São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 2009

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DESENHO

Bichos à solta na obra da artista

por HELOÍSA HELVÉCIA

TATIANA (MEGA) BLASS

Com um currículo desproporcional para a sua idade, a artista paulistana materializa, em telas, instalações e objetos, seu universo cheio de vazios

Duvido você sair indiferente de uma visita ao mundo paralelo da paulistana Tatiana Blass. É um mundo que se espalha por objetos, instalações, vídeos, telas e mais telas. Tantas que, na hora de expor, dá uma mão de obra terrível selecionar. É um mundo de espaços cindidos, palcos vazios, bichos cabisbaixos, presenças invisíveis.

Antes que isto vire paródia involuntária desses catálogos de arte chiques, melhor contar o que ela anda aprontando agora.

Anda pintando e pensando. Não sabe ainda de que jeito vai conseguir um piano para estragar na performance que concebeu como parte da sua exposição, em março, na galeria Millan, em São Paulo. Ela pretende, durante o concerto de um pianista, derrubar um tonel de parafina quente dentro do instrumento, para que as teclas grudem enquanto o sujeito toca, até que não saia mais som nenhum.

Normal. Em 2007, essa garota emudeceu um trombone de vara enfiando nele um tubo de latão.

Entre um silêncio, uma risada tímida e outro silêncio, a ex-monitora de Bienal dá a entender que sofre com esse tipo de montagem envolvendo muitas variáveis, pessoas, negociações. Imagino-a penetrando o mundo da customização de veículos e socializando com um especialista no ramo, tudo para poder partir uma motocicleta ao meio –objeto exposto em 2008, sob o título "Globo da Morte". "É frustrante, às vezes, isso de instalação, escultura. É muito trabalho, nem sempre o final é feliz. Você depende de muitos profissionais. Eu me sinto melhor no aconchego da pintura, onde tudo depende só de mim. Mas, se tive a ideia, então tenho que dar conta."

BOMBRIL QUEIMADO
Formada em artes plásticas pela Unesp, Tatiana começou a expor muito cedo. Em termos de produção, exposições e prêmios, tem um currículo desproporcional aos seus 30 anos. No ano passado, com a instalação feita a partir de um faisão taxidermizado, foi uma das cinco finalistas do Nam June Paik Award, láurea que reconhece jovens artistas do mundo todo.

Sem abandonar o conforto da pintura, ela partiu para as esculturas e instalações em 2004. A primeira obra mais escultórica foi "Páreo": patas de cavalo feitas de mármore, colocadas na escadaria do Paço das Artes. Só com aqueles cotocos recortados na paisagem, ela criou o movimento do bicho, sinalizou sua presença imponente, monumental –e invisível.

O mesmo conceito, esse de materializar o vazio, esteve na instalação "Zona Morta", montada em 2007 no centro cultural da rua Maria Antonia. Criou uma sala de estar, com móveis e objetos do cotidiano, para interrrompê-la ao meio com uma faixa de nada.

Luxo máximo, Tatiana vive de seu trabalho há cinco anos. "Jamais imaginei que conseguiria viver de arte." Valeu ter visto tanta exposição com os avós, desde pequena, ter queimado bombril, congelado nanquim e comprado tinta na primeira mesada.

Não que seja sempre um passeio. Ela não desmente o estereótipo da artista inábil na administração das realidades mais comezinhas. O bom é que conta, em produções complexas, com o auxílio luxuoso do marido, o músico Rômulo Fróes, assistente de Nuno Ramos por anos.

As intenções são todas registradas no seu caderno de ideias e trafegam soltas pelas linguagens. "Cada ideia já vem com como tem que ser feita, cada coisa pede seu meio."

Se a última exposição pediu a parceria de um taxidermista, que se há de fazer? Fez a acachapante "Cão Cego", mostra que derramou pela capela do MAM da Bahia. Era composta de pinturas acompanhadas de microcontos e esculturas. Essas últimas foram moldadas a partir de um cachorro empalhado. "Não é fácil lidar com essas coisas. É um pouco menos pesado, porque não tive contato com o cachorro antes, é diferente ver ele durinho, ali... Mesmo assim é difícil. Mas fui obrigada, porque tive a ideia, né?"

A moça levou o cão para dentro da igreja porque queria "um trabalho que fizesse pensar na morte e na transição da matéria". O resultado foi mais comovente do que supunha, "porque ficou muito bem feito".

Teve gente que achou se tratar ali do animal morto em si. A expressão de um dos cachorros, feito de parafina e pintado de preto, mostrou-se tão forte que a artista resolveu remediar derretendo sua cabeça. Difícil saber se a poça de parafina negra grudada no chão da capela do século 17 deixou a obra mais ou menos impactante.

Para a exposição do ano que vem, além de conseguir o tal piano, Tatiana vai precisar convencer o cara da fundição a fazer outro serviço com molde de cachorro. Ele não está querendo, não, está achando tudo isso muito impressionante. Agora Tatiana quer incrustar a coisa na parede da galeria e derretê-la lentamente sob um holofote, de forma a mostrar o esqueleto do animal, enfim...

O cão cego deriva do seu grupo de pinturas em que explora holofotes e palcos, e onde o personagem principal é sempre o melhor amigo do homem. A série, intitulada "Teatro Para Cachorros", foi exposta neste ano também no Sesc Pinheiros. Engraçado ela ter escolhido, para sua encenação interminável, uma figura incapaz de representar. Espera "que um latido desmonte a fala do ator ensaiado", como escreveu no texto de apresentação.

Além do que, Tatiana escreve bem. São filosóficos os pequenos textos que acompanham cada pintura. "É só para criar uma atmosfera meio absurda", diz, quase se desculpando pelas escrituras plásticas. "Nada explica nada, só complica. O que me importa é criar estranhamento e novas percepções."

Um meio entre outros, para escoar essa sua narrativa sem fim.

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