São Paulo, domingo, 26 de abril de 2009

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NO RIO

Os inventores

por HELOISA SEIXAS

Quando iguarias e história se misturam nas mesas cariocas

Restaurantes tradicionais e mesmo centenários, no Rio, são muitos. Mas alguns têm marcas registradas, especialidades que surgiram em suas cozinhas. A esses, chamo de inventores. E não só pelas iguarias que criaram, mas porque, cercados de História e histórias, servem pratos que não são feitos apenas com frutos do mar ou da terra, mas trazem em si um tempero raro, caldo de cultura.

O Rio Minho, por exemplo. Sua fachada singela, de azulejos brancos e azuis que remetem a Portugal, esconde segredos. Fundado em 1884, é um dos mais antigos restaurantes do Rio. Lá, foi inventada a sopa Leão Veloso, pelo embaixador de mesmo nome (na época servindo na França), que teria ido à cozinha e feito ele próprio uma adaptação da "bouillabaisse" francesa (sopa típica da região de Marselha). O prato é uma delícia, mas o que torna o Rio Minho especial é também seu entorno: ele fica bem no comecinho da rua do Ouvidor, que se confunde com a própria história do Rio. Ali, pouco depois da chegada da Corte em 1808, instalaram-se as modistas francesas que transformariam o comportamento da mulher brasileira. Bem na região onde a Ouvidor encontra a rua do Mercado, as pedras do chão guardam histórias de três séculos, numa mistura de ingredientes humanos que vão de dom Pedro a Carmen Miranda, do Major Vidigal a Olavo Bilac, de João do Rio a Moacyr Luz.

O mesmo acontece com o Bar Luiz. Igualmente centenário -foi fundado apenas três anos depois do Rio Minho-, tem duas marcas só suas: a primeira é a salada de batatas, inventada nos anos 1930 por Ana Vöit, mulher de um de seus donos, e cuja receita, única, é guardada num cofre, passando de geração a geração. A outra é sua própria história. Chamava-se Bar Adolph e, durante a Segunda Guerra, quase foi depredado, embora o nome fosse apenas uma referência ao proprietário. Foi salvo por ninguém menos que o compositor Ary Barroso, que estava lá tomando um chope. Além disso, fica na rua cujo nome é o gentílico do Rio.

Embora tenha surgido na rua da Assembleia e se mudado para a rua da Carioca já no século 20, o Bar Luiz passou a ser um dos símbolos dessa região do centro do Rio, cujos casarões centenários, de um lado e do outro, escaparam por pouco da sanha destruidora do metrô.

Outro representante dos inventores é o Cosmopolita, onde foi criado o filé (na verdade, o contrafilé) a Oswaldo Aranha. No coração da Lapa (na Visconde de Maranguape, esquina da travessa do Mosqueira), o Cosmopolita foi fundado em 1926 e suas portas de "saloon" de filme de caubói levam a um interior modesto, despretensioso.

O freguês que hoje se senta numa de suas mesas toscas não pode adivinhar que nele costumavam se reunir para almoçar os senadores da República, cujos gabinetes ficavam logo ali ao lado, no Palácio Monroe. A República se mudou para o Planalto Central e o Monroe foi posto abaixo. Sob as marretas da ditadura, caíram ou foram arrancados suas colunas, a cúpula, os vitrais, os anjos de bronze, os tacos de peroba, os leões que vigiavam a entrada. Não posso deixar de pensar nisso quando entro no Cosmopolita. E aquele bife delicioso, regado a alho, tem sempre para mim um travo de lágrima. Paciência, é o peso da história.



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