São Paulo, domingo, 27 de julho de 2008

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ONDE

Samba no Centro

por HELOISA SEIXAS

Ouvidor ouve samba

A história da roda
de samba que DEVOLVEU SUINGUE AO centro
do Rio e arrasta até padrinho em dia
de casamento

"Rio? How cool!", foi o que me disse um inglês com quem conversei um dia em plena Londres cinzenta, ao saber a cidade onde eu morava. Segundo ele, devia ser maravilhoso viver num lugar "onde as pessoas vão passar as férias". Nunca tinha pensado no Rio sob esse ângulo. Mas fiquei com aquela frase na cabeça e acabei concluindo que eu mesma sou um reflexo dessa realidade: vivo fazendo turismo na minha própria cidade. E não só aquele turismo óbvio, dos cartões-postais (embora os ache maravilhosos), mas também farejando lugares secretos e descobrindo programas que nem sempre são conhecidos da maioria.

A rua do Ouvidor, por exemplo. Há até poucos anos, a região do centro do Rio compreendida entre a praça Quinze e a Igreja da Candelária andava muito abandonada, com casarões caindo aos pedaços (alguns invadidos) e comércio de baixo nível. Uma pena, pois aquela é uma área histórica que reúne, em poucos quarteirões, o Paço Imperial, o antigo Convento do Carmo, o chafariz do Mestre Valentim, o arco do Telles e várias igrejas dos tempos coloniais, como a Antiga Sé e a Igreja do Carmo, a de Santa Cruz dos Militares e a da Lapa dos Mercadores. Ali, vira-se uma esquina e já se está em outro século, outro mundo, cercado por gradis de ferro trabalhado, beirais de azulejo e portais de granito, caminhando sobre imensos blocos de pedra gasta, onde um dia pisaram damas e escravos, vagabundos e reis. Era triste ver aquilo tão largado.

Mas, de uns anos para cá, o panorama começou a mudar. O Centro Cultural Banco do Brasil ajudou a revitalizar a região e a happy hour na travessa do Comércio, com mesinhas espalhadas pelas ruas de pedestre, principalmente às quintas e sextas-feiras, foi atraindo mais e mais gente. Surgiu outro centro cultural na área, o dos Correios, e também começaram a aparecer livrarias, cafés, restaurantes e galerias de arte. A Perfumaria Granado foi toda reformada e está lá, linda, com a mesma fachada de quando tinha entre seus fregueses dom Pedro 2º (ela foi fundada em 1870 e, desde então, funciona no mesmo endereço da Primeiro de Março). E, no número 10 da rua do Ouvidor, o restaurante Rio Minho, um dos mais antigos da cidade (fundado em 1884), anda mais cheio do que nunca, com a freguesia atrás da famosa sopa Leão Veloso (inventada lá) e de outras iguarias.

Muito dessa revitalização se deveu à restauração de vários casarões daquele quadrilátero promovida pelo grande carioca Carlos Lessa. É que, no Rio, a iniciativa privada às vezes faz milagres de que os governos não são capazes. O caso da região em torno da Ouvidor foi, nesse aspecto, parecido com o da Lapa.

Mas o burburinho na área só durava até sexta-feira à noite. Nos fins de semana, o movimento caía quase a zero, muitos restaurantes fechavam e as ruas ficavam vazias. Até que, um dia, surgiu a roda de samba da rua do Ouvidor.

Um dos mentores foi o Rodrigo Ferrari, dono da livraria Folha Seca, especializada em livros sobre futebol e sobre o Rio. Ele e a Dani Duarte, sua sócia, juntaram-se aos donos de restaurantes e botequins da Ouvidor e arredores -como o Mestre Santos, do Casual, o Carlinhos, do Antigamente, e o pessoal da Toca do Baiacu- e criaram uma roda de samba que acontece em frente ao número 37 (onde fica a livraria), em sábados alternados, sempre a partir das duas da tarde.

As pedras da rua do Ouvidor, com seus mais de 400 anos (junto com a Primeiro de Março, ex-rua Direita, a Ouvidor é uma das ruas mais antigas do Brasil), cobrem-se de mesas de plástico e ali se faz a festa, em meio a caldinhos de feijão com torresmo, cerveja, pastéis de camarão, caipirinha, bolinhos de bacalhau e samba de raiz, tocado por músicos como Pratinha (Tiago Prata), Anderson Balbueno, Fabio Cazes, Jorge Alexandre, Júnior de Oliveira, Paulinho Bicolor e Zé Leal, e cantado pelo vozeirão do jovem Gabriel Cavalcante. Os sobrados centenários e os lampiões antigos pendurados sobre a rua compõem o cenário atemporal, mágico. E não é mentira aquilo que já se contou: convidados e padrinhos de casamentos nas igrejas da Primeiro de Março costumam escapulir e ir à Ouvidor dar uma sambadinha enquanto a cerimônia não começa. Nada mais carioca.

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