São Paulo, domingo, 23 de maio de 2010

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ENSAIO

Rio 80

por LUIZ FERNANDO VIANNA

Personagem -e testemunha -dos anos dourados no baixo Leblon, o fotógrafo carioca Romulo Fritscher documentou um dos mais efervescentes cenários do país pós-ditadura militar

O carioca Romulo Fritscher não passava despercebido. Tinha mais de 1,90 m, máquina fotográfica frequentemente a tiracolo e "alma de criança", no dizer da amiga Melise Maia, atriz e cineasta.

Sua morte em fevereiro, aos 56 anos, vencido por um câncer diagnosticado apenas quatro meses antes, instaurou um vazio ao lado dos que o chamavam para ser ator, diretor, produtor, editor, fotógrafo e construtor de sites em seus trabalhos.

"Ele jogava nas 11", assinala Melise. "‘Vamos ligar para o Romulo’, a gente sempre dizia quando estava num projeto", diz o cineasta Neville D’Almeida. Além de recordações, Romulo deixou um grande acervo de fotos, filmes, textos, poemas e ideias que ainda está para ser destrinchado. Nele, destaca-se um conjunto de fotografias em preto e branco feitas em 1980 e 1981 no Baixo Leblon. A área formada por apenas quatro esquinas, no cruzamento da avenida Ataulfo de Paiva com a rua Aristides ?Espínola, se tornou um dos mais efervescentes cenários da zona sul carioca, do Rio e do país no crepúsculo da ditadura militar.

Romulo estava lá em quase todas aquelas noites fartas de bebida, drogas e esperança, mas não se limitou a ser personagem dessa história; também resolveu documentá-la. Com sua Canon, registrou os artistas que paravam nos três restaurantes da região (Pizzaria Guanabara, Diagonal e Real Astória), os garçons que viam tudo –e serviam quase tudo– e os anônimos do entorno: o flanelinha Melancia, o vendedor de flores Funéreo, o vendedor de livretos de cordel, as crianças pobres com seus pacotes de balas.

O conjunto dessas fotos nunca havia sido publicado. E é pouco provável que exista um acervo sobre os anos dourados do Baixo Leblon com as mesmas quantidade e qualidade.

"Ele estava vendo Jesus ser crucificado", compara o também fotógrafo Maurício Valladares, conhecido por seus retratos de bandas de rock, para quem Romulo, seu primo, testemunhava um momento histórico dos costumes cariocas e nacionais –e tinha noção disso, tanto que documentou o que via, nunca se desfez das fotos e as digitalizou nos últimos anos.

"Havia uma permissividade. ?O poder precisava deixar algum lugar, senão a gente enlouquecia", diz o agitador cultural ?Perfeito Fortuna, frequentador do Baixo juntamente com os colegas do Asdrúbal Trouxe o Trombone, grupo que revelou Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Evandro Mesquita e outros.

"O Baixo era libertário, era um point anticaretice, antiditadura, antibrutalidade da censura", lembra Neville, que se baseou naquelas noites para conceber parte das histórias de um de seufilmes mais famosos, "Rio Babilônia" (1982). "Nós íamos para o Real Astória de madrugada e chegavam Lobão, Cazuza, o pessoal do teatro, do cinema, da música, Caetano. Até o [cineasta Francis Ford] Coppola e o [ator Robert] De Niro eu levei lá."

Boêmio, Romulo dedicava especial atenção aos garçons, como Chico, da Guanabara, ?e Paiva, do vizinho Jobi. Um ?dos projetos que sua morte precoce deixou irrealizado é um curta-metragem –com ele na fotografia e Marcelo Serra na direção– em que os garçons do Baixo conversariam enquanto, invertendo os papéis, bêbados da região os serviriam.

Romulo, que no passado fez still (fotos de cena para divulgação) de filmes dos Trapalhões e foi pioneiro na internet (criou no início dos anos 1990 "Eu Odeio a Telerj", contra a telefônica fluminense, antes de páginas assim virarem moda), reestruturou, nos últimos anos, sua produtora Câmera na Mão e se envolveu ?em vários projetos. Foi diretor de fotografia e produtor do documentário sobre o espetáculo ?"Os Sertões", de José Celso Martinez Corrêa, e coprodutor do ainda inédito longa "Papai ?Doidão", com Ricardo Petraglia.

O curta "A Madonna Não Vai Esperar", também com direção de fotografia e produção dele, foi selecionado para o Festival de Cinema Brasileiro de Los Angeles –que aconteceu no final de abril– dois dias depois de sua morte.

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