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ARTIGO
O câncer da próstata num olhar médico
O diagnóstico do tumor da próstata está longe de ser circundado por ideias consensuais; médicos e pacientes devem escolher o melhor tratamento de acordo com cada caso
MIGUEL SROUGI
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
PASSAR dos anos, com
suas desfigurações incontornáveis, é acompanhado de tamanha deterioração dos nossos genes que, se
fosse dado ao homem o privilégio da imortalidade, o mundo
seria inundado por seres altamente imperfeitos. Talvez por
isso, a pressão evolucionista ou
Deus (na ordem ou exclusividade que você preferir) tenha
criado um mecanismo impiedoso para conter os anseios de
perenidade da mente humana:
o câncer da próstata, que atinge
cerca de 10% dos homens com
50 anos, 30% daqueles com 70
anos e 100% dos que chegam
aos cem anos.
Vivem atualmente no Brasil
cerca de 12 milhões de homens
com mais de 50 anos, e 2 milhões deles serão atingidos pelo
câncer da próstata. Essa estatística alarmante contrapõe-se
a outra mais alentadora. De cada 14 pacientes acometidos pelo mal, apenas 1 morrerá pela
doença, o que produz uma conclusão óbvia. A maioria dos pacientes sobrevive ao câncer, alguns por portarem tumores indolentes, que não progridem,
muitos outros graças às ações
médicas reparadoras.
Duas condições aumentam
os riscos de contrair o câncer
da próstata: a raça e a ocorrência de casos na família.
A frequência desse tumor é
70% menor em homens orientais. Por outro lado, negros têm
o dobro da incidência e neles o
tumor costuma ceifar mais vidas. Estudos recentes patrocinados pela American Cancer
Society sugerem que esse comportamento está relacionado
com certa tendência hereditária e com marginalização social
e menor acesso aos tratamentos curativos, fenômeno perverso que, certamente, se repete numa sociedade tão injusta
como a nossa.
Sabe-se, há muito, que a incidência do câncer da próstata
aumenta entre duas e cinco vezes quando o pai ou o irmão são
portadores do mal. Nos casos
hereditários, o tumor manifesta-se em idades mais precoces.
Por isso, homens com histórico
familiar devem realizar exames
preventivos da próstata a partir
dos 40 anos, e não após os 45,
como se recomenda hoje.
Obesidade, vasectomia e excesso de atividade sexual, lembrados como possíveis causadores do câncer da próstata,
não parecem ter vínculo com a
doença. Contudo o tumor em
homens obesos costuma evoluir de forma mais desfavorável. Por outro lado, maior frequência de atividade sexual talvez até iniba o aparecimento
do câncer da próstata. Uma
pesquisa que foi patrocinada
pelo National Institute of
Health dos EUA e envolveu 29
mil homens revelou que a incidência desse câncer é 33% menor nos indivíduos que ejaculam mais do que cinco vezes
por semana. Alegro-me em relatar esse estudo, enfim uma
boa notícia no meio de linhas
tão áridas, lembrando que, ao
se exercitar bastante, o homem
também evita a obesidade, atenuando a gravidade da doença
se ela insistir em aparecer.
Diagnóstico
Para explorar a presença de
câncer da próstata, os especialistas recorrem ao exame de toque e às dosagens de PSA no
sangue. Esses dois exames devem ser feitos conjuntamente,
já que o toque e o PSA, isolados,
falham, respectivamente, em
50% e 25% dos casos atingidos
pela doença. Executando-se os
dois testes, deixam de ser identificados apenas 7% ou 8% dos
pacientes acometidos.
A simplicidade dessas estatísticas poderia indicar que o
diagnóstico do câncer da próstata é circundado por ideias
consensuais. Infelizmente, isso
está longe de ser real.
Em primeiro lugar, o toque
da próstata gera assombros na
mente masculina, sobre os
quais têm sido dedicadas incontáveis linhas e intrincadas
interpretações psicológicas. A
verdade é que o toque costuma
ser realizado em quatro ou cinco segundos, de forma indolor;
para os mais recalcitrantes,
gostaria de dizer que muito
pior do que o desconforto psicológico de alguns segundos é o
flagelo que perdura por anos
quando um câncer é descoberto tardiamente.
Em segundo lugar, o PSA,
produzido exclusivamente pela
próstata, encontra-se aumentado nos pacientes com câncer,
mas também pode elevar-se em
alguns casos de crescimento
benigno, de infecção da glândula ou até em homens sem nenhuma doença local. Níveis alterados de PSA exigem avaliação médica, mas não indicam,
necessariamente, a existência
de câncer. Conhecendo-se as
taxas de PSA no sangue e o resultado do toque, é possível calcular as chances de câncer da
próstata.
Em terceiro lugar, novos exames para identificar a doença
vêm sendo testados. Incluem-se aqui as proteínas PCA3, PGC
e EPCA-2, que estão alteradas
nos homens portadores da
doença e que, talvez, sejam
mais precisas do que o PSA.
Confirmadas essas observações, estarão criados instrumentos adicionais para descortinar os novos casos de câncer
da próstata. De forma auspiciosa para alguns, os urologistas
talvez possam anunciar o fim
do toque prostático.
Finalmente, uma recomendação recente do Inca (Instituto Nacional de Câncer) desaconselhou os exames preventivos anuais da próstata. Segundo a nota, muitos casos de câncer da próstata são indolentes
e, por isso, não progridem nem
precisariam ser identificados.
Ações médicas contundentes
nesses casos seriam desnecessárias e produziriam um sem-número de homens com a qualidade de vida comprometida
pelas sequelas do tratamento.
Embora não tenha sido totalmente descabida, a recomendação do Inca, no mínimo, foi
precipitada. Realmente, uma
pesquisa publicada no ano passado pelo National Cancer Institute dos EUA concluiu que,
entre os casos de câncer da
próstata descobertos em exames preventivos, cerca de 15%
são do tipo indolente, 25% já
são avançados e incuráveis e
60% têm doença agressiva, mas
curável se tratada a tempo. Fica
claro que, sob o argumento de
evitar tratamentos desnecessários em 15% dos pacientes, serão prejudicados 60% dos homens com tumores potencialmente curáveis e que deixarão
de ser identificados no momento propício.
Com a esperança de reduzir a
incidência do câncer da próstata, dieta e suplementos têm sido recomendados pelos especialistas. Infelizmente, dados
emergentes indicam que os
três agentes mais difundidos, o
licopeno (encontrado no tomate), a vitamina E e o selênio, não
têm a ação protetora que lhes
foi atribuída e, pior, talvez sejam nocivos. Pesquisas das
Universidades do Texas (EUA)
e McMaster (Canadá) demonstraram um aumento nos riscos
de complicações cardíacas e de
diabetes nos indivíduos que já
tinham propensão a esses problemas e que receberam vitamina E e selênio para prevenir
o câncer da próstata.
Tratamento
Os casos indolentes de câncer da próstata não precisam
ser tratados. Por outro lado,
quando se chega à conclusão de
que a doença deve ser combatida, a terapêutica é selecionada
em função da extensão do câncer. Os pacientes com doença
restrita à próstata são tratados
com cirurgia (prostatectomia
radical) ou radioterapia. Já os
tumores que se estendem para
outros órgãos do corpo são controlados com medicações hormonais, orientação que também é usada nos casos mais
simples, que não precisam de
terapêutica radical.
Uma certa polêmica envolve
o tratamento dos pacientes
com câncer circunscrito à próstata, gerando aflição nos portadores da doença. Cirurgiões e
radioterapeutas proclamam
que a prostatectomia radical e a
radioterapia representam, respectivamente, a melhor maneira para tratar tais casos. Na verdade, até o presente, não foram
publicados estudos convincentes comparando diretamente
esses dois métodos. Pesquisas
antigas e indiretas sugerem que
as chances de cura com a cirurgia radical são cerca de 10% a
15% maiores do que as obtidas
com a radioterapia. Ademais,
dados recentes demonstraram
que, quando o tumor está totalmente contido na glândula, os
riscos de o paciente morrer em
decorrência da doença são, respectivamente, de 2% e de 5%
após o emprego da cirurgia e da
radioterapia.
Novas técnicas
Outras angústias permeiam a
mente dos homens atingidos
pelo câncer da próstata. A prostatectomia radical é acompanhada de impotência sexual em
80% dos homens com 70 anos,
em 50% dos indivíduos com 65
anos e em 15% dos pacientes
com menos de 55 anos. Ademais, produz incontinência
urinária em 3% a 35%, dependendo da experiência do cirurgião e da idade do paciente. A
radioterapia associa-se a riscos
um pouco inferiores de problemas sexuais, mas, em 10% a
15% dos casos, surgem complicações intestinais e urinárias
que podem persistir por anos.
Conscientes desses problemas, os cirurgiões introduziram duas novas técnicas para
executar a prostatectomia radical: o método laparoscópico e
as intervenções auxiliadas por
um robô, conhecido como "da
Vinci". Os dois métodos são
executados através de pequenos orifícios, evitando as incisões maiores. A cirurgia assistida por robô permite, adicionalmente, uma visão tridimensional ampliada da próstata e adjacências, é facilitada pela existência de um terceiro braço
manipulado pelo cirurgião e
permite manobras mais precisas, já que a mão do robô realiza
sete movimentos, e a mão humana, apenas quatro.
Apesar do apelo que envolve
o uso dessas técnicas, ditas minimamente invasivas, existem
questões relacionadas que não
foram ainda respondidas.
Complicações pós-operatórias
mais graves têm sido observadas após a cirurgia laparoscópica, uma vez que o acesso mínimo nem sempre se traduz pela
agressão mínima aos tecidos.
No caso da prostatectomia radical robótica, a principal limitação para a disseminação do
seu uso é o elevado custo do
equipamento. Seu valor atual,
da ordem de US$ 2,5 milhões,
torna-o inacessível à maioria
dos centros brasileiros. Por isso, e enquanto não surgirem
dados consistentes que demonstrem índices mais elevados de cura e de preservação da
qualidade de vida dos pacientes
tratados, deve continuar prevalecendo, em nosso meio, a indicação da cirurgia aberta.
Por outro lado, é razoável que
sejam instalados no país cinco
ou dez centros dotados de robô,
envolvendo cirurgiões experimentados, de modo que a técnica seja avaliada cientificamente. Comprovada sua superioridade, estaria justificada,
dos pontos de vista médico e
econômico, sua dispersão.
Como corolário, vale lembrar
uma ideia consensual entre os
especialistas: o sucesso na execução da prostatectomia radical está mais ligado à experiência do cirurgião e menos ao método cirúrgico utilizado. Lida
de outra forma, mais importante do que a técnica escolhida é o
técnico envolvido.
Os pacientes tratados com
medicações hormonais podem
deixar de reagir a esses tratamentos após alguns anos e, para eles, existe uma notícia auspiciosa. Uma nova droga, a abiraterona, foi recentemente testada na Inglaterra em pacientes
com formas agressivas de câncer da próstata e mostrou intensa atividade antitumoral,
inclusive nos casos resistentes
aos tratamentos convencionais. Com baixa toxicidade, a
droga fez a doença regredir em
quase 70% dos pacientes, e
muitos se mantinham bem
quando o estudo foi publicado,
em outubro último. Ainda indisponível, constitui uma esperança real na luta contra o mal.
Nestas linhas, fica claro que,
ao dirigir um olhar para o câncer da próstata, vislumbram-se
boas e más notícias, números
decifráveis e estatísticas emblemáticas. Mais do que isso,
percebe-se que, no entorno do
câncer da próstata, existem seres humanos inseguros com o
porvir, com aflições exacerbadas pelas divergências entre os
especialistas e pelas incertezas
dos tratamentos, que curam
um grande número de pacientes, mas que podem comprometer a qualidade de vida desses indivíduos.
Por esses motivos, um médico só exercerá com grandeza o
seu papel de guardião do corpo
e da alma se, tanto na saída como na chegada, levar em conta
não apenas a doença mas também os sentimentos e os direitos de todos os seres de controlar seu próprio destino. Com isso, quero dizer que médicos e
doentes, num certo conluio durante a travessia, devem optar
pela terapêutica mais eficiente
quando a sobrevida for a questão mais relevante e escolher o
tratamento menos agressivo
quando as complicações possíveis forem intoleráveis para esse paciente -realidade que
Riobaldo, o jagunço filósofo de
Guimarães Rosa, sabia muito
bem como descortinar: "Digo, o
real não está na saída ou na chegada, ele se dispõe para a gente
no meio da travessia".
MIGUEL SROUGI , 62, é pós-graduado em urologia pela Harvard Medical School (EUA) e professor titular de urologia da Faculdade de Medicina
da USP (Universidade de São Paulo)
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