São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2010

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FINO

Elementar, meu caro

por FERNANDA EZABELLA, de LOS ANGELES

O ator inglês Hugh Laurie, protagonista da série 'House', é tão irônico quanto seu personagem.
E talvez tão brilhante também – ele tem um best-seller, toca vários instrumentos, canta e se prepara para lançar um disco de blues em 2011

As rugas de Hugh Laurie não mentem. Não são marcas de sorrisos, que ele dá poucos, e sim na testa, de preocupação. "Se você não está nervoso, não está fazendo seu trabalho direito", diz ele, levantando uma das sobrancelhas.
O ar sombrio lembra seu personagem na série "House", a mais popular na TV a cabo brasileira e que lhe garantiu um dos maiores salários em Hollywood, US$ 400 mil por episódio.
"Não sou naturalmente muito animado", diz o ator de 51 anos, num hotel em Los Angeles. "Já tentei vários tipos de remédios, como vodca –que funciona, mas não por muito tempo".
No fundo, Laurie é uma metralhadora de piadas, um comediante nato, que arranca risadas histéricas do pequeno grupo de jornalistas que o entrevistam.
O humor britânico fez deslanchar sua carreira nos anos 1980, quando aliou-se ao amigo Stephen Fry em humorísticos de TV como "A Bit of Fry and Laurie" e "Blackadder", dos quais é possível ver trechos no Youtube.
Nascido em Oxford, Laurie se formou em arqueologia e antropologia numa universidade de Cambridge, na mesma época em que entrou para o famoso clube de comédia Footlights, quando conheceu Fry e Emma Thompson, que foi sua namorada.
Os anos 1990 foram dedicados a filmes ecléticos, desde o premiado drama "Razão e Sensibilidade" (de 1995, com Kate Winslet e Emma Thompson) a comédias familiares como "101 Dálmatas" (de 1996, com Glenn Close). Em 2001, veio ao Brasil gravar a comédia "A Garota do Rio", ignorada por público e crítica.
Hoje, morando em Los Angeles, Laurie encarna o gênio da medicina diagnóstica dr. Gregory House, personagem baseado no detetive Sherlock Holmes.
"Gosto muito de House. Sei que não é sempre boa pessoa e que na vida real eu o acharia extremamente irritante, mas muitas pessoas adoráveis também são irritantes. Gosto da sua amargura, talvez por eu mesmo ser amargo também."

Sexo e intimidade
Dr. House encara uma nova etapa nesta sétima temporada, no ar tanto nos EUA como no Brasil, em que começa a namorar sua chefe no hospital, a dra. Lisa Cuddy (Lisa Edelstein).
O romance causa problemas no trabalho, influencia os diagnósticos dele e a conduta dela. E, mais do que nunca, o médico precisa aprender a lidar com sua principal fraqueza, segundo seu intérprete: confiar nos outros.
"Sexo é importante para ele, mas sua capacidade de aproximação emocional é limitada", diz. "Não acho que ele irá ceder."
O seriado possibilitou a parceria de Laurie com o diretor argentino Juan José Campanella, ganhador do Oscar por "O Segredo dos seus Olhos", que o dirigiu em alguns episódios. "Vi Campanella em situações difíceis, sofrendo uma pressão enorme.
E ele sempre calmo, gentil, amável. Espero que volte."
Para se adaptar à vida em Los Angeles, para onde teve que se mudar ao aceitar o papel de "House" em 2004, Laurie trouxe da Inglaterra uma de suas paixões, uma moto Triumph Bonneville.
"Minha vida aqui é só trabalho. Eu não surfo, não patino, não faço ioga ou pilates. Uso minha moto para ir trabalhar. E toco numa banda. Mal vejo o sol", diz. "Não estou reclamando, mas não conheço Los Angeles."
Ele acabou de gravar um álbum de blues, "pequeno e íntimo", que será lançado no primeiro semestre de 2011. O cantor Tom Jones faz uma participação em "uma música do Mississippi dos anos 1930", chamada "Baby, Please Make a Change".
Laurie já havia mostrado suas habilidades musicais –ele canta, toca piano, guitarra, saxofone e bateria– em vários episódios da série, e faz um dueto ao piano com Geena Davis em "O Pequeno Stuart Little" (1999).
O ator já tem um disco, de 2008, com a Band from TV, formada com colegas atores que fazem shows beneficentes. O novo disco, ainda sem nome, é um trabalho mais pessoal. "É um álbum sincero. Se não gostarem, não há nada a fazer."
Enquanto avança na carreira musical, Laurie deixa de lado a faceta escritor best-seller, autor do divertido policial "O Vendedor de Armas", de 1996, publicado no Brasil apenas neste ano.
Um segundo livro vem sendo anunciado ano após ano, com nome até, "The Paper Soldier", mas ele avisa para esperar sentado. "Está inacabado, estou uns dez anos atrasado."
Para contrabalancear a vida de correria nas gravações, o ator gosta de ver o seriado de aventuras "Deadliest Catch" na TV e praticar boxe nas horas vagas. "Três minutos em um ringue de boxe, o tempo para. É o que eu mais gosto sobre o esporte", diz ele, explicando que "não sou uma pessoa violenta".
Mas e se pudesse colocar qualquer pessoa num ringue, quem seria? "Alguém pequeno, talvez uma criança de seis anos", responde sério, enrugando a testa, fazendo rir até mesmo o garçom que lhe servia um croissant.
Sobre o futuro de "House", diz não saber, mas deixa entender que tem uma parcela de responsabilidade. "Eu avisei, bem no começo, para que não chamassem a série de House. É um erro, você não deve dizer ao público para quem olhar", diz. "Mas eles não me ouviram. Agora, vejam só, estão presos comigo."

COMENTÁRIO
"Médico precisa gostar de gente!"
por DAVID UIP

Assim como eu, o dr. House da série americana é infectologista e chefe de departamento de um hospital. E, assim como ele, faz parte da minha rotina chegar aos diagnósticos mais difíceis. Em moléstias infecciosas, o médico tem um índice de sucesso muito grande. Mas as semelhanças param por aí.
Só na ficção um médico pode ser tão arrogante, distante dos pacientes e descompromissado com sua equipe. Eu já vi de tudo, só não vi um indivíduo estúpido e grosseiro ser tão bem sucedido. Na minha experiência esse tipo de pessoa sempre acaba se dando mal.
Também sou contra alguns métodos que ele usa para chegar aos diagnósticos, quebrando protocolos do hospital. Dessa forma você perde a noção de certo e errado, e quando o errado entra em sua rotina e você se convence dele... o perigo aumenta.
Todo médico é muito vaidoso e, assim como o House, todos se sentem um pouco 'Deus'. O motivo é que realmente ajudamos as pessoas. Mas, na vida real, essa vaidade só existe até que se tome a primeira paulada. Para os infectologistas, a maior paulada aconteceu na década de 80 com o advento da AIDS. Naquele tempo não havia praticamente nada que pudéssemos fazer. A AIDS mostrou aos médicos que a ciência tem limites.
Um outro exemplo que serviu para me colocar em meu lugar foi a doença do ex-governador Mário Covas. Ele teve a sua disposição os melhores recursos, materiais e humanos, do mundo (médicos de diversos países participaram do tratamento), e, mesmo assim, morreu.
Na série, também é muito distante da realidade a quantidade de exames complementares diagnósticos (de laboratório, de imagem) a que o dr. House submete seus pacientes, sem limite de verbas e praticamente sem contato humano. É claro que ninguém pode abrir mão desses exames. Mas tudo começa com a relação médico-paciente. Eu resolvo 90% dos casos com a história contada pelo doente e pelo exame físico. Para isso tem uma coisa fundamental que parece que o meu amigo House não vai conseguir nunca: médico precisa gostar de gente!

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