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Rindo de si mesmo
O ator Nando Bolognesi, 40, descobriu no palhaço uma forma
de lidar com as limitações trazidas pela esclerose múltipla, diagnosticada aos 20 anos
AMARÍLIS LAGE
DA REPORTAGEM LOCAL
Um ator pode interpretar vários personagens, mas só um
palhaço. Isso porque o palhaço
é uma caricatura do próprio intérprete. Para construí-lo, é
preciso colocar uma lupa sobre
as próprias falhas, inaptidões e
pudores. Exacerbá-los, aceitá-los e expô-los ao público.
"Ser palhaço é ter talento para seus fracassos." É assim que
Nando Bolognesi, 40, define a
sua profissão. Da faculdade
de economia, ele passou a
estudar artes dramáticas,
chegou ao palco como Comendador Nelson e acabou na área da saúde -foi
integrante dos Doutores
da Alegria por quatro anos
e hoje desenvolve um projeto em hospitais psiquiátricos. Mas talvez o principal paciente do Comendador
tenha sido ele próprio -o ator
tem esclerose múltipla.
O problema surgiu em 1988,
quando Nando, aos 20 anos,
viajava pela Europa. No tempo
livre, dedicava-se a uma paixão:
o futebol. Destacava-se no
campo, mas, um dia, viu que, às
vezes, a perna não obedecia.
Pouco depois, percebeu que a
sua letra estava estranha. Até
que, certa manhã, não conseguiu apertar a válvula do desodorante. Assustado, voltou ao
Brasil, onde foi diagnosticado.
A esclerose múltipla ocorre
quando o sistema imunológico
passa a atacar as células nervosas, levando à perda parcial dos
movimentos e dos sentidos.
No caso de Nando, a doença
era do tipo surto-remissão
-após o tratamento de uma fase aguda, o organismo recuperava as habilidades atingidas.
Mas os surtos deixavam sequelas, principalmente nas pernas.
Foi assim que o rapaz atlético
deixou de ser o capitão do time
de futebol para se tornar o último a ser escolhido. Os amigos,
solidários, ainda o chamavam
para as partidas. Mas ele acabava ficando de escanteio. "Eu
não concebia a possibilidade de
não jogar. Corria, remava, adorava esportes. É algo muito difícil de aceitar", lembra.
Vieram o luto, a terapia, a
meditação transcendental. E,
aos poucos, veio também o Comendador Nelson. "Comecei a
ter que vivenciar o "perdedor".
Mas era uma coisa amarga. Não
era uma opção, como no palhaço. Era a minha vida."
E Nando reprimiu a doença.
Tudo bem expor ao público sua
leve tendência à rabugice e à
nostalgia. Mas as limitações físicas ficavam camufladas. Assim, quando participava dos
Doutores da Alegria, grupo de
palhaços que visita crianças internadas, caminhava por horas
pelos corredores dos hospitais,
apesar da fraqueza nas pernas.
Quando passou a integrar o espetáculo Jogando no Quintal,
uma espécie de duelo entre palhaços, esforçava-se para encarar as duas horas de aquecimento mais duas de show.
Ao perceber que o cansaço
era demais, consultou a equipe:
será que o Comendador Nelson
poderia usar uma bengala no
palco? A resposta foi sim. "Assumi que o meu ritmo era outro. Eu lutava contra isso, tentava pular e correr como os outros. Até eu sacar que, quanto
mais eu assumisse a minha
condição, mais verdadeiro seria. Todo mundo está sempre
procurando onde está a singularidade do seu palhaço. Pensei:
está na minha cara. Parece óbvio, mas, para mim, não era."
Há cerca de três anos, Nando
incorporou a bengala também
no seu dia-a-dia.
Novo tratamento
A aceitação não significa conformismo, ele frisa. "Quero
continuar buscando superar os
limites que a esclerose coloca",
afirma. Há cerca de cinco anos,
esses limites aumentaram. A
doença evoluiu de surto-remissão para progressiva secundária, ou seja, mesmo fora do período de surto, a doença progride lentamente.
Para combater a doença,
Nando se submeterá, em janeiro, a um novo tratamento que
une quimioterapia com transplante de células-tronco. No
procedimento, o paciente recebe quimioterápicos, que inibem a produção das células
imunológicas na medula óssea,
e um soro, que "desliga" o mecanismo de combate ao sistema
nervoso. Depois, células-tronco retiradas previamente de
seu próprio corpo são implantadas e reativam a medula.
O método consegue estagnar
a doença em grande parte dos
casos e, em alguns, pode levar à
recuperação de movimentos.
Um estudo feito pela Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto e pelo hospital Albert Einstein mostrou que o
tratamento freou o avanço do
mal em 28 de 41 pacientes.
Quando Nando sair do hospital, o Comendador Nelson poderá voltar a seus outros pacientes. Com alguns amigos, ele
montou o projeto Fantásticos
Frenéticos, que faz visitas semanais ao hospital-dia do Instituto A Casa, em São Paulo,
que propõe ser uma alternativa
ao tratamento manicomial.
A idéia da loucura atraía
Nando desde a adolescência,
quando ele acompanhava de
seu quarto o movimento de um
hospital psiquiátrico -anos depois, ele entraria nesse hospital
para interpretar um interno, no
filme "Bicho de Sete Cabeças"
(2001), de Laís Bodanzky.
No Instituto A Casa, o trabalho é outro -a base é a interação do palhaço com os pacientes. Uma troca, na qual o Comendador também recebe cuidados. "Eu estava subindo uma
escada e um paciente me segurou: "Não vai cair, hein, Comendador?" Veja só: ele era um homem que a sociedade considera
incompetente. De repente,
chega alguém ainda mais frágil,
e ele tem a oportunidade de me
amparar. Desconfio que esse é
o poder do palhaço. Em uma
sociedade tão competitiva, que
cobra o tempo todo soluções,
respostas, efetividade, ele é o
oposto disso. É um alívio."
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