São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2010

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FINO

A mãe está livre

por PAULO VINICIUS COELHO

Carlos Eugênio Simon, o árbitro brasileiro mais famoso –e polêmico– da última década, encerra a carreira são e salvo, para alívio de dona Cenita

Carlos Eugênio Simon soprou o apito pela última vez em sua carreira de 27 anos, 1.198 partidas, no início da noite de domingo, 5 de dezembro. O Fluminense era campeão brasileiro, mas, no centro do campo, Simon era o personagem erguido em triunfo pelos bandeirinhas Altemir Halsmann e Roberto Braatz. Um corintiano, ou cruzeirense desavisado, que acabava de perder a taça, bem poderia perguntar se aquele f.d.p. também estava festejando o título do Flu. Não estava.
Naquela mesma hora, em Porto Alegre, dona Cenita caía em prantos. Ouviu o apito, ergueu as mãos para o céu e agradeceu:
"Obrigado, minha Nossa Senhora! Ele saiu são e salvo!"
Dona Cenita, 76 anos, é a mãe. Sobre seu nome recaíram todas as suspeitas indiretas da carreira do árbitro brasileiro mais famoso da última década. Quando o Brasiliense reclamou empurrão de Gil, do Corinthians, na final da Copa do Brasil de 2002, sua torcida pensou em Dona Cenita. Quando o Atlético-MG reclamou de pênalti não marcado no último minuto das quartas-de-final da Copa do Brasil de 2007, contra o Botafogo, Dona Cenita também foi lembrada.
"Nos primeiros dias, eu tinha muito medo da violência. Perguntava se ele sairia de campo ileso", diz ela.
Mãe de juiz não tem escolha. Pode, no máximo, colocar a culpa no filho, porque, esse sim, tinha outras alternativas.
Mas, sabe como é... Mãe é mãe.
"Virei torcedora dos árbitros", ela diz.

MANTRA
Dizem que onde o goleiro pisa, nem grama nasce. É o que torna impossível explicar por que alguém resolve jogar no gol. Mas você pode se lembrar que na infância os menos dotados com a bola no pé são obrigados a jogar com as mãos. Para a escolha do árbitro, só há uma explicação: loucura.
No caso de Simon, o sonho era ser craque. Tentou a sorte como meia-direita, mas já estava na casa dos 16, 17 anos. Não dava mais tempo.
No torneio interno da Escola Técnica Parobé, onde cursou o ensino médio, seu time foi eliminado e Simon escolhido para ser o árbitro da finalíssima. Tentou fugir. Acabou seduzido por um argumento irrefutável: era o melhor jogador do colégio. E saber jogar seria decisivo para entender a malícia de quem está no campo.
Sete anos depois, foi escalado para a decisão do Gauchão da segunda divisão. O "clássico" era Nova Prata x Santo Angelense. A vitória levaria o time de Nova Prata à primeira divisão pela primeira vez. Finzinho de jogo, bola levantada na área, o centroavante sobe para cabecear. O barulho da bola estufando a rede só não é mais forte do que o som do apito de Simon. "O centroavante se apoiou na zaga e anulei o gol. O pau cantou, foi o maior sufoco da minha carreira. Só saí da delegacia no meio da madrugada."
Na boca do povo, erro de juiz é também sacanagem, roubalheira, filha da...
Bem, Dona Cenita não precisa ser lembrada aqui de novo.
Na visão do árbitro, o erro sempre tem uma justificativa. "Eu marco o que vejo. O que não vejo, não posso marcar." Esse era seu mantra.
O fim da carreira de Simon serviu para discutir pontos cruciais do ofício do juiz de futebol. Um deles, a necessidade da profissionalização. As estatísticas apontam que em 1970 um jogador corria, em média, 6 km por partida. Hoje, corre 13 km. Um zagueiro pode dar um pique de 110 metros, voltar para a defesa e descansar. O árbitro, não. Se não correr, danou-se. Perde o tempo da jogada e não marca o pênalti que será repetido na TV pelos próximos dias. Só restará dar o conselho à mãe, como Simon fazia quando ela se afligia com as críticas justas e se irritava com as injustas diante da TV: "Não assista, mãe!"

RECORDISTA
Acontece que o craque está na faixa dos 25 anos, o árbitro passou dos 40. O craque recebe R$ 100 mil. O árbitro ganha limpos R$ 2.000 por jogo, média de R$ 8.000 se apitar uma vez por semana. A renda familiar de Simon é completada pelo salário de R$ 6.000 da esposa, professora de literatura da rede municipal de Porto Alegre –o casal tem quatro filhos. O futuro profissional do árbitro ainda é incerto, ele diz ter recebido vários convites e despista quando questionado sobre o boato de que se tornaria comentarista de TV.
Na adolescência, Simon foi office boy e mecânico de motos. Cursou jornalismo e editou o jornal "O Volante", do sindicato das empresas de ônibus. Abandonou tudo, quando percebeu que, ou se dedicava só ao apito, ou não realizaria o sonho de apitar uma Copa do Mundo. Apitou três, recorde na arbitragem brasileira.
Em 2007, sua escolha como árbitro brasileiro na Copa América foi criticada, porque surgiu uma semana depois do erro que ele próprio considera o maior de sua carreira: o pênalti não marcado de Alex, do Botafogo, em Tchô, do Atlético-MG.
Sua lembrança do lance é de que o erro aconteceu porque uma hérnia inguinal o atormentava. Foi preciso se submeter a uma cirurgia. E como árbitro é amador, não tem contrato assinado e só recebe quando está em campo, isso custou mais 60 dias sem apitar, ou seja, sem remuneração.
Se todos os árbitros são heróis? Claro que não. Em 2005, Edílson Pereira de Carvalho foi acusado de participar de um esquema de manipulação de resultados comandado por um site de apostas. Admitiu ser membro da quadrilha e envergonhou todos os árbitros honestos do país: "Fiquei muito mais triste com o escândalo do que com qualquer dos meus erros."
Edílson não é a regra. Simon, sim. Vida de árbitro tem altos e baixos, erros e acertos, mas só é citado quando alguém se sente prejudicado. Nesse caso, nem sempre é citado pelo próprio nome.
Dona Cenita é testemunha.

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