São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008

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Que fim levou - Jeanne Moreau

Amoral, neopagã, primeira e única

Por que as mulheres ainda querem ser Jeanne Moreau, a atriz francesa de beleza imperfeita cujo melhor personagem era ela mesma

por Ruy Castro

Era uma senhora bonita --chique, distinta, bem conservada que não aparentava os 80 anos que completaria dali a alguns meses. Até o jeito de fumar (e de expelir um leve anel de fumaça antes do jato generoso pela boca e pelas narinas) era o mesmo dos anos 60, de quando reduzia seus astros a coadjuvantes e reinava absoluta no cinema francês. Era Jeanne Moreau, naturalmente.

Eu a estava vendo numa entrevista que acompanhava o DVD de "Ascensor para o Cadafalso", pela Criterion. O filme do estreante Louis Malle era de 1957 e a entrevista fora gravada em 2007, mas ela não se deixava trair pelo interregno de 50 anos: era a mesma mulher, a mesma fumaça, a mesma e serena superioridade sobre as coisas deste mundo.

Jeanne Moreau era diferente de todas as estrelas do cinema de seu tempo --ponha aí as americanas, italianas, brasileiras e demais francesas. Não era um padrão de beleza. Aparentava mais idade do que tinha e não era solicitada a ficar nua nos filmes, nem tinha corpo para isso --mas era a única a passar uma aura de sensualidade que brotava dela própria, não de sua personagem. Na verdade, nenhuma atriz parecia representar menos, ou mesmo nem representar. Ela era o que víamos na tela, ou assim pensávamos, nós, os meninos, diante de filmes que nem sei como fazíamos para assistir, como "Os Amantes" (1958), também de Malle, "Ligações Amorosas" (1959), de Roger Vadim, "A Noite" (1960), de Antonioni, "Moderato Cantabile" (1960), de Peter Brook e, principalmente, "Uma Mulher para Dois" --"Jules et Jim" (1961)--, de François Truffaut.

Quando o mundo tomou conhecimento de sua existência com "Ascensor para o Cadafalso", Jeanne já tinha 29 anos e um currículo de 20 filmes em dez anos de carreira, mas só os cinéfilos mais cascudos a conheciam. E, em seu filme mais popular até então, "A Rainha Margot" (1954), as platéias teriam preferido no papeltítulo a voluptuosa Martine Carol, com sua boca de beijos e seios explosivos, em vez da intelectualizada Jeanne. Deve ter sido o seu único filme de época, mas tão marcante que, por algum tempo, ela ficou associada a decotes, perucas e anquinhas --nada mais anti-Moreau em matéria de acessórios. E, fora de Paris, poucos sabiam que Jeanne construíra uma sólida carreira no teatro, contracenando com Gérard Philipe, Jean Marais e Pierre Fresnay em peças de Molière, Shaw e Cocteau --em sua última subida ao palco antes de atuar em "Ascensor para o Cadafalso", ela fora Maggie em "Gata em Teto de Zinco Quente", de Tennessee Williams. Ou seja, já era uma atriz completa. Só faltava encontrar sua personagem.

Essa personagem, descoberta por Louis Malle e adotada naquela seqüência de filmes, todos notáveis, era ela mesma: a mulher adulta, felina e independente, que se impunha com naturalidade aos homens, sem ser ranzinza, rancorosa ou feminista. "Amoral e neopagã", definiu-a com admiração o crítico carioca José Lino Grünewald. E talvez fosse isso mesmo: Jeanne pertencia a uma categoria de mulheres a serem admiradas (ou temidas), mais do que amadas --não que este senão as incomodasse. De repente, em fins dos anos 50, elas começaram a surgir em toda parte, inclusive entre nós. No Rio, alguns anos depois, conheci várias remanescentes da espécie --todas inteligentes, tentadoras e fascinantes. E todas eram ou queriam ser um pouco Jeanne Moreau.

Hoje, tantos anos depois, não sei o que aconteceu a essas mulheres. Foram absorvidas pela multidão ou podem ter sido esmagadas pela ditadura da beleza, que começou nos anos 70 e se prolonga até hoje. Mas duvido que tenham se convertido ao triângulo marido-filho-clube ou regredido ao avental sujo de ovo.

Ao ver sua entrevista, gostei de constatar que, aos oitentinha, Jeanne, primeira e única, conserva o seu aplomb e majestade. E estou sabendo que ela continua com toda a disposição. Em 2005, por exemplo, entre o cinema e a televisão, fez quatro filmes; em 2006, três; em 2007, dois; e 2008 mal começou, mas ela já rodou dois. Aposto que se o nosso Cacá Diegues lhe acenar com um papel no Brasil, como fez no remoto 1975 com "Joana Francesa", ela virá correndo.


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