São Paulo, domingo, 26 de abril de 2009

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EXCLUSIVO

Coisa Fina

Serafina publica com exclusividade trecho do último texto da escritora, poeta e dramaturga Hilda Hilst (1930-2004)

Ora escrito à máquina, ora à mão, o texto "O Koisa" ficou guardado por pelo menos dez anos. Até que o escritor José Luís Mora Fuentes, amigo e parceiro de Hilda Hilst durante cerca de 40 anos, aceitou revelar o fragmento ao lado à?Serafina. "Este foi um dos textos escritos por ela nos últimos anos de sua vida. Hilda parou de escrever um pouco antes de morrer, pois não tinha mais saco. A data da primeira página é 25/11/98. Tem cerca de sete folhas, que foram escritas à máquina e depois completadas de próprio punho. Como as mãos dela já estavam um pouco trêmulas, é difícil decifrar alguns trechos. Até eu, que conheço sua letra, tive dificuldade de entender", diz Mora Fuentes, 57.

O objetivo de Mora, que também preside o Instituto Hilda Hilst, é publicar o material inédito deixado pela escritora. "Vamos fazer um livro especial com fotos, este texto e outros escritos inéditos, que não são ficção. São pensamentos, desabafos, anotações de momentos, um material que parece quase um diário", explica.

A revelação do texto inédito?"O Koisa" é também a inspiração para o espetáculo "Hilda Hilst - O Espírito da Coisa", baseado na vida e na obra da autora, que estreia dia 8 de maio no teatro do Centro da Terra, em São Paulo, com a atriz Rosaly Papadopol e direção de Ruy Cortez.

"Eu vi Hilda escrevendo muita coisa. Eu a acompanhava e, várias vezes, era o primeiro a ler o que ela escrevia", conta Mora Fuentes. "Ela dizia: `Sapo, venha ver o que escrevi'. Nós tínhamos alguns apelidos. Eu era o Sapo, e ela, a Lacraia, porque a lacraia ataca e o sapo só se defende. Eu era o bonzinho", lembra o escritor.

o koisa

entrei dentro da empada à meia noite e em seguida caguei o grãozinho
negro dentro da privada de âmbar e comecei a cantar um canto chulo de
amoras negras mas, belo, coloquial e absurdo como é a vida aos domingos
depois do arroto e do gorgolejo das tripas
fétido mas e com sovacos quentes
quero falar de amor, esse pudoroso que só se mostra
ausente marmórea mãe de todos nós
nós de um negro transparente
o outro gritou no lado dentro da empada:
cho cho baiacu carniceiro: eu baia? Eu da tua laia?
eu um de alguém? Eu cu de quantos
refastelou-se na poltrona de prata dedilhou a harpa
e começou a falar uma língua impossível de gordas guturais e aves roucas e
espevitados magriços canibais tomando sopa, uma de ossos e inchaços de
fígado, verdolengos (poucos, esses mais pro negro):
ó cara da empada, ó cara ai
ó rei de poltrona de prata e eu ela
olha o dedo, e tu quem é, como é que entrou
na empada? Que é a minha casa?

Fiquei gelado de horror e requestionasse mágoas e me lembrei de Kaspar
que sou eu, de aspargos também que aqui não tem, e das aspas que é
quando eu falo com o coisa (agora me caguei)
O grãozinho negro voltou, pôs as mãos na cintura rala e interpelou: tu é
aquele de sempre é? Demorou voltou, ficou doente? Ó pai, devolve-me
o corpo.

Fragmento de "O Koisa", texto inédito de Hilda Hilst.



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