São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2010

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FINA

Sapatilhas e fanta laranja

por ROBERTO KAZ

A vida da bailarina brasileira Roberta Marquez no Royal Ballet em Londres

Numa quinta-feira recente, fazia frio em Londres. Chovia e ventava –o que, para corpos mais frágeis, impedia qualquer investida à rua sem o auxílio prévio de um pão quente e de uma xícara de café.
Com seus 43 quilos, a bailarina Roberta Marquez preferiu sair de barriga vazia. Vestiu collant, calça e casaco. Com o cabelo preso, tomou o metrô rumo à Royal Opera House, sede do balé onde trabalha. Às 10h, minutos antes da aula matinal, tomou café e beliscou um croissant. Mais não comeu. "Senão fico cheia", justificou.
Roberta é primeira-bailarina do Royal Ballet –cargo de maior importância na mais prestigiosa companhia britânica de dança clássica. Entre os principais grupos de balé do mundo (veja abaixo), apenas outros dois brasileiros ocupam posição similar. Roberta é a única do sexo feminino, em que a concorrência é fortíssima. "Os meninos, na infância, ganham bola de futebol. As meninas, sapatilhas. O universo da dança tem muito mais bailarina que bailarino", explica.
Bailarinos, à diferença de funcionários, trabalham nos fins de semana. Logo, pela heterodoxia de horários, tendem a se casar com membros da mesma espécie. Roberta divide um apartamento com o cubano Arionel Vargas, também primeiro bailarino, mas do English National Ballet, companhia inglesa de menor distinção. Os dois acordam regularmente às 9h para, uma hora depois, estarem a postos para os ensaios matinais –cada qual em um teatro.
Naquela quinta-feira, ela achou um assento vazio no metrô. Aproveitou o trajeto para ver, no iPod, um vídeo da coreografia que estava ensaiando –para a "Sinfonia em Dó Maior", do compositor francês Georges Bizet. Já no teatro, trocou os sapatos por sapatilhas, vestiu polainas (para aquecer os tornozelos) e se juntou a 25 outros bailarinos para a aula masculina (homens e mulheres fazem aulas separadas, mas, por ocupar um cargo de destaque, Roberta tem direito a escolha).
Sob o comando quase militar da professora cubana Loipa Araujo, que supervisionava a execução dos passos ("Um, dois, 'demi-plié'. Um, dois, 'echappé'"), Roberta se alongou, flexionou, saltou, deu piruetas. Em seguida, já devidamente aquecida –e suada–, vestiu o figurino para o primeiro ensaio. A sala foi tomada por dezenas de bailarinos, um pianista, uma leitora de benesh (a partitura para balé) e pela diretora Patrícia Neary. Pelo resto do dia, ela ainda teria um segundo ensaio e um intervalo para a prova de roupas. "Não tem como comparar minha vida aqui com a do Brasil. Tudo muda, até os detalhes do figurino", ela disse. "Hoje, não preciso me preocupar com nada, só com a dança. No Brasil, eu tinha que comprar sapatilha com o meu salário, porque, às vezes, faltava."

PRIMEIRA-DAMA
Roberta Marquez nasceu há 33 anos no Rio de Janeiro. Entrou na Escola Estadual de Dança do Teatro Municipal aos oito anos, após ser levada pela mãe para assistir ao balé "O Lago dos Cisnes". Aos 16, já fazia parte do corpo de baile e, aos 24, era primeira-bailarina do grupo. O novo cargo, em vez de alegrá-la, gerou frustração: "No Brasil, com sorte, você consegue fazer três balés por ano. Quando virei primeira-bailarina, eu me vi pensando: 'É isso? E agora? Eu quero dançar.'"
Em 2003, devido à contusão de uma dançarina do Royal Ballet, Roberta integrou provisoriamente a companhia britânica. O convite foi intermediado pela diretora russa Natália Makarova, que, meses antes, a conhecera no Teatro Municipal do Rio. "Eles precisavam de alguém para fazer a Bela Adormecida", Roberta lembrou. "Treinei como louca durante três meses. Estava muito nervosa." Um ano depois, seria contratada em definitivo, já como primeira-bailarina: "Não imaginei que chegaria aqui dessa maneira. Se não fosse tão rápido, teria tentado com minhas próprias pernas, mas provavelmente começaria em outra posição", disse.
Ela diz jamais ter pensado em outro tipo de dança que não a clássica: "Não quis ser do Grupo Corpo. No balé clássico, você sempre conta uma história. No contemporâneo, não. Aqui, um dia eu sou um cisne, no outro, Bela Adormecida, no outro, Julieta". Tampouco sonhava com as companhias russas de dança: "Pensava no Royal Ballet, na Ópera de Paris e no American Ballet Theatre. Na Rússia, eles têm uma obsessão pela execução perfeita. Você acaba virando uma ginasta".
A bailarina diz ter mudado o estilo desde que chegou ao grupo britânico. "Quando era mais jovem, eu me preocupava demais com a técnica. Mas ela sozinha não basta. Consigo ver quando alguém está dançando com o corpo, mas sem a cabeça. É o conjunto que faz diferença." Hoje, ao fazer um balé como Romeu e Julieta, diz "pensar em tudo o que se passa na cabeça dela quando vê Romeu morto": "Aqui, na Inglaterra, eles dão mais valor à atuação. Às vezes, eu me sinto uma atriz sem falas".
O cotidiano, no entanto, faz que se lembre de que não é uma atriz sem falas: bailarinos, qual jogadores de futebol, contundem-se. Em janeiro, Roberta estirou a panturrilha. "Foi o primeiro machucado sério que tive em Londres." Após pausa de quatro dias, voltou ao batente: "A vida no balé não é fácil. Você sacrifica tudo", diz. Por tudo, entenda-se gravidez ("Não posso abrir mão da carreira") e prazeres da mesa ("Muito raramente bebo um vinho. Se tenho que me apresentar de branco, fecho a boca").
Às 16h, Roberta interrompeu a entrevista para a prova de figurino. Antes de se despedir, indagou se o repórter já havia almoçado. Ao ouvir a mesma pergunta em resposta, indicou com os olhos a lata de refrigerante que segurava, uma Fanta Laranja. Era o seu repasto.

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