São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 2009

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GASTRONOMIA

A cozinha do excêntrico Alvin Leung Jr. em Hong Kong

por RAUL JUSTE LORES, em Hong Kong

O CHEFE DEMONÍACO

Espécie de Ferran Adrià da China, o cozinheiro de cabelos verdes e pretensões imodestas quer colocar seu país no mapa da alta gastronomia

O chef Alvin Leung Jr. quer ser o Ferran Adrià da gastronomia chinesa. Deduzo isso ao mordiscar o sorvete de cone que tem como recheio um suflê de ovos de peixe.

Ao lado, na mesma porção, uma colher grande me aguarda, onde a carne de siri é encoberta por caviar.

Os contrastes entre salgado e doce, quente e frio, as receitas desconstrutivistas e as espumas e sifões que celebrizaram o chef catalão também estão à mesa do cozinheiro chinês.

Leung foi o primeiro chef daChina seguidor da cozinha molecular a emplacar, no ano passado,duas estrelas para seu restaurante, o Bo Innovation, no guia "Michelin" que avaliou os restaurantes de Hong Kong. Ele abre sua segunda casa no ano que vem, em Londres, e já planeja uma terceira, em Pequim.

Em 2010, ainda pretende lançar um livro ("vou misturar cozinha e estilo de vida") e sonha com um programa de TV. Mas não quer ser Jamie Oliver, o chef performático da TV inglesa. "Ele ensina receitas caseiras, fáceis de fazer, enquanto eu gosto da complicação. Mais que de comer ou cozinhar, eu gosto é deinventar pratos", diz.

O tradicional dumpling chinês, aquela massa de farinha de trigo cozida a vapor, chega à mesa desconstruído –em uma colher, com aparência de creme, você sente o sabor do porco, do gengibre, do vinagre e do sal que estariam no dim sum convencional.

Vários pratos da culinária chinesa são transformados no pequeno restaurante, que pode abrigar até 60 pessoas. Metade no salão envidraçado com vista para a pequena cozinha onde se espremem Leung e seus 14 auxiliares, e a outra metade no terraço com deck de madeira.

Sento no terraço e fico olhando para as alturas. O restaurante fica no segundo (e último) andar de um predinho, engolido por três edifícios residenciais de 30 andares, em uma rua estreita do bairro de Wanchai, que mistura alta gastronomia, metro quadrado caríssimo e a zona da luz vermelha na cidade.

Da minha mesa, consigo espiar o que acontece nas janelas indiscretas da vizinhança e ainda escuto ao longe cânticos entoados em uma igreja no quarteirão vizinho. Camelôs e mocinhas insinuantes disputam a calçada do quarteirão de trás. No salão do tranquilo restaurante, está o bilionário Lawrence Ho, herdeiro dos maiores cassinos de Macau, a Las Vegas asiática.

Há duas opções de cardápio à noite, o menu de degustação (680 dólares de Hong Kong por pessoa, ou R$ 152), que inclui três pratos, entrada e sobremesa; e o menu do chef (1.080 HK dólares, ou R$ 242), uma série de 11 pequenos pratos, mais duas sobremesas. Com acompanhamento de diferentes vinhos, chega a 1.680 HK dólares, ou R$ 376.

Em outro cacoete "ferran-adrianesco", ao servir, os garçons explicam o que é o prato e dizem como se deve manuseá-lo e comê-lo. À mesa, uma base de metal reúne o prato, os pauzinhos típicos, colher, garfo, faca e até pinças, dependendo da habilidade requerida.

No meu caso, foram 14 pratos e quatro sobremesas porque Leung estava de bom humor e queria opinião sobre algumas novas criações.

O restaurante tradicional chinês é também desconstruído pelo Bo. Mesmo nas casas mais caras de Pequim, a quantidade sempre supera a qualidade, gorduras e frituras em profusão atestam que o chinês ainda não dá a mínima para o colesterol e o serviço é precário –o excesso de garçons não é garantia de pedidos registrados.

A decoração abusa do vermelho e do dourado, seguindo a máxima do "too much is not enough" (demais nunca é o bastante). Todos fumam e os pratos (e as sobras) se acumulam em uma grande mesa redonda, onde ou você grita para ser ouvido ou se limita a conversar com uma pessoa ao lado.

Sempre enormes, os bons restaurantes pequineses têm infinidade de salinhas VIP, ainda mais barulhentas. A luz é branca, daquelas que revelam as rugas ainda por nascer.

No Bo Innovation ("bo" vem de "bao", tesouro em mandarim), o minimalismo dos pratos se estende à luz baixa, ao jazz da trilha sonora e à decoração, que prioriza vidro, aço escovado e móveis de madeira.

A equipe tem o visual moderno que se espera da terra do cineasta Wong Kar-wai. Garçons e cozinheiros têm aqueles penteados espetados e coloridos, que parecemsaídos de mangá japonês, e tatuagens à vista. O maître, um simpático nepalês, usa dois brincos grandes. Mas ninguém compete no assunto com Leung.

O chef porta brincos com crucifixo (um verde e um dourado),luzes verdes nas madeixas, óculos de lentes azuis, camisa preta sem mangas, calça preta com um grande dragão desenhado e uma ta-tuagem em chinês, que significa "o chef demoníaco".

Fumando charuto, ele explica que seu visual é mais "roqueiro do que clubber" e que adora o Queen, "a maior banda de todos os tempos".

DO SOM ÀS PANELAS
Nascido há 48 anos em Londres, de pais cantoneses, Leung estudou engenharia acústica no Canadá e há 25 anos se mudou para Hong Kong, então centro financeiro em ascensão sob o domínio britânico.

Abriu uma fábrica de materiais de proteção acústica em Shenzhen, cidade vizinha na China continental.

Ninguém brilhava no fogão em casa ("se minha mãe cozinhasse bem, talvez eu não quisesse inventar pratos") e começou a cozinhar de brincadeira com amigos.

Há dez anos, passou a cozinhar em seu apartamento, algo nada incomum em Hong Kong, onde, pela falta de espaço, famílias abonadas criam seus restaurantes particulares e clandestinos para amigos.

Era um hobby, pois seu sustento vinha da fábrica. Há cinco anos, abriu o Bo. Sente que chegou a hora de que "o hype sobre a ascensão chinesa chegue à cozinha".

"A China pode se transformar em uma estrela gastronômica, como foram antes França, Japão, Espanha", diz. "Quero ajudar a fazer a cozinha chinesa ficar conhecida no mundo".

Seu maior desafio será mudar a reputação da cozinha de seu país pelo planeta. "A comida dasChinatowns é uma diluição do original, este país tem dezenas de províncias, sabores, temperos."

Conheceu Adrià, de quem leu e estudou todos os livros, fez demonstrações nos Estados Unidos e em Londres e ano que vem irá ao Peru, "porque todo mundo fala da cozinha peruana". Tentará visitar o Brasil, "pois fica na vizinhança".

Na semana passada, teve uma decepção –a segunda edição do "Michelin" o rebaixou para uma estrela. "Ainda vou chegar a três estrelas. Minha maior aspiração é ter sucesso para querer trabalhar mais", diz. "Artista rico é o que vive mais tempo."

À MESA, SÃO MUITAS CHINAS
por BARBARA KERR / especial para Serafina
Lembro-me como se fosse hoje do dia em que cruzei a fronteira do sul da China, em 2005. Eu vinha do Laos, país sem grandes novidades. Da janela do ônibus velho, a passagem foi radical –pequenas estradas tortuosas deram lugar a paisagens de uma imensidão sem fim.

Vi cidades incríveis, medievais, e comi os melhores pães, cozidos em água, no vapor, fritos, grelhados, com ou sem recheio, por poucos centavos de dólar.

Logo percebi que o cumprimento habitual, "chi fan le ma?", significa "você já comeu seu arroz hoje?" e expressa a importância, para os chineses, de comer. Também descobri que minha idéia da culinária chinesa era completamente equivocada.

No Brasil, conhecemos a cozinha do Cantão –arroz, frango, rolinhos primavera, pratos fritos na panela wok. Mas a culinária chinesa é muito mais que isso.

Há quatro grandes escolas da cozinha regional, distintas pela cultura, geografia, clima e história. Ao norte, reina a cozinha imperial, com uso de grãos e trigo mais forte do que de arroz. É a terra dos bolinhos no vapor e do pato de Beijing. A influência mongol aparece nos churrascos e no "hot pot" (caldeirão com caldo aromático fervilhante em que os comensais cozinham carnes e verduras).

O leste é dominado pela gigantesca Shangai, com a cozinha mais adocicada, muitos frutos do mar e os melhores molhos de soja e vinhos de arroz. No sudoeste, a cozinha de Sichuan abusa de pimentas, temperos e tofu fermentado –o que descobri ser considerada a pior cozinha, pois eles dizem que seu paladar apurado foi construído "por milênios", e quem sabe comer gosta dos alimentos como eles são, sem temperos (fervura em água é o método predileto). Frango tem que ter gosto de frango, e ponto. Sou suspeita quanto a isso... Pedi o saleiro muitas e muitas vezes!

O sul tem maior oferta de ingredientes e grande uso de animais –gato, cachorro, lagarto, ratos. Os métodos de cocção também são mais complexos.

Mas, percorrendo o país, notei que essa divisão é simplista demais, pois a China tem dezenas de diferentes estilos e cozinhas regionais, com características que nem sempre correspondem às descrições genéricas.

Barbara Kerr é chef, consultora de restaurantes e professora de culinária. Viveu na Ásia entre 2003 e 2007.

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