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As aparências não enganam
Baboseiras lombrosianas à parte, ganham relevo os estudos associando patologias e aspectos psicológicos a características físicas ; é a medicina cada vez mais pautada pelas estatísticas
HÉLIO SCHWARTSMAN
ARTICULISTA DA FOLHA
Cesare Lombroso (1835-1909) ficou famoso por ter
defendido a teoria de que a
propensão para cometer crimes era um traço hereditário.
Ele estava errado.
O "reo nato", o criminoso
atávico, com traços anatômicos identificáveis, como a
testa inclinada e os braços
compridos, nunca passou de
um delírio. Mas a intuição
fundamental do criminologista italiano de que certas
características físicas e psicológicas caminham juntas
não só faz sentido como vem
ganhando relevo numa medicina cada vez mais pautada pela estatística.
CARA DE MORTE
A ideia de que estados fisiológicos ou patológicos se
refletem na face do paciente
é tão antiga quanto a medicina. O primeiro a escrever algo parecido foi ninguém menos do que Hipócrates (c. 460
a.C.- c. 370 a.C.), o pai da matéria. "Se a aparência [facial]
pode ser descrita assim: o nariz afilado, os olhos fundos,
as têmporas deprimidas, as
orelhas frias com os lóbulos
afastados, a pele da fronte seca e esticada, a pele do rosto
amarelada, lívida ou acinzentada e se não há sinal de
melhora [num determinado
período], deve-se concluir
que esses sinais prognosticam a morte".
É por conta dessa descrição que médicos se referem
até hoje à "fácies hipocrática", que é a cara que o sujeito
fica quando vai morrer. Os
compêndios médicos registram muitas fácies. Além da
de elfo e da acromegálica, há a renal (de
quem sofre dos rins), leonina
(lepra), basedowniana (hipertiroidismo), mongolóide
(síndrome de Down) e etílica,
entre outras.
A muitas das afecções corresponde também um perfil
de comportamento, que pode ser provocado diretamente pela moléstia ou indiretamente, através da persistência dos sintomas.
Fácies e outras características físicas, como manchas,
posturas ou relações entre
medidas de partes do corpo,
são chamadas de sinais. Estes, ao lado dos sintomas,
são a matéria-prima a partir
da qual os médicos elaboram
seus diagnósticos.
A diferença entre um sinal
e um sintoma é que o primeiro é puramente objetivo, enquanto o segundo é mediado
pela subjetividade do paciente ou familiares (estou
numa leseira..., meu lumbago anda incomodando...).
Um pouco por causa dos
exageros de Lombroso e outros eugenistas, a medicina
baseada em sinais viveu uma
fase de descrédito. Enfatizar
demais o papel de uma característica física era pedir
para ser chamado de determinista, nazista e outros adjetivos pouco abonadores.
De toda maneira, no dia a
dia da clínica, bons médicos
nunca deixaram de atentar
para as pistas físicas que poderiam levá-los a identificar
o problema de seu paciente
-fossem elas politicamente
corretas ou não.
Mais recentemente, com
avanços no campo da genética, da epigenética, da embriologia e, principalmente,
da estatística, pequenos detalhes e sua distribuição populacional voltaram a chamar a atenção de médicos.
Sinais não bastam -e este
foi o grande erro de Lombroso- para decretar que o paciente X padece do mal Y ou
apresenta a característica de
personalidade Z, mas funcionam relativamente bem
quando lidamos com grupos
grandes: X% das pessoas
que possuem o sinal Y têm
também a moléstia Z.
Porcentagens e médias,
não custa lembrar, são um
conceito traiçoeiro. Representam um valor obtido a
partir de resultados válidos
para vários indivíduos, mas
que não podem ser extrapolados para nenhum indivíduo em particular. Na média,
a humanidade tem um testículo e um seio. Sinais tomados isoladamente não têm
nenhum valor diagnóstico,
mas podem ser boas pistas
para novas investigações.
Agora que sabemos que alterações num gene podem
ser responsáveis por mudanças em duas ou mais características (efeito pliotrópico), e
compreendemos um pouco
melhor que detalhes no processo gestacional podem ter
grande influência no resultado final, correlacionar esquizofrenia a pequenas anomalias físicas ou ligar o tamanho e a forma dos dedos a
comportamento sexual e dependências químicas já não
soa tão abstruso.
PADRÃO DE BELEZA
Uma nota interessante é
que, de forma inconsciente,
já buscávamos sinais para
detectar doenças muito antes
de termos ouvido falar em
DNA e mesmo de Hipócrates.
Como numa espécie de seguro contra defeitos de fabricação, pesquisas psicológicas
mostram que pessoas de várias culturas consideram
mais bonitos e desejáveis
rostos e corpos simétricos.
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