São Paulo, domingo, 26 de julho de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TÊTE-À-TÊTE

Elza Soares e o "carpe diem"

por ELIANE CANTANHÊDE

Sobrevivente de muitas guerras particulares, corpo com tudo em cima e "pernitchas" espetaculares, a cantora se prepara para lançar um disco de jazz e decreta:

"Sou um poço de alegria"

Quando fui encontrar Elza Soares, meu coração pulava tanto quanto o da Teté Ribeiro entrevistando George Clooney no primeiro número desta Serafina. Mas por outros motivos.

Elza não é apenas muito diferente da rotina em Brasília, mas também um símbolo de força e de liberdade. Além, claro, de ser uma cantora formidável, única.

De uma geração que se derretia com a beleza cândida de Romy Schneider em "Sissi, a Imperatriz" e de uma família botafoguense e fanática por Mané Garrincha, o que me fascinava mesmo, desde pequena, era a Elza Soares de carne, osso, voz, paixão e audácia.

Enquanto o país se condoía com o abandono de Dona Nair, mãe de nove filhos de Garrincha, era Elza, aquela cantora de voz rouca e gingado sensual, que me despertava curiosidade e respeito, capaz de lutar contra tudo e todos por um grande amor. E que se revelou uma sobrevivente de tantas guerras ao longo da vida.

Hoje, lá está Elza Soares, presumíveis 72 (no mínimo...), namorando Bruno Lucide, seu empresário de 26, gravando um CD de jazz, preparando-se para a apresentação do show "Elza Soares e trio" em São Paulo e para a estreia do recital "Arrepios", com João de Aquino ao violão, no dia 12 de agosto, no Posto 8, zona sul do Rio.

Cheia de histórias para contar do passado, ela diz o contrário: que só pensa no presente. "My name is now" (meu nome é agora), repete várias vezes na curiosa sala do seu apartamento, com uma tenda branca cobrindo o sofá de couro verde-bandeira e a mesinha de centro sobre (isso mesmo: sobre) livros dos mais diferentes assuntos, empilhados no tapete.

O mais interessante: a sala é completamente vazia no centro, como se fosse uma pista de dança. E é mesmo! Sua casa é uma festa, com um entra-e-sai de amigos na faixa dos 20 ou 30, e é ali, na sala, que eles varam as noites cantando, dançando, tomando champanhe. E rindo alto.

O apartamento fica de frente para a praia de Copacabana. Para chegar lá, não precisa de endereço. Você vai olhando aquela fila sisuda de prédios cinzas, brancos ou beges. Quando aparecer um amarelo e laranja vibrantes, num formato levemente sinuoso, pode apostar que é o dela.

O que a Elza Soares ao vivo confirma da Elza Soares de fotos, de palcos e de ouvir falar? A voz impressionante, a cara meio leoa –"de bicho", como ela mesmo define –, a resposta pronta e incisiva para tudo, o corpo tudo-em-cima. E as pernas. Todo mundo deveria rezar para chegar aos 70 com aquele par de pernas. Ou aos 30.

Aquele mulherão, tipo violão, só existe no palco. Na vida real, digamos assim, Elza é magra, miúda ("antigamente, eu tinha 1m57"), braços e pernas bem definidos por musculação, entre outras coisas.

"PERNITCHA"

Com um vestidinho estampado bem curto e decotado, apesar de ser julho, ela admite que gosta de exibir o que Deus lhe deu e bons cirurgiões não param de aperfeiçoar: "Tenho peititchos, bunditcha e pernitcha", ri, enquanto finge se abaixar para pegar alguma coisa –na realidade, insinuando-se para o namorado Bruno, que está produzindo seu novo CD.

Apesar dessa e de outras irreverências, ninguém espere que Elza se arvore sucessora de Dercy Gonçalves, a atriz desbocada que viveu vibrantemente até o último minuto dos seus 101 anos. Elza não falou um único palavrão durante toda a conversa e não fez uma única fofoca contra quem quer que fosse. Só falou bem, principalmente de compositores brasileiros, do guru Noel Rosa ao sempre atual Caetano Veloso.

Mas o que mais surpreende nela naquele fim de tarde, tomando chá preto com pão e margarina, é um traço de sua personalidade.

Não chega a ser explícito nem causa o impacto da chocante dependência emocional e psicológica que Simone de Beauvoir tinha de Jean Paul Sartre, como descrito na biografia do casal escrita pela pesquisadora inglesa Hazel Rowley. Mas Elza, creia, também tem lá sua submissão aos homens, ao amor.

Ela se casou e virou mãe aos 12 anos, por ordem do pai. Depois de viúva, aos 21, com quatro filhos, foi da paixão ao desespero durante os 17 anos com Garrincha, que bebia todas, vivia do seu dinheiro, não dispensava amantes e ainda batia nela. "Dizem que a gente se acostuma à porrada, mas é mentira. Ninguém se acostuma."

Agora, é capaz de qualquer coisa para agradar a Bruno, o produtor e cinegrafista a quem chama de "marido". É ele quem conta: mineiro desesperado para se firmar no Rio, excitadíssimo para lançar o seu primeiro show (o "Sapeca da Breca", no teatro Rival Petrobrás, em janeiro último), e eis que a grande estrela Elza Soares tenta roer a corda. Com muitas dores, depois de operar o rosto e a boca por causa de um acidente de carro na Estônia, ela avisa na última hora que não vai dar.

E ele: "Vai dar, sim. Ah, vai! Eu vim de Minas, dei a vida por esse show. Pode ir levantando daí que eu não quero nem saber". Ela chamou um médico, tomou umas injeções de sossega-leão, levantou e... Foi! Docilmente. Femininamente?!

VIVER SEM DOR

A vida de Elza, aliás, tem sido sempre assim. Desgraça atrás de desgraça, mas ela sempre se levanta e segue em frente, trabalhando, acreditando e, sobretudo, cantando. Até cair, literalmente, do palco já caiu. Levantou, sacudiu a poeira e deu a volta por cima, o que lhe valeu uma música de Chico Buarque, "Dura na Queda".

"Tenho fé. Nada me derruba. Eu quero, eu posso, eu consigo. De preferência, sem atropelar ninguém", diz, resumindo os verbos de sua guerra pela sobrevivência.

"Roubei muito, pulei muita cerca para roubar ovo, galinha, fruta, para meus filhos não morrerem de fome", lembra. Mesmo assim, quatro dos seus nove filhos sucumbiram, principalmente à tuberculose, como o primeiro marido.

Mas Elza não é, ou não parece, deprê. Ao contrário, adora viver a vida. "Sou um poço de alegria", diz.

E onde fica a dor? A dor de roubar para sobreviver, de virar a "Geni" nacional, a dor de perder filhos e "a dor mais perversa que um ser humano pode suportar": a morte de Garrinchinha, o filho do grande amor, num acidente aos oito anos, em 1986. Toda essa dor se evapora na rotina agitada, no movimento, no recomeçar incessante.

ESPELHO MEU

Seu próximo CD está sendo gravado por Bruno na própria sala, ali ao lado da tal tenda, e contém uma preciosidade que mexe com a alma: "Summertime", com a voz única de Elza Soares, soprada, chorada, acompanhada só ao piano.

Suas plásticas estão na cara, e ela acredita que as mulheres devem sair correndo para recauchutar tudo. "Homem diz para a mulher: ‘Meu amor, adoro você do jeito que você é, não precisa fazer nada’. Ah, é? Pois aí mesmo é que você tem de ir correndo!"

Elza diz que seu "grande inimigo" é o espelho. "Eu olho, vejo aquele estado de calamidade pública, corro para o médico e já vou deitando. ‘Me dá anestesia e faz logo o que tem de fazer’".

Tem tatuagens em cima e embaixo dos braços, rosas nas costas e uma fênix (não à toa, claro) na perna direita. E explica o por quê das rosas: trata-se de uma gafe com um dos seus compositores mais queridos.

Num show na boate Texas Bar, no Leme, zona sul do Rio, havia aquele homem quieto, ali na frente, carregando um buquê de rosas sem tirar os olhos dela. No final, ele foi até o palco: "Trago rosas para uma rosa". E Elza: "Eu não me chamo Rosa e detesto rosas". Era, ninguém mais, ninguém menos que Lupicínio Rodrigues. Pode?

"Como sambista...", derrapa a repórter, insegura no universo da música. Elza interrompe: "Sambista não. Eu não sou sambista, eu traio o samba", diz, resumindo seu estilo (ou falta de): "Vou de "a" a "z", gosto de funk, pop, rock, jazz, blues".

Neste momento, está "se matando de estudar" inglês e saxofone, para o CD puro jazz, mas é só para recordar. Diz que fala inglês fluentemente depois de se refugiar por nove anos nos EUA com a morte de Garrinchinha e ataca também de italiano, depois dos anos vividos com Garrincha em Roma, onde ficou muito amiga de Marieta Severo e Chico Buarque, então casados.

Seu mais novo foco é o filme sobre sua vida que a cineasta mineira Elizabete Martins Campos já começou a rodar, com avant-première prevista para agosto de 2010.

Ainda não tem nome, mas já tem muita história e emoção. É para chorar? Não. É para comemorar a vida, o agora. "My name is now", lembra?

Texto Anterior: FINA: Cláudia Faissol, a senhora João Gilberto
Próximo Texto: ENSAIO: Filme de estrada no deserto do Atacama
Índice


Clique aqui Para deixar comentários e sugestões Para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É Proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou imPresso, sem autorização escrita da Folhapress.