectos é o
gosto, e seu correlato, o estético.
Outro é o impacto sensível e a repercussão afetiva das obras. Pode-se, também, perguntar: como
ficaria a posição de Descartes? Por
ser um pensador do período, ele é
barroco? E conviria atribuir a esse
estilo o epíteto de pragmático?
Afirma Maravall, ainda, que o dirigismo, já tantas vezes mencionado, foi uma espécie de "behaviour in nuce". E também designa, como massa ou como
pré-massa, o "público" que levantou, na época, a sua cabeça
multitudinária, quando o movimento do mercado antecipava a
forma da livre-concorrência.
Essas antecipações advêm da
inevitável projeção do moderno
sobre o barroco. É difícil, por isso,
estabelecer limites precisos entre
os dois. Caindo na armadilha do
próprio tempo a que se expõe, o
historiador se debruça na janela
do presente, e é da perspectiva já
moderna dos conceitos morfológico e estilístico do barroco, seus
insinuantes e tácitos pressupostos, que pode divisá-lo como estilo de uma época passada.
Benedito Nunes é professor da Universidade
Federal do Pará e autor de "Crivo de Papel" (Ática).
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|